Ascenso Simões. “As redes sociais anulam os intelectuais”

Ascenso Simões. “As redes sociais anulam os intelectuais”


Cada vez que passa uma estação do ano Ascenso Simões envolve-se numa nova polémica. Há que provocar “inquietação”, afirma.


Lá dentro “inquietação, inquietação”. É só “inquietação, inquietação”. Porquê não sabemos. Sabemos, sim, que quem diz que o Padrão dos Descobrimentos é um “mamarracho” a demolir e que no “25 de Abril devia ter havido mortos” é alguém que ‘gosta de ver o mundo a arder’. É o caso de Ascenso Simões – que diz isso tudo mas garante, nesta entrevista, serem apenas expressões simbólicas. “Não há política sem haver inquietação, não há política sem haver provocação. Não há novas ideias sem haver essas alfinetadas”.

Recebeu o i na Assembleia da República mesmo antes da hora de almoço, talvez estando aí a razão pela qual tanto se tenha falado de “fome” durante a entrevista. Está lá desde meados dos anos 90. No início do milénio assistiu à detenção de Paulo Pedroso no âmbito do processo Casa Pia a partir dos jornais que lhe iam fazendo chegar a uma cama no Hospital Pulido Valente.

É um homem livre, não seguindo qualquer cartilha ideológica: contra a eutanásia e o aborto mas a favor que os homossexuais se casem e adotem. Diz não fazer juízos de valor sobre votações em matérias de consciência, mas logo a seguir deixa escapar um juízo sobre o voto de Adolfo Mesquita Nunes nessas matérias – “porque ele é um homem livre”.

É polémico. Critica os portugueses de forma cítrica. Acha que eles deviam exigir mais de si mesmos e não se “lamentarem tanto”. Lamenta a falta de intelectuais, trazendo Sérgio Sousa Pinto como último reduto dessa “elite do pensamento provocador”. Acha um “piadão” a João Galamba, Nuno Palma, Fernanda Câncio ou Isabel Moreira – “de soldadinhos de chumbo estamos fartos”. É Ascenso Simões, a rebentar da tal inquietação a que já nos habituou.

Esteve cerca de 15 anos como deputado, despede-se agora.

Não foram 15 anos seguidos. Estou na Assembleia da República desde 1995, em diversas funções: trabalhando na organização da Assembleia, como membro da conferência de líderes, membro da mesa, sendo membro do Governo e sendo deputado sem nenhuma função. De 95 a 2000 a Assembleia da República transformou-se e assumiu uma modernidade que nunca antes se tinha verificado. Desde Jaime Gama até agora – não responsabilizo ninguém – há uma degradação da imagem do Parlamento, da dignidade dos deputados e da forma de trabalhar dos deputados.

Porquê?

Faço essa pergunta a alguns parlamentares de outros países, e eles dizem-me que isso também acontece lá. Mas acho que há uma circunstância diferente aqui no Parlamento português: a excessiva dependência partidária dos eleitos. Quando cheguei, existia na reunião do grupo parlamentar o Cravinho, o Medeiros Ferreira, o Vera Jardim – tinham uma voz e essa era ouvida porque era uma voz para além do partido. Isto hoje é muito difícil de encontrar porque os partidos transformaram-se em universos internos de poder.

Está ‘caudilhada’ a democracia?

Os partidos estão com pouca paciência para atender à liberdade de pensamento. O partido mais democrático que existe no Parlamento é o PS – porque reúne todas as semanas o seu grupo parlamentar, porque discute, porque há ainda deputados que discordam das orientações. No PSD isso já não existe e, nos outros partidos, isso raramente existe. Quando o PSD perde essa capacidade de inovação e de autonomia de pensamento – e o PS, depois de mais de duas décadas de poder quase ininterrupto, assume um certo lado de partido do sistema -, nós temos um problema do próprio funcionamento do Parlamento enquanto elemento base de fiscalização do Governo, de entendimento da sociedade.

Como se poderá combater isso?

Permitindo que as novas gerações – que são profundamente conhecedoras, capazes e cultas – entendam que o risco e a dissensão são elementos centrais da política. E precisamos de lhes dizer que há mais vida para além da política. Exteriorizarem o seu pensamento e estarem contra em determinados tempos é essencial para eles – enquanto geração! – e para a política: para a sua regeneração.

Os problemas na habitação, emprego ou realização das pessoas são hoje diferentes do que eram há uns anos. Temos que, rapidamente, fazer outra política que não seja uma olhando o passado. E temos que entender os movimentos e responder-lhes sempre tendo um ponto central: a nossa visão ideológica. Em muitas circunstâncias colocamos primeiro a visão ideológica e só depois é que respondemos aos movimentos – fazemos ao contrário.

