Eusébio.
Há nomes assim: esse ponto final parágrafo aí em cima poderia ser um ponto absolutamente final. Ou seja: o livro estaria pronto, concluído, perfeito. Porque a Eusébio nada se acrescenta.
Exagero subjectivo!, exclamarão alguns. Estão no seu direito. E para eles, desde já acrescento: não leiam mais, então, não vale a pena. Esta será, de início ao fim, uma prosa subjectiva. Terá factos, terá números, terá estatísticas, se calhar, matérias portanto objectivas. Mas a visão redonda deste planeta achatado nos pólos é minha e dela não prescindo.
Convenhamos: Eusébio escreveu-se a si próprio.
Agora vou falar de outro nome fundamental: Nelson Rodrigues.
A ele se devem as mais belas páginas escritas em português sobre futebol. E, ao contrário do que possam pensar, futebol e literatura têm muito em comum. Têm muitíssimo em comum.
Nelson Rodrigues: “Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural». Era aqui que queria chegar: Eusébio é demasiado complexo para ser objectivo.
Revejam o filme do primeiro golo de Eusébio contra o Brasil, em 1966, no Campeonato do Mundo de Inglaterra. Ou melhor, revejam-no depois do golo. Ele corre, de braço no ar. A cabeça está erguida, imperial, reparem bem: há no seu olhar, que abarca todo o estádio de Goodison Park, em Liverpool, a consciência de que a História está a passar por ele, pela sua passada elástica, veloz, o redor move-se em câmara lenta, só ele tem vida para além da vida corriqueira, insignificante, só ele ganha luz para além dessa vidinha de que falava Alexandre O’Neill e que acabrunhava o país triste. Corre, corre, corre, Eusébio corre. Está apenas a comemorar um golo, mas até disso dir-se-ia depender a sua própria existência. Aquela corrida parece durar horas e horas. Aquela corrida merecia durar horas e horas.
Prestem bem atenção, agora: ele eleva-se no ar como se tivesse as asas nos pés de um Mercúrio negro. O seu braço erguido estende-se para lá do estádio, quase tocando o céu num soco vigoroso, vibrante. Não tirem os olhos dele: deixem-no ficar assim para sempre na parede lisa da vossa memória. Dificilmente Eusébio poderá ser tão Eusébio.
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Eusébio queria o Desportivo, mas o Desportivo não queria Eusébio.
Por duas vezes recusaram os seus préstimos, negaram a sua vontade.
No Ferroviário consideraram-no “demasiado enfezado”. E Eusébio, meio contrariado, seguiria Hilário para o Sporting, por via do esforço de Camilo Antunes, funcionário do clube.
“Entrei para os juniores e tudo me corria bem. Não ganhava dinheiro mas, de vez em quando, um director dava-me qualquer coisinha para eu comprar um bilhete para uma matiné de cinema”.
A sua estreia é em Namaacha, contra o Juventude. O Sporting de Lourenço Marques ganha por 3-1: três golos de Eusébio.
Eusébio segue a vida normal de rapazinho pobre de uma cidade das colónias. Ou Províncias Ultramarinas, como passaram a designar-se entretanto numa tentativa bacoca de atenuar uma política sem futuro que caíra no descrédito de todos. Aprende os caminhos da Malanga, da Central, da Baixa: Avenida 24 de Julho, Avenida Álvares Cabral, Avenida da República; o Mercado Vasco da Gama, o Hotel Aviz, a Praça 7 de Março com a estátua de bronze do Comissário António Enes e o Prédio Rubi. Lugares que se lhe tornam familiares e que deixaram, entretanto, de existir. E aos quais a independência trouxe novos nomes.
O Sporting arranja-lhe um emprego. Um emprego seguro, como convinha a um jovem que não fora além da 4ª classe. Eusébio trabalha como arquivista na Guerin, uma firma de acessórios para automóveis, e ganha mil e duzentos escudos. Dá metade a D.ª Elisa. Sente-se preso, apertado. O bafio dos papéis velhos entristece-o. É como um animal selvagem que trocou a floresta por uma jaula acanhada. É no campo de futebol que se sente bem. É da bola que precisa. Quando espreita as águas do Rio do Espírito Santo é com o Tejo que sonha; quando vê o mar para lá do Polana, do Clube Naval ou da Inhaca, não é o Pacífico que contempla, é o requebro do Atlântico. Lisboa é longe, mas tem o fascínio de uma mulher bonita que lhe acena em convite irrecusável. Há nele uma inquietação, uma ansiedade. E não haverá namorada ou mamana Elisa que o vá fazer ficar quando chegar a hora.
