Um dia é o que basta, disse-nos ele e da forma mais enfática possível. Uma porção ínfima da existência estendendo-se em todas as direcções, tocando tudo, partilhando o suspiro, metendo-se na pele das coisas, perfurando não o coração das trevas nem tentando orquestrar uma epifania de qualquer espécie, mas refocilando nos aspectos mais rudes e brumosos da existência, apanhando a imensa história a meio e indagando sobre o que houve antes, para onde irá a seguir, especulando sobre os tantos motivos, a infinidade de indecisões. Foi um romance para virar tudo do avesso, não deixar nada intocado. E, de passagem, destruir a própria altivez e solenidade deste género. Trata-se, como assinalou Francisco Umbral, de reduzir tudo ao homem, devolvê-lo ao seu tamanho real e pouco mais. E, por isso, “Ulisses é a trituradora do homem romântico”. Um romance que se cose a partir de anotações em guardanapos, pedaços de papel de toda a ordem, sacudindo dos bolsos todas as migalhas do escárnio doloroso, tentando captar o bulício das ruas, o trabalho ininterrupto de uma vida para se medir com séculos de cultura, mas sem se esquivar à sua própria hora, registando o pulso da vida nos seus fluxos e incontinências, nos aspectos em que o próprio sentido e a ordem das coisas parecem duvidar de si mesmos, mergulhando num estado anárquico, como acontece ao pensamento, ou mesmo indo mais fundo, perdendo o horizonte em troca de profundezas oníricas. Enquanto a posteridade se senta a um canto a tomar notas para depois, Joyce afunda-se nos aspectos mais banais ou frívolos, sórdidos também, erige uma estrondosa sinfonia em homenagem às coisas de baixo, e explora ao limite as variações dentro do idioma de forma a captar tudo. E tudo se passa num dia, 16 de Junho de 1904. E se acção que nos relata chega a ser bastante trivial, o verdadeiro protagonista não são os três personagens, mas a própria cultura, pois “sem o barroquismo do latim e grego que as reveste”, diz-nos Umbral, Joyce ter-se-ia ficado por uma noveleta realista. “O seu quixotismo está em fazer um livro que rompa com os clássicos, com a religião e com a lógica, de forma que o livro é autobiografia no sentido em que James Joyce está a resolver nele uma querela contra os moinhos/gigantes do jesuitismo e do classicismo, duas causas que odeia e ama”, defende o escritor espanhol, notando que a grande proeza de Joyce foi ter feito primeiro o livro o qual, por sua vez, depois criou os seus leitores, que antes não existiam.
Toda a verdadeira profanação tem de começar por reconhecer o sagrado, e Joyce o que se propôs foi dinamitar a torre, deixar nas consciências um vírus que atinja todos os momentos em que a cultura degenera em estagnação, e é por isso, no entender de Javier Marías, os seus personagens são “charlatães interiores”, entregando-se a alguma intrujice num nível mais recomplicado e íntimo. No fundo, aquilo a que este irlandês se propôs foi dar cabo da primeira das leis, aquilo que nos parece apropriado, esse regime das decências, dos valores mais estimáveis e oferecidos como exemplo. E se todo o grande livro se converte em lápide, em totem e tabu, em espingarda, em escudo, em título nobiliárquico, como nos diz Umbral, Joyce tinha claro que só podia contrariar tudo isso escrevendo uma prodigiosa blasfémia, um livro que impedisse a tentação que há de converter tudo em objecto pedagógico, todas essas obras, mesmo as que rangem os dentes nas trevas, acabam de algum reféns dos educadores e dos ministros, “os quais pensam que é preciso tirar desse calhamaço algum proveito moral ou cívico”. Ora, o aspecto em que Joyce provou uma determinação incomparável prende-se com os tantos sacrifícios a que se sujeitou ao longo dos anos, e se é tão persistente o anedotário à sua volta, isso deve-se a um tentativa de caricaturar um artista que engoliu todo o tipo de humilhações e persistiu no seu esforço para desmantelar esse decoro a que a sociedade sempre se agarra.
