O futebol, as piratarias e a escusa de responsabilidade civil


Portugal está em escusa de responsabilidade. Pode dar para alguns vingarem, para se safarem com os fins que justificam os meios, mas vai correr mal como comunidade de destinos. 


Enquanto perdura a pandemia, com modelações da intensidade dos impactos, por via do processo de vacinação e dos cuidados gerais, perpassa na sociedade portuguesa um outro contágio: o da escusa de responsabilidade civil, por omissão, por indiferença ou porque toca aos outros.

Nos últimos anos, em especial, no setor da saúde, temos assistido ao anúncio por enfermeiros e médicos da declaração formal de escusa de responsabilidade civil no exercício das funções pela ausência de condições concretas ou circunstanciais para o cumprimento da sua missão. O problema não é só na área da saúde. Em demasiadas e crescentes situações uma boa parte dos portugueses pedem escusa de responsabilidade, ao não escrutinarem, ao não exigirem, ao se conformarem ou ao condescenderem com a persistência de situações que acabam sempre por ser lesivas da parte ou do todo.

O país indignou-se e sofreu na pele dependente de ter rede para comunicar o ataque por piratas informáticos à Vodafone, precedido e sucedido por ataques similares, que, no mínimo, sublinham as fragilidades de segurança das empresas e instituições, e, no máximo, evidenciam a debilidade dos sistemas em que assentam os nossos quotidianos e opções de vida. A comoção geral foi evidente, mas, em bom rigor e de acordo com o padrão instituído por alguns, o erro dos piratas informáticos terá sido não denunciarem uma alegada qualquer situação inaceitável ou não terem capturado as comunicações dos responsáveis das empresas em busca de picantes legais ou de coscuvilhice sem relevância judicial. O padrão estabelecido é o de que se o crime for por supostas boas razões, ele deve ser tolerável e quiçá até será acolhido nas boas graças da Polícia Judiciária e do sistema judicial como está configurado. É como se fosse tolerável que um ser, na vida física, suspeitando de que um responsável político ou de uma empresa tivessem documentos comprometedores num cofre em casa, estivesse autorizado a assaltar a residência, sem violência demais, para sacar as provas e divulgá-las por um dos canais mediáticos convencionados para a violação do segredo de justiça e novelas para-judiciais. E o mesmo se poderia aplicar a ações sobre os telemóveis ou as comunicações de jornalistas para avaliação da lisura do desempenho do isento direito/dever de informação. Era o triunfo total do vale tudo para alegados bons motivos. Esta tese construída em cima de uma escusa geral de responsabilidade, do Estado e dos cidadãos, nasceu com o acolhimento triunfal do alegado pirata informático Rui Pinto pelo sistema judicial, em suprimento das suas incompetências e insuficiências, aquando do furto de anos de comunicações internas do Sport Lisboa e Benfica, mas está também presente na validação de escutas pelo Ministério Público, no designado processo “Cartão vermelho”, sem qualquer relevância judicial, que alguns media vasculham e amplificam por dever de mexerico, vontade de desestabilizar os visados e captação da atenção dos públicos.

O problema dos piratas informáticos tem sido não invocarem uma razão sustentável para os crimes que cometem e para os impactos negativos que têm gerado nas pessoas, nas empresas e no país. Houvesse um bom motivo e tudo seria desculpado. Ora é este quadro de desresponsabilização geral, de fechar os olhos aos princípios, aos valores e à lei, que está na origem dos sobressaltos e das comoções gerais, no futebol como noutras áreas da sociedade. Desvalorizam-se os reiterados sinais disruptivos, à margem das regras, e sinaliza-se uma certa normalização do truque, da disfunção e da distorção, por vezes, em evidente ilegalidade, numa sementeira de irresponsabilidade que só pode acabar amiúde em expressões maiores de disparate, como a que se assistiu na sexta-feira. O drama maior da escusa de responsabilidade política, social e judicial é o sinal que se dá, de que não vale a pena nenhum esforço de qualificação das ideias, das opções, dos processos e das ações. Não vale a pena fazer as coisas certas, porque és penalizado pelo sistema instalado e a sociedade não valoriza.

Terá havido magistrados que se recusaram a cumprir mandados de busca num determinado território nacional e junto de uma certa instituição, como se o estado de Direito tivesse áreas de exclusão. Há processos que marinam no olimpo do arbítrio judicial e outros que ganham estrelato sustentado em fugas de informação e violação do segredo de justiça, numa geometria variável sem senso de negação do normal funcionamento do Estado.

Há reiteradas evidências de distorções de funcionamento, de sentido de justiça e de bom senso no mundo do futebol e na sociedade portuguesa.

