O aconselhamento científico independente em Portugal e as academias


Em que medida é que a ciência contribui para a definição das políticas públicas e quais as instituições do sistema científico e tecnológico que para isso contribuem?


Os grandes desafios que vivemos, das pandemias às alterações climáticas, da inteligência artificial às fake news, trouxeram a ciência para primeiro plano. Evidenciaram também os desafios na forma como a ciência e o conhecimento, através do aconselhamento científico independente, são incorporados nas políticas públicas e nas decisões políticas.
A sociedade, em geral, partilha uma percepção generalizada da importância da ciência e da tecnologia nas suas vidas, apesar dos “ludismos” a que também assistimos. Assiste-se, no entanto, ainda a alguma incerteza na forma como a ciência informa, serve e contribui para a definição de políticas, ou seja, em que medida é que a ciência contribui para a definição das políticas públicas e quais as instituições do sistema científico e tecnológico que para isso contribuem?
Estas lacunas foram recentemente evidenciadas no estudo “Science for Policy in Portugal” promovido pelo Joint Research Center da Comissão Europeia e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).[1]  Apontando algumas medidas fundamentais, o estudo identifica também uma situação anómala: o papel limitado das sociedades e das academias científicas portuguesas no aconselhamento científico, na promoção da reflexão e de estudos e no estabelecimento das pontes e da ligação entre a comunidade científica e os decisores políticos. Em artigo recente no Diário de Notícias [2] a eurodeputada Maria da Graça Carvalho reforçava também a importância do aconselhamento científico independente. Ainda mais recentemente, no âmbito da celebração dos 25 anos da FCT [3], o primeiro presidente da FCT Luís Magalhães defendia que a contribuição nacional para o topo da produção internacional de conhecimento tem que ser suportada por “… instrumentos de observação, análise, prospectiva e concertação com a comunidade científica”, distintos dos actuais, em forte interação com as instituições e com os cientistas individuais, que contribuam para a definição das políticas públicas nas áreas emergentes. 

As universidades, as unidades de investigação e os laboratórios associados têm as competências científicas e técnicas para sustentar uma parte importante deste aconselhamento. No entanto, representam também perspectivas institucionais específicas e nem sempre são o espaço ideal para o encontro, de forma independente, das múltiplas disciplinas necessárias para reflectir sobre os desafios societais de maior complexidade ou estudar cenários futuros de elevada interdisciplinaridade. 

Em muitos países cabe às academias científicas liderar esse processo de reflexão, produzir os estudos e as análises prospectivas, sistematizar o conhecimento sobre determinado tema científico ou sintetizar os consensos da comunidade científica. Estes estudos, sustentados por processos transparentes e coerentes, apoiam as decisões políticas, ou científicas/técnicas das instituições públicas, incluindo as instituições financiadoras. No caso das National Academies dos Estados Unidos[4] este papel está consagrado em lei aprovada por Abraham Lincoln em 1863, colocando a reputação e o trabalho das National Academies ao serviço de todo o governo federal. No Reino Unido, os estudos da Royal Society são exemplares na forma como sistematizam e contextualizam temas científicos de elevada complexidade[5].

Em Portugal, também a Academia das Ciências de Lisboa está preparada para responder a estes desafios e para conduzir estas reflexões e estudos prospectivos. Fundada a 24 de dezembro de 1779, foi concebida à semelhança das sociedades congéneres europeias que se desenvolveram durante o Iluminismo. Entre alguns dos seus ilustres sócios correspondentes estrangeiros contam-se Benjamim Franklin, Ramón y Cajal, Louis Pasteur, ou Albert Einstein, entre mais de uma dezena de prémios Nobel. Reúne mais de duas centenas de académicos das mais diversas áreas do conhecimento e da cultura, de múltiplas instituições científicas e universitárias do país. Tem uma tradição ímpar em Portugal e, ao longo dos seus mais de dois séculos de existência, tem também reflectido de forma crítica sobre a ciência em Portugal, como ilustrado nas suas Memórias, e protagonizado iniciativas de elevado impacto na sociedade portuguesa – a génese da Instituição Vacínica no início do séc. XIX e a liderança do académico Ricardo Jorge no final do séc. XIX no contexto da peste bubónica[6] são exemplos paradigmáticos, apropriados aos tempos que vivemos.
A oportunidade para estabelecer a Academia das Ciências de Lisboa como entidade central no aconselhamento científico independente é única. A aprovação dos seus novos estatutos, no final de 2021, permite a expansão das suas actividades. Reforça o forte movimento de abertura e ligação à sociedade, já evidenciada num conjunto de iniciativas recentes, desde novos ciclos de conferências ao Seminário dos Jovens Cientistas. Nos novos estatutos são criadas novas secções, em tópicos centrais na nossa sociedade, como as Ciências e Tecnologias da Informação ou Tecnologias, Conhecimento e Sociedade; o aumento do número de académicos acelerará o envolvimento de uma maior diversidade de cientistas e académicos e a actual Presidência da Academia das Ciências de Lisboa está fortemente empenhada em inscrever este objetivo no seu programa de atividades.