Em “Vidas Escritas”, Javier Marías diz-nos que Joyce “parece ser um desses casos de artistas tão pródigos em gestos de genialidade que acabam por persuadir os seus contemporâneos e várias gerações mais de que efectivamente são e foram génios sem dúvida e remissão”, e acrescenta que, em sintonia com esses gestos, ele se tornou célebre porque não lhe importava se o liam ou não. Isto é um disparate de todo o tamanho, mas está em linha com o registo que tende a dominar nessas vinhetas que, fingindo celebrar os grandes génios da literatura, na verdade fazem deles seres expropriados da sua diabólica lucidez, e isto numa crítica que usualmente se vende como desempoeirada e iconoclasta, mas que insiste em rebaixar a condição destes autores a uns mitos menores propostos à circulação e propagados sobretudo entre aqueles que assim se dispensam de um confronto com as obras. O facto é que quando Joyce ainda era vivo, além dos tantos ataques que foram dirigidos aos seus livros, e a nenhum mais do que Ulisses, que foi considerado monstruoso do ponto de vista técnico, anti-humanista, sórdido e excrementício, à sua volta e das suas não poucas peculiaridades, foi-se tecendo um retrato achincalhante, dizendo-se que era misantropo, viciado em cocaína, um espião austríaco nos anos da II Guerra, e que Ulisses não passava de uma enxurrada textual que tinha nela segredos codificados de modo a confundir os serviços de inteligência britânicos. Corriam rumores de que não passava um dia sem que se banhasse nas águas do Sena, que vivia cercado de espelhos, que não ia para a cama sem umas luvas negras, entre tantas outras inanidades do mesmo género. Mas como frisou a escritora irlandesa Edna O’Brien num ensaio publicado na The New Yorker, sempre se falou menos das mais de vinte mil horas que lhe foram necessárias para escrever a sua obra-prima, ou dos problemas de saúde que o martirizavam, desde logo os de visão, assolado por glaucoma, cataratas, inflamação da íris, dissolução da retina. Ao todo, ter-se-á submetido a mais de duas dezenas de operações aos olhos, e isto não impediu que viesse a ficar praticamente cego. Sofria ainda de artrite, e queixava-se da desordem nos nervos, tendo a sensação de ouvir o gorjeio de carriças. Tinha o cérebro num pandemónio, e a aflição era tal que recorria a uma série de fármacos em busca de qualquer melhoria. Nada disso ajudava à escrita, e Joyce viu-se obrigado a um sem número de estratagemas para contrariar as limitações a que estava sujeito, desde logo a incapacidade de entender o que escrevia, sendo forçado a escrever com carvão para aumentar o traço ou a recorrer a tintas de diferentes cores. Vivia apavorado e ia diariamente para a Praça da Concórdia tentando contar o número de candeeiros que a sua vista alcançava. E além do receio de perder a visão, tinha ainda o medo de estar a enlouquecer.
Se a sua principal influência foi Homero isto não se prendia apenas com a alta conta em que tinha os seus próprios talentos, mas em muitos momentos parecia consolar-se com o exemplo daquele filho bastardo que veio de um ambiente humilde, levou uma vida dura e solitária, que viajou na juventude pelo Mediterrâneo e acabou por ficar cego, obrigado a ganhar a vida como um mendigo, mas que, dotado de uma imaginação e memória prodigiosas, recitava os seus versos, limando-os até à perfeição, compensando com o ouvido a perda da visão, treinando-se nessa arte de ferir com o veneno de umas poucas palavras, produzindo um súbito transporte, sendo capaz de com as sensações, e, não por mero capricho, mas por um instinto de sobrevivência, isto depois de tantas vezes ter sido enxotado das cidades por onde passava, ficando a dever o seu nome à condição de forasteiro e parasita: “Homeros”, ou seja, “refém”. Ao virar-se para o grande bardo grego, Joyce estava a conjurar os seus próprios dons, tendo sido desde cedo um bom ouvinte, abençoado com uma memória extraordinária. Conseguia lembrar-se de todas as notas de uma música depois de uma só audição, e, no fundo, era um desses assobiadores inveterados, só que em vez de gastar as suas inverosímeis melodias com o ouvido de quem estivesse mais próximo, baixava-as ao papel, e ali podia criar efeitos de simultaneidade e deter a caudalosa torrente na forma como cada coisa sugeria outra, cada frase dava um passo e empurrava as coisas adiante sem abrir mão do que viera antes. Podia assim estar imerso nos ritmos e na linguagem da Bíblia e da liturgia católica, do mesmo modo que era capaz, a qualquer momento, de citar longas passagens das suas obras preferidas, e diz-se que, pela altura que ele deixou a universidade, Joyce era uma biblioteca ambulante. Tal como Homero, na sua existência acidentada, onde quer que fosse levava atrás de si as coisas que mais lhe importavam, e se algumas vezes lhe parecia que a imaginação lhe faltava, sabia que podia contar com os seus poderes de rememoração para se valer do génio do passado. Confiante disso mesmo, certa vez terá confidenciado a um amigo que a imaginação não era mais do que a memória.
