Segundo a mitologia grega, a história do homem subordina-se a várias idades, podendo abarcar a Idade do Ouro, a Idade da Prata, a Idade do Bronze, a Idade dos Heróis, a Idade do Ferro. As ciências, as artes, o trabalho e sua particular epopeia, poderiam reger-se por essa mesma aritmética. O futebol, que os ingleses, depois da sementeira dos maias do período clássico e dos compatriotas de Mao Tsé Tung, aprimoraram e difundiram pela Europa e pela América do Sul, poderia então categorizar-se na Idade dos Metais. Na Idade, talvez, que hoje vivemos.
Na história do futebol português, Eusébio vai à frente, segurando o estandarte da Idade dos Homens Bons. Foi e continua a ser o maior. Ele, na “popular modalidade”, sobreleva comparações e anula quaisquer tentativas redutoras. A ignorância e a clubite aguda, com a sua tábua programática adulterada, desde o 25 de Abril, pela cegueira do mercantilismo tecnológico, não triunfam sobre evidências que, também no futebol português, tendem ao sequestro da memória. Uma força da natureza, Eusébio. Com ele, enquanto pernas e joelhos resistiram às sucessivas lesões, aconteceram no futebol lusitano o seu século de Péricles e o seu Iluminismo. Os vários decénios do futebol lusitano anteriores a Eusébio haviam sido emblematizados por homens como “Pepe”, Valdemar Mota, “Pinga”, Peyroteo, Rogério Lantres de Carvalho, José Travassos, Hernâni Ferreira da Silva, muitos outros futebolistas de eleição. Deste numeroso colectivo, apenas José Travassos, o “Zé da Europa”, viu o seu nome cintilar além-fronteiras.
De Eusébio recordo um continente de pequenos e tocantes episódios. Inevitável, nestas circunstâncias, o recurso às experiências pessoais. Conheci um muito tímido Eusébio em Espanha, no Camp Nou, não muito depois da final europeia de Berna, com os benfiquistas levando de vencida os orgulhosos catalães. Tratava-se de um amistoso e, nisto de amistosos, nada melhor que um empate (1-1), com Santana a marcar pelos novos campeões da Europa. Eusébio estava, sentado, de fatinho e gravata, no corredor de acesso às cabinas. Acariciei-lhe a cabeça, o jovem oriundo da humilde Mafalala estava ainda em fase de adaptação, era o mais “verde” da comitiva. Depressa o tempo , usando remos implacáveis como meio de propulsão da vida, brindaria Eusébio com uma generosa alcatifa, a década de 1960. Na condição de redactor do antigo Mundo Desportivo, acompanhei o Benfica em inúmeras jornadas europeias. E com Eusébio vivi episódios interessantes, alguns dos quais regados com o elixir afectivo das lágrimas e dos abraços.
O bálsamo das lágrimas numa alma generosa.
Eusébio chorou. A 29 de Maio de 1968, aconteceu a frustrante final europeia do SLB em Wembley, frente ao Manchester United. “Sir” Matt Busby, o técnico inglês, que eu conheci em Madrid antes do acidente aéreo em Munique, a 6 de Fevereiro de 1958, que havia reduzido a menos de metade o onze titular da cidade dos têxteis, estava exultante. Ele que, em Munique, após o desastre, travara, numa UCI, luta denodada com a morte. Daí o abraço que com ele troquei, decorria nas instalações de Wembley o banquete de confraternização. Eusébio, à mesa, cabisbaixo, aguentou até onde pôde. E foi no autocarro, de regresso ao hotel, que Eusébio, finalmente, chorou. Na conjuntura, cedi-lhe um lenço meu. Tudo “por culpa” do último minuto do tempo regulamentar. Jaime Graça havia feito o mais difícil, o golo da igualdade (1-1). Prolongamento à vista, Coluna, o padrinho, serve Eusébio com um opíparo passe de bandeja. Ora, aquele Eusébio de 1968, que o cortante Nobby Stiles fustigava com violência, era já o Eusébio da joelheira e das infiltrações anestesiantes. Diante do vulgarucho Alex Stepney, Eusébio atirou à figura. Frustrada