Quem decide quem devemos amar? Esta pode ser uma pergunta que colocamos várias vezes, principalmente naqueles momentos onde nos sentimos tão magoados que desejaríamos não fazê-lo. Por outro lado, também é possível que nos questionemos naquelas situações em que parece que o coração “explode” de gratidão por sentirmos estar com a pessoa certa.
O amor, é por isso, um espetro onde todos sentimos de forma diferente, o que acaba por abrir caminho a vários conceitos e opiniões que, por sua vez, ditam as regras com que regemos esse sentimento. Há quem agradeça a Deus, outros ao Universo, outros agradecerão a Buda, ou a Alá. Mas e quando se sente que não se pode “agradecer”?
Para uma instituição milenar como a Igreja Católica, ao que parece, 19 anos não são muito tempo. Em junho de 2003, o Vaticano publicou um documento intitulado Considerações Sobre os Projetos de Reconhecimento Legal das Uniões Entre Pessoas Homossexuais, que concluía que “a Igreja ensina que o respeito para com pessoas com essa orientação sexual não pode levar, de modo nenhum, à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões homossexuais”.
“O bem comum exige que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial como base da família, célula primária da sociedade. Reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao matrimónio, significaria, não só aprovar um comportamento errado, com a consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade atual, mas também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do património comum da humanidade. A Igreja não pode abdicar de defender tais valores, para o bem dos homens e de toda a sociedade”, lia-se no documento assinado pelo então João Paulo II – que esteve no cargo de 1978 a 2005 – e mais tarde, “subscrito” pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger (Bento XVI). A pergunta que se coloca é: 19 anos depois e com a eleição do argentino Jorge Bergoglio, o atual Papa Francisco, as coisas estão diferentes? Como será vivida a homossexualidade no seio da Igreja Católica?
Já dizia o provérbio português: “Quem vive no convento é que sabe o que se passa lá dentro”. Mas e se, pela primeira vez na história da humanidade, padres, e membros da Igreja “saíssem do armário” para assumir a sua homossexualidade?
Parece que este será o ano em que se encontrarão as respostas já que, na passada segunda-feira, 24 de janeiro, um total de 125 pessoas, incluindo vários padres, trabalhadores a tempo inteiro ou voluntários na Igreja Católica nos países de língua alemã, revelaram fazer parte da comunidade LGBTQIA+ – sigla que engloba pessoas que são lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgéneros, queer, intersexuais, assexuais e mais.
O movimento A iniciativa é intitulada de #OutInChurch, em português Fora, Dentro da Igreja, e foi inspirada, dizem os seus promotores, na ação #ActOut, na qual inúmeros atores e atrizes se manifestaram, no ano passado, como sendo LGBTQIA+.
“Nós, como pessoas LGBTIQA+, queremos viver e trabalhar na Igreja sem ter de sentir medo”, começa o manifesto, que inclui pessoas que trabalham nos campos da educação e ensino, cuidados, trabalho social, música litúrgica e animação pastoral, entre padres, assistentes pastorais, professores de educação religiosa e pessoal administrativo e que se identificam como “homossexuais, bissexuais, trans, intersexuais, queer e/ou não-binários”.
No manifesto, os assinantes apresentam as suas pretensões, pedindo a revisão das “posições difamatórias ou obsoletas” no ensino da Igreja sobre o género e a sexualidade “com base nos conhecimentos atuais da teologia e das ciências humanas”. Segundo os mesmos, isto é tanto ou mais importante quanto “a Igreja dever finalmente assumir a sua responsabilidade na luta pelos direitos humanos das pessoas LGBTQIA+ em todo o mundo”.
Na mesma linha, acrescentam: “Uma Igreja que afirma basear-se em Jesus e na sua mensagem deve combater todas as formas de discriminação e promover uma cultura de diversidade”. Além disso, o texto diz ainda que a maioria dos signatários “sofreu numerosas experiências de discriminação e exclusão, também na e pela Igreja institucional”.“O magistério proclama que a nossa condição ‘dificulta seriamente uma relação correta’ com outras pessoas, que devido à nossa ‘inclinação objetivamente desordenada’ não nos podemos realizar como seres humanos, e que uma relação do mesmo sexo ‘não pode ser reconhecida como objetivamente ordenada aos desígnios revelados de Deus’”, explica o documento.
Outra das exigências, a par do acesso a todos os serviços e vocações na Igreja, é a alteração da legislação laboral da Igreja “de modo a que viver de acordo com a orientação sexual e identidade de género, também numa união civil ou casamento, não conduza à exclusão de empregos e cargos ou ao despedimento”. O manifesto afirma que a Igreja “não deve negar a bênção de Deus ou o acesso aos sacramentos a indivíduos ou casais LGBTQIA+” e conclui que a mesma “tem causado muito sofrimento na sua forma de tratar essas pessoas”.
Os assinantes esperam, por isso, que os bispos assumam a responsabilidade em nome da Igreja, iniciem um processo de reflexão e reconciliação sobre a história da culpa institucional e trabalhem para as mudanças que estes exigem: “Estamos convencidos que a diversidade torna a Igreja mais rica, mais criativa, mais gentil e mais viva. Como pessoas empenhadas na Igreja, queremos contribuir com as nossas experiências e carismas em pé de igualdade e partilhá-los com todos os cristãos e não-cristãos”, desejam os signatários.
O manifesto é divulgado dez dias antes de um plenário do Caminho Sinodal alemão. Entre 3 e 5 de Fevereiro, a assembleia discutirá, entre outros, temas da moral sexual católica, incluindo precisamente a questão homo-afectiva. Por isso, será possível que o manifesto seja discutido na reunião.
Num comunicado enviado ao jornal digital 7MARGENS, os protagonistas que se querem fazer ouvir, admitem que o passo que tomaram é “arriscado”, pois pode acarretar consequências como o despedimento e a marginalização profissional. Segundo os mesmos, “o modus operandi eclesiástico profundamente arraigado de condenar e envergonhar as pessoas que se encontram ao serviço da Igreja Católica dificulta a sua ‘saída do armário’. Dessa forma, a iniciativa de revelação quer contribuir “para a renovação da credibilidade da Igreja Católica e para o seu respeito pelos seres humanos”.
Além disso, os signatários dizem à mesma publicação, que já viveram situações em que foram obrigados “a manter em segredo” a sua orientação sexual ou identidade de género. “E só nesta condição nos foi permitido permanecer ao serviço da Igreja. Isto criou um sistema de ocultação, dois pesos e duas medidas e hipocrisia, um sistema tóxico, nocivo e vergonhoso, que até prejudica a nossa relação com Deus e a nossa espiritualidade”, revelaram.
Rafaela Jacinto “Somos nós. Falou-se muito sobre nós. Agora somos nós próprios que falamos… É com assertividade que o movimento #OutInChurch – por uma Igreja sem medo – acaba por se tornar no primeiro momento histórico, em todo o mundo, onde um grupo de atuais, futuros e antigos colaboradores profissionais e voluntários da Igreja Católica Apostólica Romana se assumem em massa e publicamente”, explica ao i Rafaela Jacinto, especialista em História e Cultura das Religiões e Teologia Queer.
Para si, o que ressalta à vista de quem passa os olhos por este manifesto, “são as exigências e a proposta urgente de desconstrução da tradição”. “Não necessariamente ligado à teologia queer, este movimento acaba por fazer lembrar a monja beneditina Teresa Forcades, autora do livro, Siamo Tutti Diversi! Per una teologia queer, em português, Somos Todos Diferentes! Por uma Teologia Queer, que se refere à cosmovisão cristã queer, como um lugar onde todo o crente é visto como uma promessa de Deus e que pratica a sua liberdade perante um Deus que o entende, ama e respeita no seu mais profundo íntimo e com todas as suas características relacionadas com o seu desenvolvimento sexual”, acrescenta.
Rafaela assume-se como cristã. “Recentemente aceitei a denominação Católica e, neste momento, estou em preparação para o sacramento do Crisma. “Convertida há cerca de 6 anos, vou à missa, uso medalhas católicas e também vou à marcha do orgulho LGBTQIA+. Esqueci-me de referir que sou lésbica (espero que não seja importante)”, admite.
Segundo a mesma, apesar da discriminação, são muitos os crentes queer que na Igreja Católica acabam por se tornar pilares essenciais para o seu funcionamento. “Portugal é um país profundamente marcado por uma religiosidade arcaica, terá espaço para os crentes não-normativos? A mesa de Jesus é diversa; o convite é feito à inclusão, sob o comando de um Espírito Santo que se revela criativo e disruptivo e que ao abrir caminhos, não encerra o amor em rótulos ou caixas”, acredita.
Interrogada sobre o conceito de teologia queer, a especialista explica que este é o método teológico desenvolvido a partir da abordagem filosófica da teoria queer e que teve como pioneira, a teóloga Marcella Althaus-Reid. “A teologia queer pretende abrir caminhos para que a sociedade assente no princípio de igualdade e que em Jesus o amor seja vivido pelas pessoas na qualidade única de amor”, afirma. Parte-se, por isso, da ideia de contradição “entre a vivência que uma pessoa tem de si própria em relação a Deus e a imagem de Deus que recebeu”.
Por exemplo, “uma pessoa queer que se pode considerar aceite por Deus e ver-se simultaneamente a par com uma interpretação teológica normativa de condenação da sua orientação sexual”. De acordo com a especialista, os perigos destas interpretações teológicas podem “implicar um afastamento do crente e causar uma repressão violenta da sua própria perspetiva”: “Como é que se resolve esta contradição? A solução passa pela mudança de perceção da pessoa sem que esta se violente e se reprima, ou seja, entenda sobretudo que o texto bíblico foi escrito sob inspiração de Deus mas com filtragem humana. Tudo aquilo que se apresenta como discriminatório não corresponde necessariamente à vontade de Deus uma vez que o conjunto de livros que compõe a Bíblia deve ser interpretado no seu contexto e à luz das suas limitações”, elucida, sublinhando que estamos perante “uma teologia crítica que procura alternativas às interpretações vigentes que geram discriminação e exclusão e que são motivo de afastamento e perda de fé da comunidade LGBTQIA+”. “A postura tomada pela teologia queer é de um enfrentamento disruptivo para com a teologia dominante”, acrescenta.
Opinião do padre Por sua vez, António Pedro Monteiro, padre dehoniano – congregação religiosa fundada no séc. XIX – desde 2010 que tem trabalhado como capelão nos serviços de Assistência Espiritual e Religiosa de vários hospitais públicos da cidade de Lisboa, defende que se trata de “algo inédito”.
“Habitualmente, essa assunção – de pessoas profundamente comprometidas com a vida e a ação da Igreja e as letras da sigla LGBTQIA+ – acontece em atos isolados, lidos como escândalos, não raramente, com (muito) prejuízo dos próprios, perdendo vínculos laborais e dinâmicas de pertença a famílias, comunidades, organismos e instituições, muitas vezes, perdendo saúde mental e física, acabando tragicamente, em alguns casos, em suicídio”, começa por explicar ao i, lamentando o facto de isso “não se ver”. “No fim do dia, o saldo é (quase sempre) negativo: perdemos uma irmã nossa, um irmão nosso”, revela o padre.
“Não me quero esconder mais”, diz Uwe Grau, um padre gay da diocese de Rothenburg-Stuttgart, sul da Alemanha na página do movimento. “Sou gay e ninguém sabe ainda. Gostaria que algo mudasse nos relacionamentos dentro da Igreja”, admite Frank Kribber, capelão de uma prisão em Lingen e ordenado sacerdote em 2004. Stephan Schwab, de 50 anos, que o ano passado não hesitou em celebrar uma missa para homossexuais na sua igreja em Würzburg, também revelou a sua identidade sexual no site, “porque acredito e acredito firmemente que faço um bom trabalho mesmo sendo um padre gay”, escreveu.
Monika Schmelter, ex-diretora de um centro da Caritas, e Marie Kortenbusch, professora de teologia empregada pela Igreja, esconderam o seu relacionamento durante 40 anos por medo de perder o emprego antes de se assumirem esta segunda-feira, dois anos após o casamento secreto.