Além disso, era também a ela que recorria para reaver a sua Dublin natal. Foi esse, no fundo, o preço mais alto que pagou para poder escrever da forma como o fazia. Persistiu, assim, no seu “exílio voluntário”, sem nunca se preocupar excessivamente com dinheiro, e sempre que a sorte o favorecia, esbanjava o que tinha sendo muitíssimo generoso com a família e os amigos. Estava habituado desde a infância a uma existência nómada, sendo que, depois de ter entrado na escola, a família mudou-se nove vezes em onze anos, muitas vezes durante a noite, para escapar à atenção dos credores. Ulisses foi escrito em três cidades – Zurique, Trieste, e Paris. Nas duas décadas que passou na capital francesa, teve 18 moradas diferentes. Não só era muito cioso de tudo o que publicava, a ponto de a primeira edição de Ulisses ter-se arrastado num desgastante processo (tanto para Sylvia Beach, a proprietária da livraria Shakespeare and Company, que editou o livro, como para os tipógrafos), como estava atento a tudo o que se escrevia sobre os seus livros na imprensa, e fazia questão de escrever em resposta aos críticos que elogiavam o seu trabalho. Mas foi só no final da vida que começou a ver algum lucro em resultado da venda dos direitos, isto depois de Ulisses ter sido banido por 12 anos nos EUA e por 14 no Reino Unido, e ao longo de todo o período que passou em Paris dependeu do apoio de alguns mecenas. Mas como vinca Louis Menand num extenso perfil que lhe dedicou nas páginas da The New Yorker, com toda a sua persistência Joyce estabeleceu esse princípio que diz que o artista deve gozar de absoluta liberdade para retratar o mundo tal como ele o encontra. O preço que pagou por isso foi muito além do desdém e dos processos por obscenidade que foram movidos àqueles que primeiro publicaram capítulos de Ulisses em revistas literárias. Depois de 1912, nunca mais voltou a pôr os pés em Dublin, e, no entanto, tudo o escreveu nunca teve outro cenário, e além do recurso à memória, tinha mapas da cidade, todo um arquivo de documentação histórica sobre a topografia de Dublin, e na correspondência com familiares e amigos, não se cansava de lhes pedir informações com um grau de detalhe que chegava a parecer absurdo, desde listas de lojas, descrições dos toldos, das montras, ou o número de degraus na descida até à rua Eccles, 7. A sua tia Josephine chegava a confiar pequenas tarefas de reportagem, como da vez em que lhe pediu que indagasse se, durante o inverno de 1893, os canais tinham congelado o suficiente para que as pessoas pudessem patinar. A escrita mantinha-o ligado à cidade e às pessoas que deixara para trás, e justificava o facto de não ter podido sequer estar presente no funeral do pai. E Ulisses é um repositório que compensa a ausência e a distância, tendo gravado os sons e as expressões, a música das ruas, a venalidade das conversas, tudo isso ajudou a fermentar a sua tinta e criar aquele efeito de um “desenrolar ininterrupto” das coisas, fazendo da linguagem o verdadeiro protagonista do romance. São 18 capítulos, e para cada um Joyce recorreu a variações de tom e estilo, tentando arrancar uma épica a partir de ocorrências ou peripécias bastante triviais, e toda a monumentalidade recai nesse desejo de recriar o efeito de proximidade, a intimidade com as coisas, as pessoas e os lugares. Joyce reconhece essa condição que nos torna reféns de um desejo de pertença, não tanto de dar um sentido ulterior à vida, mas de capturá-la no seu fluxo, para que a morte perca o seu domínio sobre nós. E elegendo o idioma como arma e estratégia para esse fim, esforça-se por ir às raízes históricas do inglês para fazer vir à superfície essa composição coral como só a memória a pode suportar. Com isso, Joyce não apenas rebenta com essa noção cristalizada do que pode e deve fazer o romance, como altera o próprio sentido da leitura e a posição do leitor face a um texto. A escritora irlandesa Anne Enright sublinha que ler Joyce provoca muitas vezes a sensação estrénua de se estar consumido por um sonho, do mesmo modo como um autor fica prisioneiro de uma ficção quando a escreve. Assim, o que está em causa em Ulisses já não é a compreensão desses acontecimentos que produzem enormes consequências, mas da articulação das partículas elementares na relação que mantemos com o mundo, a forma como o pensamento e as sensações se entretecem, o esforço para compreender mas também o gozo de se deixar levar na torrente sem conseguir alcançar toda a complexidade, deixando que o momento seja mais forte e nos ultrapasse, tal como a vida. Ulisses é uma épica na própria interioridade do leitor, e Enright diz-nos que as tantas voltas, suspensões, os efeitos de voluptuosidade e graça, mas também as zonas obscuras, essas passagens crípticas que tantas vezes nos repelem, foram engendradas de modo a fazer-nos sentir inseguros, a experimentar todo o leque de sensações possíveis. “Isto faz deste livro uma obra profundamente democrática. Ulisses é um texto vivo, em permanente mutação e profundamente humano, além de carregado de humor. É uma obra que torna o mundo maior.”
E se tudo o que se disse parecem argumentos para convencer o leitor a aceitar o desafio e pegar no livro pela primeira vez ou tentar pela enésima voltar a ele, se este livro se tornou uma espécie de montanha que há que escalar e tantas vezes tem coroado as listas desses calhamaços mais vezes deixados a meio, Enright diz-nos que este não é um desses livros que seja possível realmente ler-se até ao fim. No fundo, o que Joyce fez foi colocar-nos perante um livro que, tal como a vida, se apanha sempre a meio. A nossa perspectiva pode variar, podemos ter nascido ontem ou vir a morrer amanhã, isso é um detalhe como outro qualquer. Ulisses continua.