Uma crítica que a Direita faz constantemente ao PS é exatamente essa….

O PS foi sempre o partido da liberdade – primeiro -, e depois o partido das oportunidades. Nos últimos anos perdemos um bocadinho o sentido da liberdade para darmos mais atenção às igualdades. Nós precisamos de regressar ao partido das liberdades – e isso é central para voltarmos a ser um partido verdadeiramente popular.

Daí retiro que o PS está demasiado à esquerda para si.

Isso é normal. Vamos situar o PS nos outros partidos socialistas sociais-democratas. Depois do insucesso da terceira via, houve um erro que foi considerar que os partidos socialistas tinham sido comprados pelo neoliberalismo. E essa reação levou a que os partidos socialistas – principalmente os do sul da Europa – tivessem assumido uma certa ‘esquerdização’: o partido grego, o francês – ambos desaparecidos – e depois o português e o espanhol. Estes últimos, na governação, não são tão esquerdistas quanto dizem ser. A governação de António Costa foi profundamente social-democrata e até de centro.

O que é isso do ‘neoliberalismo’? Um liberal jamais aceitaria essa palavra.

Os socialistas são por natureza liberais: não sob o ponto de vista económico, mas sob o ponto de vista dos costumes. A OPA que a Direita fez da palavra ‘liberal’ – e que hoje é identificada como ‘neoliberalismo’ – retira desse património o conceito. É por isso que os socialistas e os sociais-democratas deixaram de reivindicar para si a herança do liberalismo.

O Ascenso é um liberal?

Sempre fui um liberal! Mas: com influências católicas e cristãs.

Que fazem de si menos liberal?

Que, em muitas circunstâncias, fazem-me ler as propostas de forma diferente. Para dar um exemplo: um católico é contra o aborto, eutanásia, casamento de homossexuais, adoção por homossexuais e procriação medicamente assistida. Eu separo isto tudo: as questões de eutanásia ou do aborto são de natureza ética, e é por isso que eu voto contra. As questões dos casamentos de homossexuais ou da adoção por homossexuais são questões que têm a ver com a felicidade e a afirmação do Homem. Não tem nada que se meter uma coisa com outra. E mais ainda: a procriação medicamente assistida deve estar ao lado dos que salvaguardam a vida, porque é a criação de vida. Nós não podemos dizer que somos contra o aborto porque somos pela vida e estarmos contra a procriação medicamente assistida.

Diz que votou contra a eutanásia e o aborto por questões éticas. Um deputado do CDS-PP vota contra por questões éticas – sim – mas também por questões religiosas?

Não faço juízo de valor sobre os votos dos restantes. Por isso é que, no meu grupo parlamentar, quando se trata de votar coisas de consciência, não arrebanho votos. Porque isso é do mais íntimo. É talvez aí que se revela a exigência parlamentar.

O CDS arregimenta o voto na questão da eutanásia e do aborto.

Fá-lo e eu não sei porquê. Não sei como é possível ter uma posição tão dura relativamente a essas questões, quando dentro do CDS há gente tão livre. Tenho muita dificuldade em ver o Adolfo Mesquita Nunes a votar contra a eutanásia e o aborto. Porque ele é um homem livre. Não consigo entender a cabeça de alguém que é livre em muitas circunstâncias e pouco livre noutras. Só se for meramente por questões de natureza eleitoral, por posicionamento do partido, por história. 

Disse que sua posição [contra a eutanásia] era ética e não religiosa, contudo, quanta religião tem sua posição ética?

Não tem.

Mas não rejeita as influências do catolicismo.

Não rejeito porque estão presentes na minha formação e na sociedade portuguesa. A minha perspetiva ética não tem uma influência religiosa, porque se tivesse ela também seria influenciada pela religião noutros campos – e não é.

E porque é contra a eutanásia?

Nós, quando começamos, nunca mais sabemos como terminamos. E as sociedades organizadas existem para determinar limitações à nossa própria autonomia e à autonomia do Estado.

Mas vamos supor que uma pessoa tem desejo de morrer e está em condições para decidir segundo aqueles contextos todos de saúde mental etc.

Já reparou que uma grande depressão, uma situação de grande desequilíbrio num país, um problema de falta de provimento de bens, pode provocar uma situação grave em muitos dos universos, familiares e pessoais? Isso implica decisivamente no futuro dessa comunidade, das pessoas seguintes. Marca todas as pessoas que estiveram ligadas a esses atos.

Sempre pela vida, então.

