A língua e a gramática são senhoras muito susceptíveis de ofensa. Felizmente ainda há cavalheiros que saem em sua defesa e não deixam passar um deslize, impondo um lesto e severo castigo aos infractores. A ilustrá-lo temos um pequeno incidente que se deu há dias na esfera pública, ainda que por meio desses silvos, trinados ou arrulhos que tendem a perder-se na esfera das redes sociais, e que deixou a descoberto um rastilho que permite ler uma certa superioridade nas atitudes de quem se serve da língua para se assumir como mestre civilizador.
Se “falar uma língua é assimilar um mundo, uma cultura”, como nos lembra Frantz Fanon, então nas falhas que possa haver nessa assimilação há sempre margem para se ler algo a mais, e não é raro também dar-se por esse efeito de duplo nascisismo de que nos fala o mesmo autor, nas relações entre branco-negro, e enquanto o branco se obstina em realizar uma condição de homem, vai definindo as regras de acesso nesse concurso, pretendendo ainda que o negro deseje ser como ele, falar como ele, apresentar-se igualmente. Talvez porque isso nunca o poderá fazer de forma exactamente igual. E é especialmente instrutivo ver como se processam estas inferências quando, em vez de um xenófobo que logo se denuncia, temos antes alguém que se move de forma cerimoniosa, até galante no que se refere aos usos da linguagem, como o cicerone de uma certa cultura liberal, progressista, “tolerante”, e até emancipadora, alguém que não precisa de os enunciar pois esplende de bons sentimentos.
Qualquer bom educador saberá, como vincou Frantz Fanon, que “falar é ao mesmo tempo empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia desta ou daquela língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”. Ora, tendo em conta o peso da questão colonialista, todo o homem colonizado se situa em função da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana, como nos diz aquele autor em “Pele Negra, Máscaras Brancas” (edição da Letra Livre). Falando desses povos no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade, “devido ao enterro da originalidade cultural local”, ele diz-nos que comummente se entende que “o negro antilhano será mais branco, isto é, aproximar-se-á mais do verdadeiro homem, quando tiver feito sua a língua francesa”. O mesmo vale para o negro das ex-colónias portuguesas, que também estará mais perto do branco quando não hesitar minimamente ao falar um português “de livro”. Esta é uma superioridade face a um certo mundo, esse que é expresso e implicado por aquela linguagem. E, neste ponto, Fanon frisa que a posse da linguagem é um extraordinário poder, um modo distintivo que alguns fazem valer a qualquer oportunidade, e cita Paul Valéry, que exaltava a linguagem fazendo dela “O deus na carne perdido”.
Nessa mesma obra, há um passo decisivo, quando Fanon reconhece isto: “O colonizado ter-se-á evadido mais da selva quando tiver feito seus os valores culturais da metrópole. Será mais branco quando tiver rejeitado a sua negrura, a sua selva.” E dá ainda um exemplo bastante expressivo, dizendo-nos que, no exército colonial, e mais especialmente nos regimentos de atiradores senegaleses, os oficiais indígenas são antes de tudo intérpretes, ou seja, servem para transmitir aos seus congéneres as ordens do senhor, e também gozam de uma certa honorabilidade.
Nesta hierarquia, quando cada linguagem refaz ou reafirma a todo o momento um mundo e os seus valores, “aquilo a que os poetas chamam ‘arrulho divino’ (entenda-se o crioulo) não é senão o meio-termo entre o falar do preto e o francês”, recorda Fanon, e tendo a linguagem o peso que tem, “sabendo-se que falar é existir absolutamente para o outro”, o negro vê-se obrigado a vigiar constantemente não apenas a gramática como a própria dicção, sob o risco de, ao sair da linha, ser chamado à atenção, e humilhado… “Dirão com desprezo: nem sequer sabe falar francês.” Para o caso, a língua deixou de ser o francês, e passa a ser a língua portuguesa com as dificuldades que lhe são próprias e servem como oportunidades de admoestação, distinguindo aqueles que se impõem como oficiais da linguagem.
Nesta troca, não nos interessam os méritos ou deméritos da argumentação entre o jornalista, Carlos Vaz Marques (CVM) e a ex-deputada eleita pelo Livre Joacine Katar Moreira (JKM), entendendo antes que esta respondeu com insulto bastante vulgar a um insulto de outra natureza, desses que actuam como uma forma de desconsiderar e, em certo sentido, pôr em causa a plena cidadania do outro, por falta de modos, notando como uma correcção gramatical pode operar como um insulto vexatório, actuando de forma aparentemente inofensiva, parecendo evidenciar meras regras objectivas, as quais, muitas vezes, aparecem quase por cortesia, da forma mais benévola, como se se tratasse de uma recomendação ou preocupação caridosa com o outro. Mas, mais geralmente, actuam de forma insidiosa, como uma forma de sobranceria, da parte deste que pretende mistificar aquele.
