Stendhal gostava da farra, mas nunca foi rico, bem pelo contrário. Vagueando por Paris na terceira década de 1800, dizia a quem o quisesse ouvir que não era vergonha nenhuma morrer na rua. Pérfida, cínica, a Senhora da Gadanha ouviu-o, escondida como sempre nalguma esquina sinistra. No dia 23 de Março de 1842, com 59 anos, a morte entrou-lhe pela cabeça e desarrumou-lhe o sistema sanguíneo do cérebro. Ia na rua quando uma apoplexia o atirou de borco no passeio.
Uma cena triste, própria da cobardia visceral dessa velha infame. Stendhal não se chamava Stendhal, era Henri-Marie Beyle, andou na guerra, apaixonou-se por um milhar de mulheres e escreveu O Vermelho e o Negro, o retrato de um jovem plebeu, Julien Sorel, que se esforça por subir na teimosa hierarquia social através do seu talento. Filho de um carpinteiro, sem a sorte do Nazareno, prefere gastar o seu tempo na leitura e no sonho de ser um soldado de Napoleão do que a esgravatar na plaina da marcenaria. Porque tinha tudo para que a existência lhe corresse mal, Julien (título inicial do livro) morre decapitado, algo que estava muito na moda entre os franceses.
Escrevo isto com o sol a bater-me de chapa na varanda, faço de conta que é Verão, e relembro a velha historieta de um Stendhal aflito sem uma moeda que fosse para pagar uma orchata, correndo todas as manhãs bem cedo ao seu livreiro para saber das vendas da sua última obra, Fisiologia do Amor (em francês simplesmente De l’Amour), uma intrincada filosofia sobre a aquilo que ele chamava o nascimento e a cristalização do amor. O livreiro de Stendhal era um homem bondoso e paciente, que o estimava a ponto de lhe pôr nas mãos alguns adiantamentos eventuais.
Mas perante o facto de não ter conseguido despachar nem um exemplar, tentou animá-lo: “Meu querido amigo. Pode dizer-se que o seu livro é sagrado. Ninguém lhe toca”.