O sono é todo um outro continente. Somos seres que pesquisam por entre a malha dos sonhos outros mundos, sujeitos a leis diversas, onde a nossa condição se liberta e sente o peso das suas limitações de um outro modo, mais fundo e íntimo. Ou talvez sejam os sonhos os sujeitos da exploração, consciências estranhas em que mergulhamos e nos deixamos guiar. O certo é que sentimos falta dessa região onde a realidade se desagrega e cede a outros ritmos, a uma outra coesão. O sono é uma forma de solvência. De algum modo, ali a consciência afunda-se em si mesma e parece ir até zonas onde é difícil penetrar de outro modo, sem abdicar de boa parte do que nos faz sentido à superfície. E por mais vasto que seja, a sensação é a de se estar na órbita de uma espécie de astro nebuloso, algo que transforma a nossa própria consistência quando seguimos no seu arrasto. É como chegar a um mundo insular, com as suas normas, a sua linguagem, a sua imaginação próprias. E o maior castigo é viver à míngua desse mundo, perder o direito de cidadania e ficar do outro lado, como os esfomeados, diante das montras das confeitarias. A insónia é tão degradante pois, sem a qualidade regenerativa do sono, é a própria realidade que começa a desagregar-se, a transformar-se num pesadelo insuportável.
Todos nós, em algum momento das nossas vidas, nos sentimos exilados dessa zona, e de imediato nos tornámos seres mendicantes, terrivelmente supersticiosos, lidando com o sono como se se tratasse de um deus severo e caprichoso, cujos desígnios nos pareciam insondáveis, mas a quem era preciso, a todo o custo, agradar para obter de novo o seu favor. E um dos níveis onde se registaram maiores perturbações nos últimos dois anos, na decorrência da pandemia, foi precisamente nos padrões do sono. Especialmente nos meses de confinamento, aumentou subitamente o número daqueles que ficam diante das portas do sono, desdobrando-se em genuflexões, complexos rituais e até actos de contrição suplicando por uma noite do outro lado, sem interrupções. Nos próximos anos é de esperar que as antologias sobre o tema da insónia venham a ser substancialmente engrossadas, e surjam obras inteiras ou passagens esclarecedoras sobre esse limbo ulcerante, pérolas que possam juntar-se a esta de Marguerite Yourcenar, em Memórias de Adriano: “O que são as nossas insónias, senão a maníaca obstinação da nossa inteligência com o fabrico de pensamentos, cadeias de raciocínios, silogismos e definições próprias, a sua recusa em abdicar a favor da loucura divina de olhos bem fechados ou da sensata demência dos sonhos? O homem que não dorme (e durante os últimos meses tive a oportunidade de observar este facto em demasiadas ocasiões) recusa-se a confiar no mero fluir das coisas.”
Borges foi mais sintético, mas não menos convincente ao sugerir num dos seus contos que a dificuldade em dormir surge de um excessivo apego ao mundo, dizendo que dormir é distrair-se dele. A verdade é que, para esses que, solitariamente, noite após noite, dão por si como testemunhas contrariadas dessas horas espessas que marcam uma realidade fracturada, é fácil abandonar o espírito crítico e ansiar por uma qualquer solução milagrosa. Além de cronicamente indispostos e rabugentos, se na maioria dos assuntos os insones tendem a ser desconfiados, em relação a recuperarem o sono estão dispostos a tudo, são uma legião que se rebaixará em nome da mais mísera esperança para o padecimento que os afecta. Cada um terá vindo a acumular como cicatrizes de tantas noites mal dormidas uma série de peculiaridades e excentricidades na hora de tentar infiltrar-se no reino do sono. Segundo os últimos números, pelo menos 20% da população portuguesa sofre de insónias, mas há uma série de outras perturbações que vão e vêm, deixando as suas marcas. Boa parte das pessoas, sofre de fragmentação do sono, e uma das incomodidades mais comuns é acordar a meio da noite e ficar horas à espera que o autocarro do sono volte a passar. Nos últimos meses, esta comunidade invisível terá, pelo menos, sentido um certo alívio ao perceber que o tema estava a gerar um nível tal de desconforto que levou a que se multiplicasses as pesquisas, os artigos e os ensaios nos jornais e revistas lidando com as questões do sono. Um deles, em particular, chamou-nos a atenção. Assinado por Derek Thompson e publicado na The Atlantic, é um relato de uma espécie de odisseia nocturna do autor a partir do momento em que descobriu toda uma “indústria caseira” de personagens seriamente devotados a conseguir dobrar esse cabo das tormentas, tendo muitos deles embarcado na noção de que a razão porque o sono parece ter perdido o eixo deve-se aos efeitos da revolução industrial. Segundo esta tese, na Europa pré-moderna e em séculos que a luz da memória mal alcança, era hábito as pessoas tomarem o anoitecer como a oportunidade para um primeiro assalto ao sono, dormindo umas horas e despertando por volta da meia-noite. Depois disso, ocupar-se-iam com o que quer que fosse antes de estarem motivadas a participar num segundo assalto. Segundo os conspiranóicos do sono, assim estávamos e tudo estava bem até ao advento da modernidade, que apareceu e como uma governanta tirânica passou a exigir que dormíssemos tudo de uma só vez para que as horas de sono não perturbassem as necessidades do trabalho.
