A verdade do Ministério Público


Transformar a verdade obtida durante uma investigação numa posterior verdade processual-probatória, justificando-a com provas consistentes e reprodutíveis em julgamento, é a função essencial do MP.


Muitos dos comentários que têm sido feitos nos media a alguns despachos do Ministério Público (MP) e às suas acusações assentam na dificuldade de encontrar e usar grelhas adequadas para uma sua leitura correta.

Convém, por isso, recordar que as metodologias, objetivos e descrição das verdades que se produzem e reproduzem nos media, nos meios da investigação policial, nas peças produzidas pelo MP e, depois, nas sentenças judiciais, podendo parecer semelhantes, não coincidem necessariamente.

Não coincidem, nem, em rigor, devem coincidir, pois obedecem a exigências, procedimentos e fins distintos.

A verdade jornalística, mesmo quando obtida através das melhores práticas deontológicas, tende, apenas, a descrever uma situação que parece razoavelmente consistente.

Os media procuram, sobretudo, informar os leitores, ouvintes ou telespetadores da ocorrência de um facto que merece chamar a sua atenção crítica.

É evidente que, quando séria e não destinada a favorecer outros interesses que não os de uma informação objetiva, tal verdade jornalística não pode restringir-se a evidenciar uma simples impressão.

 Por mais evidente que tal verdade possa parecer, deve ser fundamentada.

Em todo o caso, a finalidade dessa verdade jornalística é a revelação de uma situação que, de acordo com tal critério, merece ser publicamente conhecida.

Já a verdade policial funda-se numa abordagem inicial algo diferente, pois diferente é também o seu objetivo.

Esta verdade visa, antes do mais, permitir interromper a atividade criminosa – a existir – ou a prevenir a sua repetição e repristinar, assim, e tão rápido quanto possível, a paz pública.

São essas as funções essenciais da Polícia: interromper a atividade criminosa e reconstituir a paz pública que aquela perturbou.

Por isso, ela dirige-se, primeiramente, a estabelecer a convicção do agente investigador sobre quem delinquiu para poder agir naquele sentido.

Claro está que, para isso, o agente policial deve procurar deduzir e reconstituir, a partir da notícia do crime, o modo de operar do seu agente e, portanto, também, a sua motivação, buscando e recolhendo, entretanto, as provas que surgirem.

Se isso acontecer – se, por essa via, os criminosos forem impedidos de continuar a delinquir e a ordem pública for restabelecida –, o essencial da sua missão está, desde logo, cumprido.

De certo modo, assim, as verdades jornalísticas e processuais aproximam-se e compaginam-se.

Ambas pressupõem também, mesmo que por motivos diferentes, alguma satisfação aos cidadãos.

Daí, a convocatória frequente que a polícia faz da comunicação social para expor a sua verdade.

Competindo, em certos casos, verdades policiais e jornalísticas complementam-se e servem-se mutuamente em outros tantos.

Daí, também, alguma convivência fácil entre ambas.

Ora, é precisamente aqui que entra o MP e o seu apuramento e reconstituição dos factos.

A lógica das verdades até então obtidas torna-se, então, mais complexa, mais formal e menos evidente para os cidadãos comuns.

Essa nova lógica introduzida pelo MP, mesmo sem contrariar as anteriores e assentando muitas vezes nelas, passa a estar sujeita a uma maior exigência jurídico-formal, pois é destinada a um fim diverso e já de posterior concretização.

Com efeito, se, num primeiro momento, a interrupção da atividade criminosa pela polícia é suficiente e serve para apaziguar a opinião pública, num segundo instante, a sociedade impõe, também, a responsabilização e punição do delinquente por um tribunal independente.

Esta responsabilização, para não se transformar em pura vindicta, deve, por isso, obedecer a um processo formal, ponderado e exigente de convalidação probatória dos factos e da responsabilidade do seu agente.

Para tanto, é necessário que o MP leve o caso a juízo e formule uma acusação.

Neste plano, não é já satisfatória a imediata convicção do investigador.

Pela mesma razão, a verdade que o MP propõe não se basta, também, com a convicção do acusador.

Ela é já uma verdade sucessivamente elaborada e, por isso, destinada a ser reconstituída e explicada a posteriori e de acordo, apenas, com os elementos de prova ponderados para serem considerados válidos e, além disso, viáveis em julgamento.

Transformar, pois, a verdade mais impressiva, obtida durante uma investigação, numa posterior verdade processual-probatória, justificando-a com provas consistentes e reprodutíveis em julgamento, é a função essencial do MP.