“Creio que refugiarmo-nos atrás de uma certa interpretação bíblica, de tradições desajustadas ao tempo presente e de textos doutrinais discutíveis e polémicos na sua redação, para nos convencermos de que em relação a pessoas LGBTQIA+ católicas, batizadas, não há nada a oferecer-lhes, a não ser a escolha entre o disfarce e a purga, envergonha-nos a todos, pelo menos, na oração do fim do dia, onde na consciência ecoa a pergunta: “onde está o teu irmão? O que fizeste?” (Génesis 4,9-10)”, admite.
Para o eclesiástico, “temos mesmo de falar sobre isto” e, os católicos já estão “cansados” de saber que isso não significa “remeter para a leitura de documentos”: “Falar sobre isto começa com um grande exercício de silêncio e escuta. De escuta a sério. Não para, no fim, forçar tudo e todos às mesmas conclusões”, sublinha.
Segundo o mesmo, a verdade é que muitos no seio das igrejas, no seu profundo desconhecimento e indisponibilidade para conhecer pessoas que vivem “coisas” que muitas vezes ainda nem sabem explicar, acreditam que ao verem imagens na televisão de uma parada pride, sabem tudo sobre a sigla LGBTQIA+. “O movimento Out In Church pretende construir conhecimento ao afirmar ‘esses somos nós’. Que bom seria se fossem escutados, esses de quem muitos pensam que sabem falar”, acredita.
Até ao séc. XX as pessoas que amavam de formas diferentes da maioria, se fossem identificadas, eram reprimidas, punidas, condenadas, eliminadas, quer com enquadramento legal quer por simples impulso de ódio espontâneo, tantas vezes impune, na via pública ou nas próprias casas. “As leis são mais fáceis de mudar do que as mentalidades. Forçando as mudanças legislativas para apressar o caminho de todos, salvamos pessoas, por um lado, e fragmentamo-nos, enquanto sociedade, em tribos e partidos que tornam cada vez mais difícil o diálogo e o consenso”, defende o eclesiástico.
“O que será mais importante: cuidar de pessoas feridas ou vencer discussões?”, interroga, explicando que na tradição romana do cristianismo, “a experiência diz-nos que as reivindicações e revoluções tendem a não surtir o efeito desejado; a serem ridicularizadas, diminuídas, envolvidas numa teoria de conspiração, num lóbi invisível, mas ameaçador”.“Se aceitarmos que no tempo presente cerca de 10% da população define a sua identidade e a sua afetividade com as letras da sigla LGBTQIA+, permanecendo cidadãos e cidadãs de ‘plenos’ direitos e deveres, teremos de reconhecer que o cuidado específico que temos para oferecer, enquanto igrejas, é mais ajustado aos tempos em que a percentagem era 0%”, revela António Pedro Monteiro. “O que ganha ou perde um coro de uma igreja cujo diretor é L, ou G, ou B? Bach continua a soar a Bach. E o que perde ou ganha uma comunidade cuja catequista é L ou B? Invalida a experiência religiosa de quem a ouve e caminha com ela?”, interroga.
Segundo o padre, em Portugal, os esforços que existem de cuidado e acompanhamento espiritual, são “discretos, quase secretos, e quase só respondem a pessoas que se identificam com as letras L, G e B”. “Quando têm o apoio mais explícito da hierarquia, habitualmente, tendem a apresentar ‘terapias de conversão’ e/ou a continência sexual como únicas possibilidades de acompanhamento”, explica.
Em breve, revela, será apresentada uma plataforma, intitulada Sopro, que pretende apresentar-se, como se diz, “levemente, sem barulho nem revoluções”. “Pretende dizer que existem pessoas cristãs, católicas, que vivem em verdade, em fidelidade ao evangelho, em relações fiéis e saudáveis, comprometidas e empenhadas na vida da Igreja; que se reconhecem numa das letras da sigla LGBTQIA+ sem terem escolhido, ou que pertencendo à maioria que não tem letra, reconhecem que como está não está certo; que pretendem ajudar pessoas em processo de se amarem inteiras e em verdade, bem como pais e famílias com dificuldades de aceitação, bem como pastores e agentes pastorais que reconhecem que precisam de ajuda para cuidar mais e melhor”, conta o padre.