1922, o tempo longo – II


Venho de escrever, há duas semanas, acerca dos livros de Scurati sobre Mussolini ou, na verdade, sobre sinais em 2022 que fazem lembrar – com um intenso arrepio – 1922. 1922, o ano no qual em Itália o fascismo começou a tomar conta da vida, mas também o ano em que noutros lugares a coisa…


Venho de escrever, há duas semanas, acerca dos livros de Scurati sobre Mussolini ou, na verdade, sobre sinais em 2022 que fazem lembrar – com um intenso arrepio – 1922. 1922, o ano no qual em Itália o fascismo começou a tomar conta da vida, mas também o ano em que noutros lugares a coisa ia medrando, e, já agora, também um ano de ganho de corpo do Estado soviético e do seu avanço na conquista de tudo, até do ruído do tempo (como no livro de Barnes sobre Shostakovitch). Scurati aponta Mussolini, logo no título do primeiro livro, como filho do século, mas ele é mais do que isso, é filho dos séculos, do que se repete – mais vezes como tragédia do que como farsa. E as lições que se podem tirar da sua história não são (só) sobre a Itália daquele tempo, são sobre muitos lugares em muitos momentos, porque são afinal sobre a natureza humana, individual e coletiva, e mostram como as pessoas são aprisionados e, também, como se deixam aprisionar, às vezes estando sob o tirano antes mesmo dele chegar e se impor, como se, por vezes, uma tirania (ainda) sem tirano se fosse instalando, fazendo a terra fofa e fértil para que aquele depois se enraíze forte e cresça sadio. 

Tenho visto, frequentemente, a análise da ascensão de certos fenómenos políticos e sociais (ou sociopolíticos, dizendo melhor) que começam marginais e depois ganham expressão ser feita com base na seguinte ideia: nem todos os que aderem professam a ideologia de base (quando há ideologia de base, o que nem sequer acontece sempre), nem mesmo a maioria, e o que sucede é que um grande número de adesões tem por base ou por motivo o protesto contra o statu quo. Não podia concordar mais, e parece-me evidente, no passado e no presente, que, entre o mais, existe sempre uma nota forte de protesto contra o que é e o que está que leva muitos a acreditar que estes fenómenos podem conduzir a um mundo melhor. E quem diz protesto, diz ressentimento, diz medo, e diz, depois, esperança. Mas é preciso muito cuidado, porque depois de um statu quo vem sempre outro, e é necessário ver bem se o que pode vir não é pior do que o que já está. E nisso ajuda a memória, a lição da História, bem como, entre muito mais, a resistência à facilidade de renunciar a isto, depois àquilo, e depois a tudo, em nome da promessa sedutora de dias melhores, dias de ordem, dias fartos, dias providenciais. Primeiro a energia da adesão, depois o torpor da submissão, sendo muito ténue a membrana entre eles. 

No primeiro volume de Scurati, evocando Giacomo Matteotti, em 2 de julho de 1923, no Palio de Siena, pensando no que está a acontecer a Itália, desde pelo menos 1922, escreve-se: “Matteotti não se cansa de repetir o que aqueles companheiros não têm ouvidos para ouvir ou não querem ver. Cometemos sempre o erro de contar com a catástrofe futura, depois acordamos com uma sensação de sufoco que nos oprime o peito, olhamos para trás e descobrimos que o fim já está para trás das nossas costas, o pequeno apocalipse já aconteceu e nós nem sequer demos por isso. A “segunda vaga”, agora abertamente invocada por Farinacci, já nos vai submergindo.” De outro modo, menos inspirado, eu diria que começamos zangados, passamos a esperançosos e acabamos tolhidos, quando não mesmo esmagados. É verdade que nos prometem, nos seduzem e, depois, nos põem o garrote. Mas não é menos verdade que muitas vezes nos deixamos ir, ou até já estamos a jeito antes de vir a mão que nos põe o laço e aperta. Gostamos, queremos gostar, estamos prenhes para gostar do que ouvimos. E depois, um dia, é tarde de mais. No segundo volume, citando de um relatório do delegado italiano a Bad Ems, em novembro de 1922, escreve o mesmo autor: “Hitler (…) fala bem, muito embora com um ardor um pouco tribunício; compreende-se que possa arrastar as multidões. O seu programa, como o nome, é em grande parte tomado do Fascio italiano. Restabelecer a autoridade do Estado; abolir as greves, a corrupção, o desperdício, reduzir a burocracia, numa palavra repor a ordem: eis o seu programa.” Ignorar a História, ou, melhor, jogar com ela um jogo de desafio faz-me lembrar quase – talvez mal comparado, mas serve bem para ilustrar o ponto – o célebre filme de Bergman em que se joga xadrez com a morte. O cavaleiro acaba sempre por perder. 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira

1922, o tempo longo – II


Venho de escrever, há duas semanas, acerca dos livros de Scurati sobre Mussolini ou, na verdade, sobre sinais em 2022 que fazem lembrar – com um intenso arrepio – 1922. 1922, o ano no qual em Itália o fascismo começou a tomar conta da vida, mas também o ano em que noutros lugares a coisa…


Venho de escrever, há duas semanas, acerca dos livros de Scurati sobre Mussolini ou, na verdade, sobre sinais em 2022 que fazem lembrar – com um intenso arrepio – 1922. 1922, o ano no qual em Itália o fascismo começou a tomar conta da vida, mas também o ano em que noutros lugares a coisa ia medrando, e, já agora, também um ano de ganho de corpo do Estado soviético e do seu avanço na conquista de tudo, até do ruído do tempo (como no livro de Barnes sobre Shostakovitch). Scurati aponta Mussolini, logo no título do primeiro livro, como filho do século, mas ele é mais do que isso, é filho dos séculos, do que se repete – mais vezes como tragédia do que como farsa. E as lições que se podem tirar da sua história não são (só) sobre a Itália daquele tempo, são sobre muitos lugares em muitos momentos, porque são afinal sobre a natureza humana, individual e coletiva, e mostram como as pessoas são aprisionados e, também, como se deixam aprisionar, às vezes estando sob o tirano antes mesmo dele chegar e se impor, como se, por vezes, uma tirania (ainda) sem tirano se fosse instalando, fazendo a terra fofa e fértil para que aquele depois se enraíze forte e cresça sadio. 

Tenho visto, frequentemente, a análise da ascensão de certos fenómenos políticos e sociais (ou sociopolíticos, dizendo melhor) que começam marginais e depois ganham expressão ser feita com base na seguinte ideia: nem todos os que aderem professam a ideologia de base (quando há ideologia de base, o que nem sequer acontece sempre), nem mesmo a maioria, e o que sucede é que um grande número de adesões tem por base ou por motivo o protesto contra o statu quo. Não podia concordar mais, e parece-me evidente, no passado e no presente, que, entre o mais, existe sempre uma nota forte de protesto contra o que é e o que está que leva muitos a acreditar que estes fenómenos podem conduzir a um mundo melhor. E quem diz protesto, diz ressentimento, diz medo, e diz, depois, esperança. Mas é preciso muito cuidado, porque depois de um statu quo vem sempre outro, e é necessário ver bem se o que pode vir não é pior do que o que já está. E nisso ajuda a memória, a lição da História, bem como, entre muito mais, a resistência à facilidade de renunciar a isto, depois àquilo, e depois a tudo, em nome da promessa sedutora de dias melhores, dias de ordem, dias fartos, dias providenciais. Primeiro a energia da adesão, depois o torpor da submissão, sendo muito ténue a membrana entre eles. 

No primeiro volume de Scurati, evocando Giacomo Matteotti, em 2 de julho de 1923, no Palio de Siena, pensando no que está a acontecer a Itália, desde pelo menos 1922, escreve-se: “Matteotti não se cansa de repetir o que aqueles companheiros não têm ouvidos para ouvir ou não querem ver. Cometemos sempre o erro de contar com a catástrofe futura, depois acordamos com uma sensação de sufoco que nos oprime o peito, olhamos para trás e descobrimos que o fim já está para trás das nossas costas, o pequeno apocalipse já aconteceu e nós nem sequer demos por isso. A “segunda vaga”, agora abertamente invocada por Farinacci, já nos vai submergindo.” De outro modo, menos inspirado, eu diria que começamos zangados, passamos a esperançosos e acabamos tolhidos, quando não mesmo esmagados. É verdade que nos prometem, nos seduzem e, depois, nos põem o garrote. Mas não é menos verdade que muitas vezes nos deixamos ir, ou até já estamos a jeito antes de vir a mão que nos põe o laço e aperta. Gostamos, queremos gostar, estamos prenhes para gostar do que ouvimos. E depois, um dia, é tarde de mais. No segundo volume, citando de um relatório do delegado italiano a Bad Ems, em novembro de 1922, escreve o mesmo autor: “Hitler (…) fala bem, muito embora com um ardor um pouco tribunício; compreende-se que possa arrastar as multidões. O seu programa, como o nome, é em grande parte tomado do Fascio italiano. Restabelecer a autoridade do Estado; abolir as greves, a corrupção, o desperdício, reduzir a burocracia, numa palavra repor a ordem: eis o seu programa.” Ignorar a História, ou, melhor, jogar com ela um jogo de desafio faz-me lembrar quase – talvez mal comparado, mas serve bem para ilustrar o ponto – o célebre filme de Bergman em que se joga xadrez com a morte. O cavaleiro acaba sempre por perder. 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira