Com certa dificuldade em encontrar um motivo capaz de justificar a proposta de alteração constitucional sobre a composição do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), um dos comentadores mais experientes e objetivos do nosso panorama mediático utilizou, porventura desta vez com alguma preguiça intelectual, o estafado argumento do corporativismo dos procuradores.
Não é que, mesmo que perfunctoriamente, tal fenómeno não possa existir, ainda nos nossos dias, no seio de setores do Ministério Público (MP).
O problema, porém, é que, em rigor, ninguém sabe muito bem definir em que consiste e em que medida tal característica – ou tal vício, se preferirem – pode influenciar negativamente o desempenho da magistratura do MP.
Na verdade, falar no corporativismo do MP, como algo específico desta magistratura, e não referir os hoje dominantes corporativismos de, por exemplo, médicos, advogados, enfermeiros, militares e outras profissões, que se organizam e governam de modo totalmente autónomo, parece fácil, mas de nada adianta.
Note-se que algumas destas profissões exercem, também, muito relevantes funções de serviço público – alguns dos profissionais são, simultaneamente, funcionários públicos – e, mesmo assim, são organizadas e governadas exclusivamente por «Ordens» profissionais completamente alheias e avessas mesmo a qualquer tipo de controlo externo.
Nelas, só os profissionais de tais corpos intervêm.
Ao contrário, o CSMP inclui membros nomeados pela Assembleia da República, pelo Governo e é presidido pelo Procurador-Geral da República, individualidade nomeada pelo Presidente da República sob proposta do Governo.
No CSMP não há, além disso, membros de primeira e de segunda.
Todos têm o mesmo estatuto, a mesma função e as mesmas obrigações, no que se refere ao controlo do exercício desta magistratura.
Se se pretende dizer que o MP, enquanto corpo, faz prevalecer interesses da corporação sobre os seus deveres funcionais, parece-me, assim, tal acusação totalmente destituída de fundamento e de qualquer prova.
Se, porém, se pretende insinuar que o CSMP protege magistrados concretos, isentando-os de responsabilidades no exercício das suas funções, convém dizer – e isto é facilmente comprovável pelas atas – que, em muitos, muitos casos, os membros magistrados de tal órgão têm, nesse aspeto, uma bitola muito mais estreita e exigente do que a dos membros nomeados pelo poder político.
Se, além disso, se quer sugerir que o CSMP não toma iniciativas junto da Procuradora-Geral da República para propor o melhoramento e reorganização dos serviços, é importante fazer notar que qualquer dos seus membros – e, portanto, também, os atualmente nomeados pelo poder político – tem poder de o fazer e de exigir qualquer informação sobre o exercício profissional dos magistrados, que não contenda, claro, com os limites regulados nos códigos de processo.
Por tal razão, entendo que a estafada frase feita do corporativismo do MP nada justifica hoje: de tão repetida, longe de se tornar uma verdade, é já uma frase sem sentido.
Significa isto, porém, que tudo está bem no MP?
Não: há muitas coisas a corrigir, como tenho vindo a escrever.
Acontece que, para que tais correções se façam – e elas urgem –, era necessário, também, que os membros nomeados pelo poder político estudassem as carências a que é preciso atender e tomassem, eles mesmos, a iniciativa de propor soluções dirigidas aos problemas mais prementes.
Nesse aspeto, tais membros, porque exteriores à profissão e mais ligados ao mundo, podem, até, estar em melhores condições para identificar as necessidades e ter, assim, uma função catalisadora apta a contrariar o imobilismo próprio deste tipo de instituições.
Indispensável é, neste caso, que se disponham a exercer, na sua total complexidade, as funções que a Constituição e o Estatuto do MP lhes conferem.
E isso não é fácil, reconheça-se.
Não é fácil porque significa, por exemplo, estudar e reavaliar com profundidade a relevância das tarefas – não funções constitucionais – atribuídas ainda hoje na lei ao MP, o seu modelo organizativo em função dos quadros disponíveis, bem como as suas práticas operativas correntes e já estabelecidas.
Tal trabalho é demorado, exige rigor e, além disso, sentido de Estado.
Isso significa que não pode ser exercido sempre e só por membros do Conselho em part-time e devem, por isso, os membros externos, que a isso se queiram dedicar a tempo inteiro, ser devidamente remunerados, como, aliás, está legalmente previsto.
Tal trabalho exige, de facto, total disponibilidade e muita e aguda capacidade crítica.
Mudar a cultura de uma instituição – que, pela sua natureza, deve ser estável e infundir confiança pública – não é fácil e não se coaduna, portanto, com o simples arengar sobre um conjunto de ideias feitas e quase sempre superficiais.
Os problemas que afetam hoje o funcionamento do MP têm, na realidade, pouco a ver com o seu alegado corporativismo.
Alguns deles situam-se, sim, em outros e ainda mais inconvenientes planos: desde logo, no enquadramento e leitura redutora e algo messiânica que alguns procuradores fazem do seu estatuto de magistrados e sobre a forma e exigências do seu exercício.
Ora, tais conceções e desígnios redentores do papel do MP – que não afetam, nem, necessariamente, influenciam a generalidade desta magistratura, mas tendem, apesar disso, a identificá-la publicamente – nada têm de comum com o corporativismo.
Pelo contrário, a referida leitura iluminada e simplificadora do Estatuto do MP fratura, sobretudo, o MP enquanto corpo; dividindo, em alguns casos, artificial e levianamente, os seus magistrados em função dos postos e cargos que exercem e do modo como os exercem.
Uns, estudiosos, proativos, eficientes e afoitos, os outros, imperturbáveis, despreocupados ou timoratos.
Tais divisões perigosas e as mais das vezes falsas – ainda por cima assumidas dogmaticamente e sem contraditório – são suscetíveis de minar a identidade e unidade do MP, uma magistratura que, conforme diz a Constituição, se quer hierarquizada e responsável a todos os níveis.
Reafirmar, sem compromissos de qualquer tipo, o estatuto de verdadeira magistratura guiada apenas e sempre pelos princípios da legalidade e da objetividade é, por isso, fundamental para a manutenção da dignidade institucional do MP.