O Sporting Clube de Portugal, o Sporting de Lisboa, quer ver de perto o seu talento. Chama-o à experiência. Não chegou ainda a hora, no entanto: “Claro que fiquei de cabeça perdida. Lisboa! A meta desejada. Mas, quando cheguei a casa e encarei a minha mãe, dei conta que teria de me separar dela, a coragem faltou-me e, ao entusiasmo, sucedeu-se o pensar com cautelas. Aconselhei-me com amigos, ouvi uns e outros, e tomei uma decisão: só sairia de Lourenço Marques com um contrato assinado. Aventuras, experiências, não me interessavam…”
O emprego no arquivo não dura mais de seis meses. E o dia 17 de Dezembro de 1960 aproxima-se à velocidade única que só o tempo tem.
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Em Lisboa, os jornais desportivos enchem primeiras páginas com o “Caso Eusébio”. A Bola, Record, O Mundo Desportivo. Mas também O Século, o Diário de Notícias…
Emitem-se opiniões, ouvem-se testemunhas, ensaiam-se esclarecimentos, repetem-se pontos de exclamação. Eusébio, Eusébio, Eusébio, Eusébio. Poucos são os que não aprenderam já a soletrar o seu nome. Até Vasco Matos Sequeira, autor de teatro de revista, cujas peças haviam feito furor no Variedades e no Maria Vitória, não resiste a falar de Eusébio numa das suas gazetilhas.
O Benfica actua por conta própria.
A vida de Eusébio torna-se caótica, debaixo do fogo das pressões, sob a perseguição dos jornalistas que lhe invadem a família, que lhe devassam a intimidade. Viaja para a Maurícia englobado numa Selecção de Lourenço Marques para efectuar dois encontros: marca sete golos. Dias de descanso no centro de um mar de críticas que ruge, revolto, a cada um dos seus passos.
Mário Tavares de Melo: não existia maior benfiquista em Lourenço Marques. Fora ele que tivera profunda influência na ida de Mário Coluna para Lisboa. E também de Vagumar e Sidónio. À moda de Graham Greene, funcionava como um agente secreto não muito secreto. É ele que reserva uma passagem aérea em nome de F. da Silva. Perante a insistência benfiquista, Eusébio segue em direcção a Lisboa e ao Lar do Benfica. Traz uma autorização da mãe, um diploma confirmando a conclusão da 3ª Classe e uma autorização para prestar serviço militar na Metrópole. A pressa é tanta que não se despede, sequer, do padrasto, Fernando, empregado do bar do Desportivo. De certa maneira, segue o seu destino.
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Eusébio recordou por várias vezes esse tempo fascinante: “Paris seria, se jogasse, o local do meu grande exame. Se jogasse, claro! Senti que o meu futuro se decidiria ali. E não me enganei. Contra o Anderlecht, joguei no lugar do Coluna, que adoecera com anginas. Foi complicadíssimo! O Anderlecht era uma grande equipa em formação: veloz, combativa, com força. Uma surpresa para nós, que contávamos com facilidades. Eu estava cheio de nervos, não joguei muito bem, mas ganhámos 3-2 e marquei um golo”.
Bélla Guttmann diz-lhe, antes do jogo começar: “Eusébio, você vai jogar hoje. Tenha calma. Faça tudo como de costume…”
Eusébio fez.
Dois dias depois, a final. O Benfica entra em campo com a linha avançada de Berna: Coluna, Santana, José Augusto, Águas e Cavém. Eusébio fica no banco. Terá de esperar pelo seu momento. E que momento!
O Santos entra em campo com a linha avançada que soa como uma letra de samba: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Aos 20 anos, Pelé está no auge do seu jovem esplendor. Derrama-o em campo: ao intervalo, já os brasileiros vencem por 4-0, como golos de Lima, Coutinho, Pepe e Pelé. O público do Parque dos Príncipes delira com a gala da melhor equipa do Mundo.
Eis agora um daqueles episódios extraordinários que faz do futebol um pasto fértil para lendas. Exaustos por um final de época alucinante, os jogadores do Benfica parecem desistentes. Logo início do segundo tempo, Pepe marca o quinto golo. A hecatombe é, tudo leva a crer, inevitável.
Eusébio entrara para o lugar de Santana. Ergue-se no centro de uma equipa em destroços com o vigor de um deus antiquíssimo: é Hércules e os seus trabalhos, Atlas com Terra sobre os ombros, Sísifo empurrando a rocha pelas escarpas da montanha.