a soberana oportunidade, Eusébio, humilde e cortês em todos os seus rasgos, felicitou o afortunado Stepney. E este, com soberba, menosprezou o gesto. Já antes, no estágio, em Harlow, periferia de Londres, Eusébio havia feito das suas: no treino, interrompe os pontapés à baliza e, a meu pedido, corre metade do relvado para uma fotografia com um garoto londrino dos seus 11 anos. Esta cumplicidade experimentaria, na Irlanda do Norte, um dos seus episódios mais singulares. Em Outubro de 1963, o Benfica deslocou-se a Belfast para o primeiro jogo de uma eliminatória da Taça dos Campeões Europeus. Frente ao campeão norte-irlandês. Malcolm Brodie, jornalista desportivo no diário Belfast Telegraph (ele morreria em 2013), fornece-me pistas para entrar no invulgar universo do clube da casa, o Lisburn Distillery Football Club. Lugar de animada tertúlia futebolística era uma esplêndida loja de artigos desportivos, cujo proprietário cativava treinadores, antigos jogadores e jornalistas. Nesse mesmo ano, 1963, antes do Natal, Wembley iria ser cenário de uma partida comemorativa dos Cem Anos da Implantação das Regras do Jogo. Em Londres estariam frente a frente as selecções de Inglaterra e da FIFA ou Resto do Mundo. Grande surpresa, a minha, ao revelar-me Malcolm Brodie que o proprietário da loja, também exportador de algumas marcas do mercado têxtil, tinha em seu poder as camisolas azuis destinadas à selecção do Resto do Mundo, prestes a serem despachadas para Londres. Eusébio e Coluna sabiam-se já na lista dos convocados pela FIFA. O lojista, aquiescente, cedeu-me, “por uma hora”, as camisolas com os números 7 e 8, prováveis posições de Eusébio e Coluna. Muito à sorrelfa e acompanhado de um fotógrafo do Belfast Telegraph, fui ao hotel que hospedava a comitiva benfiquista. No “hall”, entretido a ler jornais, estava o admirável Carlos Pinhão, enviado de A Bola. O “furo”, matutei, aconselhava cautelas – uma fotografia antecipatória, e em exclusividade, para o Mundo Desportivo. Eusébio aceitou de bom grado a minha sugestão, ir para o seu quarto depois de chamar Coluna, o “grande capitão”. Com os dois naturais de Moçambique alinhariam, alternando entradas e saídas, grandes figuras como Yashin, da URSS; Djalma Santos, do Brasil; Kopa, da França; Di Stefano, já naturalizado espanhol; o madrileno “Paco” Gento; Puskas, oriundo da Hungria; Masopust, da antiga Checoslováquia. A Inglaterra, por seu turno, apresentaria em campo não poucos dos jogadores que, três anos decorridos, portanto em 1966, encontrariam pela frente, no mundial, os históricos “Magriços”. Eram eles Bobby Moore, Bobby Charlton, Jimmy Greaves, Gordon Banks…
O carácter. Inumeráveis são os registos identitários do carácter e da história de Eusébio, que as plateias britânicas elegeram como um ídolo, o melancólico País de Gales, por exemplo. Foi na realidade Eusébio quem, antes do 25 de Abril, projectou o nome de Portugal no mundo. A despeito da sua congénita modéstia, Eusébio, cuja odisseia o filme (Ruth) de António Pinhão Botelho sintetiza com invulgar proficuidade, mais de uma vez foi alvejado com “fogo” supostamente “amigo”. Como ocorreu em Nantes no “Europeu” de 1984, sendo ele “embaixador” do futebol lusitano.
Mau grado o volume dos escolhos, Eusébio sempre manteve uma atitude de sereno distanciamento, valendo-se, sabiamente, das suas introspecções. E, enquanto jogador do SLB, na ponta final, com joelheira, arquitectou uma extraordinária afirmação de capacidade técnica e táctica – quando, posicionado nas costas de Néné e Jordão, deu livre curso à sua caudalosa inventiva. No dia em que Eusébio faleceu, uma estrela chorou, lá do alto, furtiva lágrima planetária de carinho, de apreço, de fraternidade.