O simples facto de o livro ter passado pelo crivo do meu tão querido camarada e amigo João Mesquita, mais um daqueles que a Senhora da Gadanha levou demasiado cedo, trouxe-me a vontade de lê-lo. Mas não só. Trata-se da visão de António Marques, licenciado em Direito, um dos mais carismáticos casos de jogador-estudante que vestiu a camisola de negro retinto da melhor Académica da história.
Defesa-esquerdo, António Pereira Marques defendeu o emblema do losango mágico durante nove anos. É ele que conta: “A minha vida começou, realmente, aos 20 anos, quando fui chamado para a tropa. Paradoxalmente, a guerra veio libertar-me da escravidão.”
Vidros nunca mais! Essa foi a decisão que tomou quando embarcou no Vera Cruz, a 4 de maio de 1961, a caminho de Angola como 1.º cabo de artilharia 124/60, abandonando para sempre o trabalho da fábrica da Marinha Grande, em cujos arredores nasceu, mais precisamente na aldeia de Ganilhos, freguesia de Aljubarrota. Dera uns pontapés no Ginásio de Alcobaça, gostava do futebol, mas só voltou a ter a companhia da bola depois de 16 meses passados no norte da antiga colónia combatendo os membros da UPA (União dos Povos de Angola do Norte) comandados por Holden Roberto. “Vi atrocidades que marcaram para toda a vida. Vi-as acontecer entre gente do norte e do sul de Angola”.
Depois quis, simplesmente, esquecer. Esquecer os dias terríveis em que esteve sob fogo cerrado, esquecer as imagens que o impediam de dormir. Rasgou fotografias, quis rasgar a memória. Mas, infelizmente para ele, a memória nunca prescreve.
Seguiu para Benguela. Retomou os estudos e tirou o curso do primeiro ciclo e retomou, igualmente, o futebol. Jogava num clube chamado Portugal de Benguela quando a Académica fez uma digressão pela África dita portuguesa. Gostaram dele. E ele gostou da ideia de voltar ao continente e continuar a estudar na velha Universidade de Coimbra. Em 1963 estava de volta. Despachou o 1.º ciclo dos liceus, inscreveu-se na Faculdade de Direito em 1968, com 28 anos, concluiu a licenciatura. Muitos, na brincadeira, chamavam-lhe O Marquês. A alcunha pegou. De tal forma que, quando resolveu publicar as suas memórias academistas, intitulou-as de Marquês – Histórias de um Percurso – Fotobiografia.
Em Coimbra Aqui já é o João Mesquita que escreve: “A estreia do Marques na Académica ficou marcada por um facto inédito de alguma relevância desportiva em Coimbra, cuja divulgação, no meu entender, penso ter algum interesse. O jogador Hernâni era ainda, em meados dos anos-60 do século passado, a maior estrela do FC Porto, pelo que, em qualquer jogo, era sempre objecto de especial preocupação de qualquer treinador quanto à sua marcação.
Nesse sentido, entendeu o técnico da Académica, José Maria Pedroto, ele próprio ex-jogador do FC Porto, de encarregar dessa espinhosa missão o Marques, jogo que marcou a sua estreia na Académica e, simultaneamente, na primeira divisão do nacional de futebol. Não correu bem o jogo à Académica, que perdeu injustamente e por culpa própria, por 1 a 2. No comentário ao jogo, na antiga Emissora Regional de Coimbra, o jornalista Manuel Gaspar insinuou que a estreia do Marques, por ser jovem e inexperiente e a quem foi conferida tão difícil missão, visou ‘facilitar a vitória do Porto’”.
Continuo eu: Pedroto levou a coisa a mal, logo pela manhã do dia seguinte pôs-se a caminho do Café Arcádia, onde se reuniam os célebres Teóricos, para pedir esclarecimentos ao repórter. Deitando fumo pelas orelhas, Pedroto resolveu ir aos fagotes ao tal Gaspar e só a intervenção pronta de dois jogadores, Augusto Rocha e António Cagica, salvaram o homem de uma coça das antigas.
Claro que o assunto não passou ao lado do estreante Marques. O falatório foi grande, muitos eram os que punham em causa a sua qualidade para jogar numa Académica que em 1967, por exemplo, chegou a ficar no segundo lugar do campeonato.
Mas estávamos apenas na época de 1964/65 – jogou apenas cinco encontros – e António Marques, o Marquês, era homem preparado pela juventude dura de vidraceiro e pelos meses de combate no mato angolano. O episódio serviu-lhe para cerrar os dentes. O seu desejo e vontade de vencer eram inquebráveis. Fez-se um jogador fundamental e foi titular assíduo nos anos que se seguiram. Estudando ao mesmo tempo. Como mandava a antiga tradição coimbrã.