Derek Thompson não se ficou por esses fóruns, mas quis ouvir os especialistas, e assim chegou a Roger Ekirch, um historiador cujo trabalho abriu o livro lá atrás e levou-nos ao centro dessa questão do sono segmentado. Foi na década de 1980, quando Ekirch estava a fazer pesquisas sobre os hábitos nocturnos na período que antecedeu a revolução industrial que, nos arquivos de uma biblioteca pública de Londres, deu com referências a “primeiro sono” e “segundo sono” num relatório criminal do século XVII. Nunca antes se tinha deparado com estas expressões, mas, ao alargar a sua investigação, descobriu menções também em italiano, francês e até em latim, seguindo o rastro dessas indicações à volta do globo, e dando com diversos documentos em regiões da África, Médio Oriente, Sul da Ásia e América Latina, o que deixava claro que não se tratava de um fenómeno circunscrito à Europa.
A outra descoberta que fez, foi que quando o sono era uma peça em dois actos, as pessoas não se recriminavam por não estarem a dormir, nem viviam num estado de ansiedade tornando-se mendigos e esforçando-se por ganhar os favores do porteiro. Nessas horas, além de se levantarem para usar o penico ou aliviarem-se nas malvas, gastavam a energia em actividades sexuais, reacendiam a lareira, partilhavam as aventuras do outro lado da barreira e aproveitavam essas horas também para rezar ou chamar ao seu convívio os espíritos do outro mundo. Mas se as pesquisas de Ekirch levaram muitos a supor que este sono em duas fases era a versão tradicional ou clássica e aquela que hoje praticamos não passa de uma modernice que contraria os nossos ciclos naturais, o historiador não se ficou por aí, e ao abrir o livro naquele período pré-industrial cedo se deu conta de que seria errado levar dali uma imagem romântica das coisas. Nesses séculos em que as trevas se impunham ao homem que não podia senão abrir parêntesis luminosos com a ajuda do fogo, muitas vezes com uma vela servindo para deixar claro o desequilíbrio de forças em causa, a morte era tinha as chaves de todos os quartos e aparecia sem aviso. Não só o crime adorava a protecção que o escuro lhe conferia, como a própria morada doméstica estava longe de ser um refúgio seguro, em parte por causa da fraca construção que tornava as casas vulneráveis ao fogo, se chovesse era raro não haver baldes espalhados a recolher o que o telhado deixara passar, e se fizesse muito calor ou frio quem estava lá dentro cozia ou gelava, além do que as pessoas estavam sujeitas ao que Ekirch chama “o trio da entomologia moderna: pulgas, piolhos e percevejos”. Era natural por isso ser acordado a meio da noite por uma miríade de perturbações exteriores, além do que, para muitas mulheres da classe trabalhadora, essas horas a pé eram dedicadas às tarefas domésticas. De resto, todo esse inventário de soporíferos de que hoje nos valemos quando comparados com as suas versões ancestrais são verdadeiros milagres. Se estes estão ao nosso dispor e variam muito nos seus efeitos, desde um suave embalo, um sussurro para dissipar os nervos, até àqueles que cortam o quadro, mandam abaixo os sistemas se nada mais resultar, noutros tempos, o desespero levou os nossos antepassados a fiarem-se em mezinhas que envolviam ervas venenosas e poções que abusavam de opiáceos. Assim, não era infrequente a dose induzir um sono excessivo, cortando o fio que nos devolve à vida.