A ele incumbe trazer da vida real para os tribunais uma verdade que, sendo já decantada por inúmeros filtros legais, os juízes podem, ainda assim, reavaliar e revalidar com o mínimo risco de errarem.

Pegando na investigação que permitiu identificar o criminoso e a sua atividade delinquente e indicando, a pari passu, na narrativa acusatória, os correspondentes elementos de prova que a hão- de comprovar ante um tribunal, é o trabalho de reelaboração e fixação da verdade que compete ao MP.

Toda a verdade que o MP persegue e deve edificar na sua narrativa acusatória só se destina e justifica, pois, na plausibilidade da sua reprodução e comprovação em juízo.

Só esta lhe interessa e só por ela deve bater-se, enquanto, com objetividade e isenção, a julgar sustentável.

Este é, aliás, o traço comum – a função – que identifica o papel do MP nos sistemas continentais e anglo-saxónicos.

Transformar e depurar uma verdade – uma convicção – obtida numa investigação preliminar numa proposta de verdade consistente e comprovável, depois, em juízo.

No fundo, construir e apresentar uma proposta de decisão judicial, devidamente fundamentada que, portanto, o tribunal possa adotar sem motivo para dúvidas.

Por isso, ela não deve consistir numa hipótese fundada numa simples convicção subjetiva do magistrado do MP – por mais verosímil que esta até possa ser – mas, deve, antes, constituir uma cuidada compaginação dos factos que se descrevem acompanhados dos correspondentes e consistentes elementos de prova.

Pode ser uma verdade objetiva, sem adornos, mas deve, precisamente, sê-lo, quando estes não ajudarem, e antes complicarem, a função da sua essencial comprovação pelo tribunal.

Ora, esta distinção das diversas metodologias existentes para apresentar e defender e validar uma verdade, em diferentes palcos da vida social e institucional, não é facilmente compreensível fora do mundo judiciário e, em alguns casos, mesmo dentro dele.

É ela que proporciona, porém, muita da demagogia mediática que envolve a atividade judiciária e, além disso, alguns dos problemas no relacionamento interno do MP, quando, além do mais, este é representado por protagonistas diferentes nas distintas fases processuais.

Assumir esta dificuldade e, sem complexos, repercuti-la, criticamente, numa reavaliação própria da cultura de trabalho e de organização do MP parece, por isso, hoje mais do que nunca, fundamental.

A verdade do Ministério Público


Transformar a verdade obtida durante uma investigação numa posterior verdade processual-probatória, justificando-a com provas consistentes e reprodutíveis em julgamento, é a função essencial do MP.


Muitos dos comentários que têm sido feitos nos media a alguns despachos do Ministério Público (MP) e às suas acusações assentam na dificuldade de encontrar e usar grelhas adequadas para uma sua leitura correta.

Convém, por isso, recordar que as metodologias, objetivos e descrição das verdades que se produzem e reproduzem nos media, nos meios da investigação policial, nas peças produzidas pelo MP e, depois, nas sentenças judiciais, podendo parecer semelhantes, não coincidem necessariamente.

Não coincidem, nem, em rigor, devem coincidir, pois obedecem a exigências, procedimentos e fins distintos.

A verdade jornalística, mesmo quando obtida através das melhores práticas deontológicas, tende, apenas, a descrever uma situação que parece razoavelmente consistente.

Os media procuram, sobretudo, informar os leitores, ouvintes ou telespetadores da ocorrência de um facto que merece chamar a sua atenção crítica.

É evidente que, quando séria e não destinada a favorecer outros interesses que não os de uma informação objetiva, tal verdade jornalística não pode restringir-se a evidenciar uma simples impressão.

 Por mais evidente que tal verdade possa parecer, deve ser fundamentada.

Em todo o caso, a finalidade dessa verdade jornalística é a revelação de uma situação que, de acordo com tal critério, merece ser publicamente conhecida.

Já a verdade policial funda-se numa abordagem inicial algo diferente, pois diferente é também o seu objetivo.

Esta verdade visa, antes do mais, permitir interromper a atividade criminosa – a existir – ou a prevenir a sua repetição e repristinar, assim, e tão rápido quanto possível, a paz pública.

São essas as funções essenciais da Polícia: interromper a atividade criminosa e reconstituir a paz pública que aquela perturbou.

Por isso, ela dirige-se, primeiramente, a estabelecer a convicção do agente investigador sobre quem delinquiu para poder agir naquele sentido.

Claro está que, para isso, o agente policial deve procurar deduzir e reconstituir, a partir da notícia do crime, o modo de operar do seu agente e, portanto, também, a sua motivação, buscando e recolhendo, entretanto, as provas que surgirem.