“Historicamente, é preciso compreender que o negro quer falar francês porque essa é a chave susceptível de abrir as portas que, ainda há cinquenta anos, lhes estavam proibidas”, lembra Fanon. E resulta daí este desejo de uns rebaixarem aqueles provando que, possam embora ter obtido este ou aquele grau académico, falham ainda no que toca à prova definitiva que é da sua adequação à cultura.
JKM: Fazem hoje dois anos do congresso do livre no qual ensaiaram pela enésima vez a retirada mediatizada de confiança política à sua única deputada. A Branquitude nacional porá Rui Tavares no parlamento sem nunca escrutiná-lo sobre o que se passou. É estrutural, temos dito.
CVM republica o tuíte, com um pequeno sublinhado: “Fazem hoje dois anos”.
JKM: [Citando Simone de Beauvoir] “Ninguém é mais arrogante, violento, agressivo e desdenhoso contra as mulheres, que um homem inseguro de sua própria virilidade.”
CVM: Cara Joacine Katar Moreira, publiquei um tuíte chamando a atenção para uma clamoroso erro de português, como já fiz inúmeras vezes anteriormente; fosse relativamente a calinadas de órgãos de comunicação social ou a dislates de figuras públicas, independentemente da identidade racial ou de género. A senhora, em vez de se penalizar pela bojarda, traz à conversa, por interposta Beauvoir, a minha virilidade, sobre a qual nada sabe, como eu nada sei nem quero saber a respeito do seu desempenho fora da esfera pública. Posso tranquilizá-la, contudo: a minha virilidade está bem melhor do que a sua relação com a gramática da língua portuguesa.
JKM: “UMA CLAMOROSO ERRO”
Como assim, @cvazmarques?
CVM: Sim, cometi um erro ao escrever apressadamente no telemóvel. Acontece que Joacine Katar Moreira não distingue uma gralha de digitação de uma calinada gramatical. Afinal, o problema que tem com a gramática – nem sequer se dando conta dele – é ainda mais grave do que eu supunha.
JKM: Um grande escritor como você nunca erra. Mesmo quando erra o mal continua a ser meu.
CVM: Agradeço-lhe o despropositado epíteto de “grande escritor”, mas não o gaste em vão; infelizmente não posso retribuir chamando-lhe “grande leitora”, porque pelo seu comentário parece ter sido incapaz de entender l a primeira frase que escrevi neste tuíte que comenta.
JKM: Fiz um doutoramento em incapacidade e despropósito. Você não. Você mesmo quando erra – e errar é para toda a gente – culpa-me. Sabe porquê? Porque se julga dono da língua.
CVM: Parabéns pelo seu doutoramento. Agora já só falta ser capaz de não dar calinadas como “fazem hoje dois anos”.
JKM: Compre uns cuecas mais pequenas. Dizem que ajuda.
CVM: O nivelzinho! Game over.
Depois, num precioso post scriptum, CVM vem puxar da “inteligência” como de uma arma, e cita o escritor franco-argelino Albert Camus, numa conferência com o título “Em Nome da Inteligência”, o qual integra o volume recentemente editado com o selo da Livros do Brasil, Conferências e Discursos: “Há alguns anos, quando os nazis tinham acabado de tomar o poder, Göering dava uma ideia clara da sua filosofia ao declarar: ‘Quando me falam de inteligência puxo logo do revólver.’ (…) As filosofias do instinto triunfavam por todo o lado e, com elas, esse romantismo de má qualidade que prefere sentir a compreender, como se pudéssemos separar as duas coisas. (…) Para nós, trata-se, pelo contrário, de nunca deixar a crítica chegar ao insulto.”
Face a esta manifestação da superioridade da sua inteligência, não fiquem dúvidas, aqui, sobre quem transmite as ordens do senhor. Mas, e ainda a este respeito, Fanon deixa também um aviso: “é importante dizer ao negro que a atitude de rotura nunca salvou ninguém, e se é verdade que eu devo libertar-me de quem me oprime porque realmente não posso respirar, continua a entender-se que é incorrecto enxertar um elemento psicológico – impossibilidade de expansão – de uma base fisiológica – dificuldade mecânica de respiração”. E prossegue: “Que queremos dizer? Simplesmente isto: quando um licenciado em filosofia declara que não se apresenta ao doutoramento, alegando a sua cor, digo que a filosofia nunca salvou ninguém. Quando um outro se obstina em provar que os negros são tão inteligentes como os brancos, eu digo: a inteligência também nunca salvou ninguém, e isto é verdade, porque se é em nome da inteligência e da filosofia que se proclama a igualdade dos homens, é também em seu nome que se decide o seu extermínio.”