Assim, ninguém ficou demasiado triste por ter de se despedir desses dias e dar as boas-vindas à série de inovações que a revolução industrial trouxe, desde a iluminação pública, à cafeína, aos relógios e até aos horários de trabalho, tudo isso que contribuiu para pôr fim ao sono em duas fases. O certo é que em menos de nada, toda uma economia em ascensão fez da produtividade uma virtude e incutiu “um senso crescente de consciência do tempo” no Ocidente, segundo Ekirch. Em meados do século XIX, os movimentos “deitar cedo e cedo erguer” impuseram-se na Inglaterra e nos EUA. A noite também viu os seus domínios severamente amputados, com toda uma série de novas luzes artificiais atrasarem a hora de recolher, enquanto os novos horários das fábricas exigiam aos trabalhadores que despertassem cada vez mais cedo. Aos poucos, eram os relógios internos que estava a adaptar-se à realidade de mundo permanentemente iluminado. “Cada vez que acendemos uma luz, estamos inadvertidamente a tomar uma droga que afecta a forma como vamos dormir”, lembra Charles Czeisler, cientista do sono de Harvard. E Derek Thompson cita ainda um estudo da década de 1990 no Instituto Nacional de Saúde Mental em que um grupo de indivíduos do sexo masculino foram privados de luz à noite, verificando-se que ao fim de algumas semanas o seu sono se tornou segmentado. Mas se isto nos pode levar a inferir que as nossas definições de origem nos levam a dividir a noite de sono numa série de sestas, um outro estudo, realizado em 2015, entre comunidades de caçadores-recolectores na Tanzânia, Namíbia e Bolívia descobriu que a maioria dos indivíduos desfrutava um só e longo período de sono. Outro estudo referido por Thompson, realizado dois anos depois, fala de uma sociedade rural em Madagáscar em que há muito prevalece o sono segmentado. Outros estudos mais recentes são referidos, e servem apenas para vincar que diferentes populações com diferentes necessidades se adaptam a diferentes hábitos no que toca ao sono. Mesmo na Europa, e até na era pré-industrial, de acordo com a investigação feita por Ekirch, estes padrões são bastante diversos. E depois de anos dedicado ao tema, o historiador do sono não tem dúvidas que, apesar de todos os problemas que enfrentamos, nunca as condições para se dormir um sono reparador foram melhores do que aquelas de gozamos actualmente.
No entanto, para quem sofre de insónias não é um grande alívio saber que quando comparado com 99% dos nossos ancestrais, hoje temos camas melhores, cobertores melhores, casas melhores e menos pragas nocturnas. Mas persiste esta barreira invisível, e se Thompson procurou Ekirch com a esperança de descobrir uma senha secreta para entrar no reino do sono, este não demorou muito a sacudir-lhe as ilusões, lembrando que a História não é um livro de auto-ajuda. Só resta, assim, àqueles de nós que se vêm trancados do lado de fora, incapazes de se distrair do mundo, o consolo de sabermos que não somos vítimas de um qualquer feitiço contemporâneo. E ao menos temos a companhia dos muitos que escavaram durante essas horas de ausência de sono galerias profundas onde os ecos se repercutem numa estranha e inquietante duração, com vozes confundindo-se, sem receitas, mas afinando a consciência face a essa condenação que nos ensina muito sobre a vida. Leia-se, a este respeito o poema de Ted Kooser, com o título “O suspiro”: “Estás deitado na tua e cama e suspiras,/ sentes as molas bem no interior do colchão/ cantarem juntas na mesma nota sem ênfase,/ troçando da tua tristeza. É duro –/ não o colchão, a vida./ A vida é dura. Todo este tempo/ julgaste que podias confiar/ na tua própria cama, no teu infortúnio./ Julgavas que ias para a cama sozinho.”