Se isso acontecer – se, por essa via, os criminosos forem impedidos de continuar a delinquir e a ordem pública for restabelecida –, o essencial da sua missão está, desde logo, cumprido.

De certo modo, assim, as verdades jornalísticas e processuais aproximam-se e compaginam-se.

Ambas pressupõem também, mesmo que por motivos diferentes, alguma satisfação aos cidadãos.

Daí, a convocatória frequente que a polícia faz da comunicação social para expor a sua verdade.

Competindo, em certos casos, verdades policiais e jornalísticas complementam-se e servem-se mutuamente em outros tantos.

Daí, também, alguma convivência fácil entre ambas.

Ora, é precisamente aqui que entra o MP e o seu apuramento e reconstituição dos factos.

A lógica das verdades até então obtidas torna-se, então, mais complexa, mais formal e menos evidente para os cidadãos comuns.

Essa nova lógica introduzida pelo MP, mesmo sem contrariar as anteriores e assentando muitas vezes nelas, passa a estar sujeita a uma maior exigência jurídico-formal, pois é destinada a um fim diverso e já de posterior concretização.

Com efeito, se, num primeiro momento, a interrupção da atividade criminosa pela polícia é suficiente e serve para apaziguar a opinião pública, num segundo instante, a sociedade impõe, também, a responsabilização e punição do delinquente por um tribunal independente.

Esta responsabilização, para não se transformar em pura vindicta, deve, por isso, obedecer a um processo formal, ponderado e exigente de convalidação probatória dos factos e da responsabilidade do seu agente.

Para tanto, é necessário que o MP leve o caso a juízo e formule uma acusação.

Neste plano, não é já satisfatória a imediata convicção do investigador.

Pela mesma razão, a verdade que o MP propõe não se basta, também, com a convicção do acusador.

Ela é já uma verdade sucessivamente elaborada e, por isso, destinada a ser reconstituída e explicada a posteriori e de acordo, apenas, com os elementos de prova ponderados para serem considerados válidos e, além disso, viáveis em julgamento.

Transformar, pois, a verdade mais impressiva, obtida durante uma investigação, numa posterior verdade processual-probatória, justificando-a com provas consistentes e reprodutíveis em julgamento, é a função essencial do MP.

A ele incumbe trazer da vida real para os tribunais uma verdade que, sendo já decantada por inúmeros filtros legais, os juízes podem, ainda assim, reavaliar e revalidar com o mínimo risco de errarem.

Pegando na investigação que permitiu identificar o criminoso e a sua atividade delinquente e indicando, a pari passu, na narrativa acusatória, os correspondentes elementos de prova que a hão- de comprovar ante um tribunal, é o trabalho de reelaboração e fixação da verdade que compete ao MP.

Toda a verdade que o MP persegue e deve edificar na sua narrativa acusatória só se destina e justifica, pois, na plausibilidade da sua reprodução e comprovação em juízo.

Só esta lhe interessa e só por ela deve bater-se, enquanto, com objetividade e isenção, a julgar sustentável.

Este é, aliás, o traço comum – a função – que identifica o papel do MP nos sistemas continentais e anglo-saxónicos.

Transformar e depurar uma verdade – uma convicção – obtida numa investigação preliminar numa proposta de verdade consistente e comprovável, depois, em juízo.

No fundo, construir e apresentar uma proposta de decisão judicial, devidamente fundamentada que, portanto, o tribunal possa adotar sem motivo para dúvidas.

Por isso, ela não deve consistir numa hipótese fundada numa simples convicção subjetiva do magistrado do MP – por mais verosímil que esta até possa ser – mas, deve, antes, constituir uma cuidada compaginação dos factos que se descrevem acompanhados dos correspondentes e consistentes elementos de prova.

Pode ser uma verdade objetiva, sem adornos, mas deve, precisamente, sê-lo, quando estes não ajudarem, e antes complicarem, a função da sua essencial comprovação pelo tribunal.

Ora, esta distinção das diversas metodologias existentes para apresentar e defender e validar uma verdade, em diferentes palcos da vida social e institucional, não é facilmente compreensível fora do mundo judiciário e, em alguns casos, mesmo dentro dele.

É ela que proporciona, porém, muita da demagogia mediática que envolve a atividade judiciária e, além disso, alguns dos problemas no relacionamento interno do MP, quando, além do mais, este é representado por protagonistas diferentes nas distintas fases processuais.

Assumir esta dificuldade e, sem complexos, repercuti-la, criticamente, numa reavaliação própria da cultura de trabalho e de organização do MP parece, por isso, hoje mais do que nunca, fundamental.