O filósofo alemão Peter Sloterdijk, uma figura fundamental da vida intelectual europeia nas últimas décadas, e que, devido ao seu gosto pela provocação é alguém a quem se devem grandes debates públicos, deu, este fim-de-semana, uma entrevista cheia de substância e com inflexões críticas clarificadoras em relação a questões que preenchem hoje os cabeçalhos da imprensa internacional. Com o título “A decadência europeia ainda é o mais atraente do mundo”, esta entrevista feita por Berna González Harbour, para o “El País”, começa por abordar o temor de uma invasão de larga escala por parte da Rússia no território da Ucrânia, e tenta explicar uma certa apatia que leva a que a população russa não pareça, de momento, muito preocupada com a mobilização de forças junto à fronteira com o país vizinho. "A ira surge onde a deceção se impõe (…). Na medida em que (…) não há sociedades políticas que não gerem deceções, a ira sempre aí está. E a alternativa à deceção é a resignação, que é o que há no Leste, na Rússia. A Rússia está povoada de gente que sofreu tais processos de promessas e deceções que já não acredita em nada. São mais cínicos, escolheram viver as suas vidas privadas e contentam-se por a política não os estorvar demasiado. É uma atitude que não é compatível com a vida em democracia. Esta, necessita de esperança, uma expectativa de que as coisas melhorem.”
Se nas últimas semanas, boa parte dos analistas de política internacional se têm esforçado por tentar perceber o que vai na cabeça do líder russo, Vladimir Putin, o alemão dá-nos a sua leitura dos atos e proferições com que este tem vindo a agitar a estabilidade mundial num período já de si bastante conturbado. “Putin pretende a liderança do que antes se chamava segundo mundo, mas sabe que o estilo de vida russo não é atrativo. Não tem nenhum encanto, nenhum soft power em absoluto. Enquanto os EUA, apesar de se terem desonrado com tantos erros, ainda tem esse lado encantador, o enorme poder dessa forma de vida. Nada é atrativo nas formas de vida da Rússia e da China. Até a decadência europeia é ainda o que há de mais atraente no mundo como forma de vida, seguida pelo que resta do sonho americano. Que destruiu e dececionou muito, mas do qual ainda resta algo.”
Aproveitando esta reflexão sobre a divisão que separa, hoje, o Ocidente do Leste da Europa, este pensador que já nos habituou às suas reflexões que se organizam como ensaios “político-psicológicos”, tenta formular uma ideia da condição humana, procurando uma vez mais sintetizar essas ideias que animam os europeus, as ilusões que os mobilizam. “O espírito do nosso tempo é algo que escapa a toda a definição. Mas, ainda assim, há algo no ar, e tal é que os europeus de hoje sentem um certo mal-estar pela sua debilidade política (…). Uma grande parte da nossa população ocidental elegeu já a resignação, já não acredita na política. Um importante sector da população na Europa elegeu o ‘privatism’, a prioridade da vida privada (…). Isto ajuda os políticos, porque ter pela frente uma população resignada torna o seu trabalho mais simples. Olha Boris Johnson. Todo o mundo percebeu que é um palhaço, que faz o que lhe dá na cabeça e que seria um erro levá-lo demasiado a sério. É a versão irónica da resignação (…). E o mesmo com os franceses, que sempre foram líderes em revoltas e agora estão cansados.”
Já no que toca à questão da imigração para a Europa, Sloterdijk diz-nos que os europeus têm vivido numa grande contradição, uma vez que, “segundo o nosso sistema de valores simbólico, estamos obrigados a mostrar uma hospitalidade e generosidade que poderíamos assumir, mas não queremos fazê-lo”. E o filósofo entende que isto se faz sentir sobretudo, nos países de Leste. Por outro lado, refere uma certa incoerência no humanismo progressista que hoje se parece ter tornado um regime que substituiu a função da religião, ao educar uma sensibilidade solidária, e diz-nos que “há uma urgência idealista por parte de sacerdotes, ativistas ou cidadãos que querem integrar o estrangeiro, feministas por exemplo que acolhem vítimas de violência sexual, mas é uma contradição porque não queremos o que deveríamos e nunca conseguiremos que a maioria da população queira o que deve”. No entender de Sloterdijk, o dever que se impõe, hoje, aos filósofos e intelectuais “é causar dano à estupidez”. Uma outra missão é partilhada com artistas e religiosos: “desenvolver um olhar sobre o sentido e o sem sentido da vida e torná-lo mais compreensível. Mas este não é propriamente um trabalho analítico, antes uma missão lírica, e este tipo de perguntas podem ser respondidas pela poesia e qualquer outra forma de consolo. Somos criaturas necessitadas de consolo. Ou, pelo menos, de anestesia.”
Quanto ao impacto que a pandemia de covid-19 teve na atitude das pessoas, na altura em que entramos no terceiro ano desta calamidade que já se vai entranhando em nós e alterando hábitos e comportamentos, Sloterdijk não tem dúvidas de que o nível geral da paranoia aumentou. Em seu entender, antes da pandemia, estávamos a receber, a partir dos EUA, “um novo tipo de discurso social, um jogo de linguagem criado pelo feminismo americano sobre a masculinidade tóxica. Isso nasceu há 10 anos, ou mais. A cada pessoa complicada qualificam-na como sociopata e estão dispostos a definir os demais com características patológicas. A covid-19 só exacerbou essa tendência. Por outro lado, [durante este período pandémico] entendemos a importância da amizade, da confiança, da reflexão como qualidades meditadas da vida, toda a sociedade se transformou numa espécie de mosteiro durante o confinamento. Vimos algo incrivelmente precioso: redescobrir a beleza dos momentos vazios, a qualidade meditativa da vida.”
Por fim, o filósofo reflete sobre os perigos existenciais que as atuais gerações enfrentam, e à pergunta de se está ao nosso alcance salvar o planeta, responde com um rotundo não. “Ninguém pode salvar o planeta, porque o planeta não precisa de um salvador. É a civilização humana a que carece de novas políticas que tornem a vida humana sustentável nos próximos 20 ou 100 anos. Não sabemos se isto é possível, há uma grande contradição entre os imperativos da nossa forma de vida e os imperativos da gestão do clima. (…) O Estado-Nação tem no seu interior um poder civilizador para a sua população, mas no exterior continua a comportar-se como um predador, como uma besta selvagem. A Terra é uma entidade que suporta cinco ou sete construções poderosas de tipo imperial que competem entre si fortemente. E no futuro, já que o bem-estar em sentido generoso, a longo prazo, já não é uma opção, estas devem aprender a arte da coexistência e a ‘domesticação’ mútua.”