Eusébio: ninguém mais esqueceria este nome.
Durante meia hora foi verdadeiramente avassalador. Absoluto: é capaz de ser esta a palavra certa. Ao minuto 63 marca o seu primeiro golo; no minuto seguinte, inventa um “penalty” que José Augusto desperdiça; três minutos depois reduz para 2-5.
O Parque dos Príncipes entra em delírio. De dentes cerrados, absorto na bola, no jogo, nos movimentos próprios e alheios, Eusébio é maior do que Pelé, rouba-lhe o protagonismo, força-o a um papel secundário, subalterno. Milhares de pessoas, encantadas, enfeitiçadas, gritam o seu nome. Ele não as ouve. A sua obra está ainda incompleta.
O seu esforço é monstruoso: por si só, reconstrói um conjunto em seu redor, carrega-o consigo no trilho de uma recuperação espectacular.
A luta pode ser desigual, mas ele ignora-o. É um vendaval de músculos, tendões, ossos e cartilagens que desaba sobre um opositor entontecido. O seu entusiasmo desperta a rebeldia dos companheiros.
O Benfica domina, agora, os acontecimentos. Eusébio marca mais um golo, faltam dez minutos para o final do jogo, há quem acredite ainda no impossível. Dez minutos não chegam. Pelé é Pelé e teima em recordá-lo àqueles que, por momentos, o esqueceram: faz o 6-3 final.
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Eusébio fora imenso. Vencera mais uma batalha: alguém teria de sair da equipa para lhe dar o lugar.
− Quem?
A pergunta espalhou-se por toda a parte, das páginas dos jornais aos balcões das leitarias, das boleias dos eléctricos às cadeiras dos barbeiros, como uma labareda em campo de milho numa tarde de Verão.
− Quem deve sair para entrar Eusébio?
Durante muito tempo se escrevera, com ironia, que o grande problema da linha avançada do Benfica era ser formada por um quinteto… de cinco. Isto é: quando era preciso arranjar alguém para substituir um dos titulares era um Deus nos acuda e a solução nunca era boa.
Agora havia Eusébio. E uma coisa entrava pelos olhos dentro: Eusébio era melhor que qualquer dos cinco.
Fizeram-se inquéritos. Ouviram-se opiniões de gente que nada sabia de futebol; escutaram-se com interesse os testemunhos de entendidos insuspeitos; atingiram-se conclusões que soavam como sentenças de juiz conselheiro.
Que Santana era indispensável!
Que José Augusto era o 7 e ponto final!
Que Coluna devia recuar para o meio-campo.
Que Cavém tanto poderia ficar de fora como jogar a defesa lateral.
Que Eusébio e Águas tinham lugar assegurado!
José Águas, o “capitão” do Benfica, também era taxativo: “Eusébio é, para já, o melhor avançado português!” E acrescentava: “Por mais que chute, nunca chuta a mais… Todos nós, avançados campeões europeus, estamos ameaçados por ele. Com Eusébio não se pode discutir. Tem um lugar certo no ataque, porque é melhor do que qualquer dos que lá estamos. Ele corre bem, salta bem, joga bem com a cabeça, remata excepcionalmente com qualquer dos pés, entra bem na grande-área adversária, vai bem atrás e distribui jogo como qualquer grande ‘armador’. É, enfim, um jogador completo. Faz coisas que até a mim, experiente nestas andanças e conhecedor de extraordinários futebolistas de quase todo o Mundo, provocam sincero espanto. Acreditem: não tenho palavras que definam, exactamente, o que é Eusébio. É tudo o que de melhor se pode imaginar!”
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Guttmann decidiu: na primeira jornada do campeonato, no Estádio do Mar, em Matosinhos, contra o Leixões, Eusébio foi titular; Cavém defesa-esquerdo; como Santana estava magoado, na frente, com José Augusto, Eusébio, Águas e Coluna, jogou Angreja.
Angreja?! Pois, sim senhores: Carlos Angreja. Uma estreia. Não faria mais do que oito jogos pela equipa principal do Benfica.
Leixões, 1 – Benfica, 2: dois golos de Eusébio.
Eusébio: “Sinto – seria imodéstia negá-lo – que a minha popularidade vem subindo, mas não o digo por dizer. Nunca me deslumbro de maneira especial. Estou sempre disposto ao trabalho, a aprender, a ir mais além. Poderão acusar-me de jogar mal, mas nunca de que não me bato até ao último esforço”.
Popularidade: a palavra peca por escassez. Eusébio é um fenómeno. O seu limite é o céu…