Sendo fortemente expectável que desafios futuros em Portugal e na Europa necessitarão de mais ciência, estudo e reflexão, o papel do aconselhamento científico independente será ainda mais importante; a Academia das Ciências pode assumir um papel central neste aconselhamento, semelhante ao que já faz para a língua portuguesa, reforçando afinal o lema da Academia das Ciências de Lisboa “Se não for útil aquilo que fazemos, a glória é vã”.

Instituto Superior Técnico e Academia das Ciências de Lisboa

[1] Simões, Vítor Corado (2021), ‘Science for Policy in Portugal’, Discussion Paper prepared for the workshop on Science for Policy across the EU: Portugal, organised by the European Commission’s Joint Research Centre (JRC) and the Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Portugal, November. 
[2] https://www.dn.pt/opiniao/ainda-nao-aprendemos-a-quantificar-incertezas-14408759.html
[3] https://youtu.be/jspp_cL0zwo 
[4] https://www.nap.edu 
[5] https://royalsociety.org/topics-policy/publications/ 
[6] http://www.acad-ciencias.pt/document-uploads/1159870_[2020]-rueff,-j.-(coord)—sars-cov-2-com-intro.pdf

O aconselhamento científico independente em Portugal e as academias


Em que medida é que a ciência contribui para a definição das políticas públicas e quais as instituições do sistema científico e tecnológico que para isso contribuem?


Os grandes desafios que vivemos, das pandemias às alterações climáticas, da inteligência artificial às fake news, trouxeram a ciência para primeiro plano. Evidenciaram também os desafios na forma como a ciência e o conhecimento, através do aconselhamento científico independente, são incorporados nas políticas públicas e nas decisões políticas.
A sociedade, em geral, partilha uma percepção generalizada da importância da ciência e da tecnologia nas suas vidas, apesar dos “ludismos” a que também assistimos. Assiste-se, no entanto, ainda a alguma incerteza na forma como a ciência informa, serve e contribui para a definição de políticas, ou seja, em que medida é que a ciência contribui para a definição das políticas públicas e quais as instituições do sistema científico e tecnológico que para isso contribuem?
Estas lacunas foram recentemente evidenciadas no estudo “Science for Policy in Portugal” promovido pelo Joint Research Center da Comissão Europeia e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).[1]  Apontando algumas medidas fundamentais, o estudo identifica também uma situação anómala: o papel limitado das sociedades e das academias científicas portuguesas no aconselhamento científico, na promoção da reflexão e de estudos e no estabelecimento das pontes e da ligação entre a comunidade científica e os decisores políticos. Em artigo recente no Diário de Notícias [2] a eurodeputada Maria da Graça Carvalho reforçava também a importância do aconselhamento científico independente. Ainda mais recentemente, no âmbito da celebração dos 25 anos da FCT [3], o primeiro presidente da FCT Luís Magalhães defendia que a contribuição nacional para o topo da produção internacional de conhecimento tem que ser suportada por “… instrumentos de observação, análise, prospectiva e concertação com a comunidade científica”, distintos dos actuais, em forte interação com as instituições e com os cientistas individuais, que contribuam para a definição das políticas públicas nas áreas emergentes. 