Há uma complacência com o sustentado insulto e incitação ao ódio por algumas claques, como se os cidadãos não tivessem direito a assistir a um espetáculo desportivo sem ser invetivado pelas suas opções clubistas ou o único cimento de um determinado grupo convergente de neurónios sobreviventes fosse a oposição à diferença.
Tudo isto é possível porque há uma escusa generalizada de responsabilidade civil, reconhecida até pelos mais empedernidos adeptos, mas conveniente para as circunstâncias do pontinho, da vitória ou da conquista.

Portugal está em escusa de responsabilidade. Pode dar para alguns vingarem, para se safarem com os fins que justificam os meios, mas vai correr mal como comunidade de destinos. Com maior ou menor comoção nacional, os fenómenos, os riscos e as consequências desmultiplicam-se. No Alentejo, diz-se que “quem os espalhou, que os ajunte”. O drama é que vai ser cada vez mais difícil ajuntar e há cada vez menos coisas para juntar e afirmar. É o resultado de demasiada escusa de responsabilidade civil.

NOTAS FINAIS
ESCUSA ELEITORAL. Não sei de quem é a responsabilidade, mas é inconcebível que milhares de votos de cidadãos portugueses residentes no exterior não tenham sido considerados. Já contam pouco para eleger quatro deputados, não contarem nada é uma machadada no seu compromisso cívico com o país. Sou do tempo em que o PSD tinha esquemas de recolha de voto dos emigrantes porta-a-porta no Brasil, é delicioso ver o moralismo eleitoral de agora.

ESCUSA DE DISPARATE PRESIDENCIAL. O entusiasmo verborrágico não justifica o disparate do Presidente Marcelo verbalizar desejos de reeleição do congénere francês Emmanuel Macron em cerimónia oficial no Eliseu. É certo que há precedentes de confusão de funções made in AutoEuropa, mas é se tudo muda em França?

ESCUSA DE RECONHECIMENTO NACIONAL. Por falar em eleições, veio-me à memória a injustiça que persiste, perante a indiferença dos políticos e da sociedade. Jorge Miguéis esteve 41 anos na administração eleitoral organizando 66 eleições, a começar na primeira do regime democrático, para a Assembleia Constituinte, em 1975, e a acabar nas últimas eleições legislativas de 2015. Faleceu em 2019. Três anos depois da sua morte, a República Portuguesa, ainda que a título póstumo, foi incapaz de o condecorar pelos serviços prestados à Democracia. E condecora-se tanta gente…   
Escreve à segunda-feira

O futebol, as piratarias e a escusa de responsabilidade civil


Portugal está em escusa de responsabilidade. Pode dar para alguns vingarem, para se safarem com os fins que justificam os meios, mas vai correr mal como comunidade de destinos. 


Enquanto perdura a pandemia, com modelações da intensidade dos impactos, por via do processo de vacinação e dos cuidados gerais, perpassa na sociedade portuguesa um outro contágio: o da escusa de responsabilidade civil, por omissão, por indiferença ou porque toca aos outros.

Nos últimos anos, em especial, no setor da saúde, temos assistido ao anúncio por enfermeiros e médicos da declaração formal de escusa de responsabilidade civil no exercício das funções pela ausência de condições concretas ou circunstanciais para o cumprimento da sua missão. O problema não é só na área da saúde. Em demasiadas e crescentes situações uma boa parte dos portugueses pedem escusa de responsabilidade, ao não escrutinarem, ao não exigirem, ao se conformarem ou ao condescenderem com a persistência de situações que acabam sempre por ser lesivas da parte ou do todo.

O país indignou-se e sofreu na pele dependente de ter rede para comunicar o ataque por piratas informáticos à Vodafone, precedido e sucedido por ataques similares, que, no mínimo, sublinham as fragilidades de segurança das empresas e instituições, e, no máximo, evidenciam a debilidade dos sistemas em que assentam os nossos quotidianos e opções de vida. A comoção geral foi evidente, mas, em bom rigor e de acordo com o padrão instituído por alguns, o erro dos piratas informáticos terá sido não denunciarem uma alegada qualquer situação inaceitável ou não terem capturado as comunicações dos responsáveis das empresas em busca de picantes legais ou de coscuvilhice sem relevância judicial. O padrão estabelecido é o de que se o crime for por supostas boas razões, ele deve ser tolerável e quiçá até será acolhido nas boas graças da Polícia Judiciária e do sistema judicial como está configurado. É como se fosse tolerável que um ser, na vida física, suspeitando de que um responsável político ou de uma empresa tivessem documentos comprometedores num cofre em casa, estivesse autorizado a assaltar a residência, sem violência demais, para sacar as provas e divulgá-las por um dos canais mediáticos convencionados para a violação do segredo de justiça e novelas para-judiciais. E o mesmo se poderia aplicar a ações sobre os telemóveis ou as comunicações de jornalistas para avaliação da lisura do desempenho do isento direito/dever de informação. Era o triunfo total do vale tudo para alegados bons motivos. Esta tese construída em cima de uma escusa geral de responsabilidade, do Estado e dos cidadãos, nasceu com o acolhimento triunfal do alegado pirata informático Rui Pinto pelo sistema judicial, em suprimento das suas incompetências e insuficiências, aquando do furto de anos de comunicações internas do Sport Lisboa e Benfica, mas está também presente na validação de escutas pelo Ministério Público, no designado processo “Cartão vermelho”, sem qualquer relevância judicial, que alguns media vasculham e amplificam por dever de mexerico, vontade de desestabilizar os visados e captação da atenção dos públicos.

