Glória de Soares e epidemia de golpes militares


O império americano alterna fases de isolacionismo e de intervencionismo, matizadas estas em função da geografia mais conveniente.


Os períodos de isolacionismo não deixaram de permitir fenómenos intervencionistas, “confinados” à dimensão do continente americano, o que não deixa de ser um confinamento superlativamente extenso. Com o fim da administração Trump os EUA recuperaram o apetite pelas geografias não americanas, mas longe da Europa. A actual distracção com Putin é um contratempo no re-posicionamento do poder americano em torno da China. Também neste particular a política externa de Biden é a continuação das apostas de Hillary Clinton.

Há um ano o encerramento do canal do Suez, causado por um acidente na navegação de um porta-contentores, permitiu recordar a importância da rota do cabo da Boa Esperança. Em direcção ao Cabo e a partir do Índico há uma série de “hotspots” que merecem a atenção de Washington: o estreito de Ormuz, o Bab el Mandab, a Somália (e a constante expansão do Al-Shabaad e afiliados), a forte presença chinesa na economia e nas infra-estruturas de transportes no Quénia, os diversos grupos de insurgentes islâmicos na Tanzânia e em Moçambique e a possibilidade real de muitos dos contrabandos feitos por via marítima se orientarem para a indústria da pirataria e do rapto (sobretudo no canal de Moçambique e, a norte, atacando as estruturas off-shore de extracção de hidrocarbonetos).

O norte de Madagáscar oferece excelentes condições para o estabelecimento de bases navais. Os portugueses já o sabem, tendo Diogo Soares baptizado em 1543 a baía e o porto homónimos, eternizados na versão do esperanto de origem castelhana como Diego Suarez, re-baptizados Antsiranana em 1975. Durante a segunda guerra mundial Diego Suarez foi ocupada pelos britânicos e atacada pelos japoneses. Finda a guerra os franceses lá mantiveram até 1975 uma base militar mesmo depois da independência malgache, ocorrida em 1960. No início deste ano os EUA anunciaram a intenção de estabelecer uma base naval em Diego Suarez.

A recente epidemia de golpes militares em África (Mali, por duas vezes, Chade, Guiné-Conakry, Níger, Sudão, Burquina Fasso) e de tentativas de golpe (Guiné Bissau) acresce às razões dos EUA para se interessarem pelas terras baptizadas por Diogo Soares.

A Peregrinação dedica dois capítulos à vida (e morte) de Soares, feito Governador de Pegu, na Birmânia. Na introdução do primeiro destes capítulos Fernão Mendes Pinto faz uma fina análise das condições que propiciam os golpes militares. Merece ser recordada a título de premonição, não sendo as eleições já agendadas vacina bastante junto das novas gerações de militares: “estava pacífico rei nesta cidade e reino de Pegu, e sem receio nem contradição de pessoa alguma, começou a distribuir indevidamente, e a fazer mercê a quem queria, dos bens que eram da coroa, donde resultaram grandes escândalos, que foram causa de haverem muitas brigas e discordâncias entre muitos senhores, os quais, por esta razão e pouca justiça que o tirano tinha no que fazia, se foram para diversas terras e reinos estranhos, e outros se passaram para o xemindó, o qual já neste tempo começava a ter algum certo nome […] foi ter ao reino de Ansedá, onde pela eficácia dos seus sermões, e pela autoridade de sua pessoa, atraiu a si uma grande quantidade de gente; e com o favor e ajuda destes senhores que se passaram para ele, juntou um corpo de sessenta mil homens, com os quais se foi chegando para o Meidó, onde dos naturais da terra foi bem recebido.”

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990