As universidades, as unidades de investigação e os laboratórios associados têm as competências científicas e técnicas para sustentar uma parte importante deste aconselhamento. No entanto, representam também perspectivas institucionais específicas e nem sempre são o espaço ideal para o encontro, de forma independente, das múltiplas disciplinas necessárias para reflectir sobre os desafios societais de maior complexidade ou estudar cenários futuros de elevada interdisciplinaridade. 

Em muitos países cabe às academias científicas liderar esse processo de reflexão, produzir os estudos e as análises prospectivas, sistematizar o conhecimento sobre determinado tema científico ou sintetizar os consensos da comunidade científica. Estes estudos, sustentados por processos transparentes e coerentes, apoiam as decisões políticas, ou científicas/técnicas das instituições públicas, incluindo as instituições financiadoras. No caso das National Academies dos Estados Unidos[4] este papel está consagrado em lei aprovada por Abraham Lincoln em 1863, colocando a reputação e o trabalho das National Academies ao serviço de todo o governo federal. No Reino Unido, os estudos da Royal Society são exemplares na forma como sistematizam e contextualizam temas científicos de elevada complexidade[5].

Em Portugal, também a Academia das Ciências de Lisboa está preparada para responder a estes desafios e para conduzir estas reflexões e estudos prospectivos. Fundada a 24 de dezembro de 1779, foi concebida à semelhança das sociedades congéneres europeias que se desenvolveram durante o Iluminismo. Entre alguns dos seus ilustres sócios correspondentes estrangeiros contam-se Benjamim Franklin, Ramón y Cajal, Louis Pasteur, ou Albert Einstein, entre mais de uma dezena de prémios Nobel. Reúne mais de duas centenas de académicos das mais diversas áreas do conhecimento e da cultura, de múltiplas instituições científicas e universitárias do país. Tem uma tradição ímpar em Portugal e, ao longo dos seus mais de dois séculos de existência, tem também reflectido de forma crítica sobre a ciência em Portugal, como ilustrado nas suas Memórias, e protagonizado iniciativas de elevado impacto na sociedade portuguesa – a génese da Instituição Vacínica no início do séc. XIX e a liderança do académico Ricardo Jorge no final do séc. XIX no contexto da peste bubónica[6] são exemplos paradigmáticos, apropriados aos tempos que vivemos.
A oportunidade para estabelecer a Academia das Ciências de Lisboa como entidade central no aconselhamento científico independente é única. A aprovação dos seus novos estatutos, no final de 2021, permite a expansão das suas actividades. Reforça o forte movimento de abertura e ligação à sociedade, já evidenciada num conjunto de iniciativas recentes, desde novos ciclos de conferências ao Seminário dos Jovens Cientistas. Nos novos estatutos são criadas novas secções, em tópicos centrais na nossa sociedade, como as Ciências e Tecnologias da Informação ou Tecnologias, Conhecimento e Sociedade; o aumento do número de académicos acelerará o envolvimento de uma maior diversidade de cientistas e académicos e a actual Presidência da Academia das Ciências de Lisboa está fortemente empenhada em inscrever este objetivo no seu programa de atividades.

Sendo fortemente expectável que desafios futuros em Portugal e na Europa necessitarão de mais ciência, estudo e reflexão, o papel do aconselhamento científico independente será ainda mais importante; a Academia das Ciências pode assumir um papel central neste aconselhamento, semelhante ao que já faz para a língua portuguesa, reforçando afinal o lema da Academia das Ciências de Lisboa “Se não for útil aquilo que fazemos, a glória é vã”.

Instituto Superior Técnico e Academia das Ciências de Lisboa

[1] Simões, Vítor Corado (2021), ‘Science for Policy in Portugal’, Discussion Paper prepared for the workshop on Science for Policy across the EU: Portugal, organised by the European Commission’s Joint Research Centre (JRC) and the Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Portugal, November. 
[2] https://www.dn.pt/opiniao/ainda-nao-aprendemos-a-quantificar-incertezas-14408759.html
[3] https://youtu.be/jspp_cL0zwo 
[4] https://www.nap.edu 
[5] https://royalsociety.org/topics-policy/publications/ 
[6] http://www.acad-ciencias.pt/document-uploads/1159870_[2020]-rueff,-j.-(coord)—sars-cov-2-com-intro.pdf