O problema dos piratas informáticos tem sido não invocarem uma razão sustentável para os crimes que cometem e para os impactos negativos que têm gerado nas pessoas, nas empresas e no país. Houvesse um bom motivo e tudo seria desculpado. Ora é este quadro de desresponsabilização geral, de fechar os olhos aos princípios, aos valores e à lei, que está na origem dos sobressaltos e das comoções gerais, no futebol como noutras áreas da sociedade. Desvalorizam-se os reiterados sinais disruptivos, à margem das regras, e sinaliza-se uma certa normalização do truque, da disfunção e da distorção, por vezes, em evidente ilegalidade, numa sementeira de irresponsabilidade que só pode acabar amiúde em expressões maiores de disparate, como a que se assistiu na sexta-feira. O drama maior da escusa de responsabilidade política, social e judicial é o sinal que se dá, de que não vale a pena nenhum esforço de qualificação das ideias, das opções, dos processos e das ações. Não vale a pena fazer as coisas certas, porque és penalizado pelo sistema instalado e a sociedade não valoriza.

Terá havido magistrados que se recusaram a cumprir mandados de busca num determinado território nacional e junto de uma certa instituição, como se o estado de Direito tivesse áreas de exclusão. Há processos que marinam no olimpo do arbítrio judicial e outros que ganham estrelato sustentado em fugas de informação e violação do segredo de justiça, numa geometria variável sem senso de negação do normal funcionamento do Estado.

Há reiteradas evidências de distorções de funcionamento, de sentido de justiça e de bom senso no mundo do futebol e na sociedade portuguesa.

Há uma complacência com o sustentado insulto e incitação ao ódio por algumas claques, como se os cidadãos não tivessem direito a assistir a um espetáculo desportivo sem ser invetivado pelas suas opções clubistas ou o único cimento de um determinado grupo convergente de neurónios sobreviventes fosse a oposição à diferença.
Tudo isto é possível porque há uma escusa generalizada de responsabilidade civil, reconhecida até pelos mais empedernidos adeptos, mas conveniente para as circunstâncias do pontinho, da vitória ou da conquista.

Portugal está em escusa de responsabilidade. Pode dar para alguns vingarem, para se safarem com os fins que justificam os meios, mas vai correr mal como comunidade de destinos. Com maior ou menor comoção nacional, os fenómenos, os riscos e as consequências desmultiplicam-se. No Alentejo, diz-se que “quem os espalhou, que os ajunte”. O drama é que vai ser cada vez mais difícil ajuntar e há cada vez menos coisas para juntar e afirmar. É o resultado de demasiada escusa de responsabilidade civil.

NOTAS FINAIS
ESCUSA ELEITORAL. Não sei de quem é a responsabilidade, mas é inconcebível que milhares de votos de cidadãos portugueses residentes no exterior não tenham sido considerados. Já contam pouco para eleger quatro deputados, não contarem nada é uma machadada no seu compromisso cívico com o país. Sou do tempo em que o PSD tinha esquemas de recolha de voto dos emigrantes porta-a-porta no Brasil, é delicioso ver o moralismo eleitoral de agora.

ESCUSA DE DISPARATE PRESIDENCIAL. O entusiasmo verborrágico não justifica o disparate do Presidente Marcelo verbalizar desejos de reeleição do congénere francês Emmanuel Macron em cerimónia oficial no Eliseu. É certo que há precedentes de confusão de funções made in AutoEuropa, mas é se tudo muda em França?

ESCUSA DE RECONHECIMENTO NACIONAL. Por falar em eleições, veio-me à memória a injustiça que persiste, perante a indiferença dos políticos e da sociedade. Jorge Miguéis esteve 41 anos na administração eleitoral organizando 66 eleições, a começar na primeira do regime democrático, para a Assembleia Constituinte, em 1975, e a acabar nas últimas eleições legislativas de 2015. Faleceu em 2019. Três anos depois da sua morte, a República Portuguesa, ainda que a título póstumo, foi incapaz de o condecorar pelos serviços prestados à Democracia. E condecora-se tanta gente…   
Escreve à segunda-feira