Não, sempre questionando as decisões. Sempre olhando para outros lados e sempre optando pelo que é menos fácil. Acho que isso é essencial para um político: não optar pela facilidade, pelo dia, pela espuma. Nunca optei por aquilo que as pessoas queriam ouvir.

Sempre teve essa liberdade.

Sempre tentei ter essa liberdade.

E nunca a sentiu condicionada?

No Governo senti-me condicionado. Porque, estando no Governo, há obrigatoriamente um condicionamento. Penso tê-lo cumprido. António Costa dizia-me: “Tu só falas com generais, não falas com coronéis”. É a perspetiva institucional que tenho: uma pessoa, estando no Governo, faz parte de um grupo e limita-se nesse grupo. Limita a sua existência individual. Se não quiser cumprir esses critérios, não aceita isso de ser membro Governo.

Falando dos seus tempos no Governo, que memórias traz?

Trago um conjunto de doenças que ganhei. Entrei um menino e saí de lá um caco.

Porquê um caco?

Porque saí velho. Ou seja, quem olhar para mim a entrar no Governo não tinha uma branca e saí de lá com o cabelo branco. Não recomendo a ninguém que vá para o Governo se quiser verdadeiramente governar. Acho que nos sítios onde passei no Governo houve mudanças muito significativas.

Quando António Costa fez 60 anos escreveu um texto no Público a congratulá-lo. Houve quem considerasse isso um ato de bajulação.

Tudo o que escrevo é entendido das diversas formas. Nada do que escrevo é entendido sempre de uma única maneira. Houve pessoas que disseram que me excedi em alguns pontos – que expus o António Costa em algumas coisas menos interessantes – e outras que disseram que foi um ato de bajulação. Foi, essencialmente, o testemunho de alguém que se conhece há 42 anos.

Por quem se sente amizade?

Sim, com certeza. Tenho amizade pelo António Costa e isso foi nítido ao longo destes 40 anos.

Em 2003 era deputado. Na altura deu-se o escândalo da Casa Pia, em que Paulo Pedroso foi detido e António Costa e Ferro Rodrigues apanhados em escutas. Como foi viver aquilo como deputado do PS?

Não foi. Tive um problema grave pulmonar naquela altura. Não estava no Parlamento, não vivi por dentro esses dias. Ainda assim, vivi com pena e tristeza, porque tenho amizade e consideração pelo Paulo Pedroso e senti que havia ali uma tentativa de decapitar o PS.

Levada a cabo por quem?

Não sei. Estava no Pulido Valente, não estava no Parlamento. Não conversava com ninguém.

Mas fazia parte do PS e era deputado.

Nós estávamos num tempo em que não havia redes sociais e em que no Pulido Valente não havia televisão no quarto. As informações que me levavam era um jornal de manhã. A minha leitura, a minha informação, era das visitas – que se preocupavam mais comigo do que com as coisas partidárias.

Em 2022, olhando para as conversas de Ferro Rodrigues e António Costa [em que o primeiro dizia estar-se “cagando para o segredo de justiça” e o segundo procurava ajudar Pedroso com contactos], o que diz sobre o assunto?

Quando falamos ao telefone com alguém que nos é próximo, devemos ter sempre a perspetiva de que estamos a ser ouvidos?

Mas quando se trata de uma questão de justiça, só a intenção de querer interferir parece-me errada. 

O problema que se põe aí é perceber porque é que os telefones estavam sob escuta. 

Se calhar provou-se que fazia sentido estarem sob escuta a partir do momento em que tentam interferir na justiça.

Não, não. Só se sabe isso depois de terem sido colocados sob escuta.

O que comprova que se calhar fez sentido. Não concorda?

Não. Há liberdade de podermos dizer o que nos apetecer ao telefone. Não é crime. Isso é uma avaliação ética. É uma avaliação a posteriori de uma coisa que nós dissemos para um amigo.

Não são propriamente duas pessoas no café de Mangualde.

Em primeiro lugar, estamos a ver isso 20 anos depois. Depois, estamos a ver isso a partir do princípio de que as decisões de colocar essas pessoas sob escuta foram válidas. Ainda, estamos a ver isso sobre um ponto de vista que é ‘temos uma ideia sobre o processo’. Isso é tudo incorreto – tendo em conta o tempo que passou, o que se soube, o facto de Paulo Pedroso ter sido ilibado. Não acho que faça sentido, 20 anos depois, continuar a fazer leituras e apontar o dedo a quem quer que seja por questões que foram ditas numa chamada telefónica para um amigo, não se sabendo que estava sob escuta e sem haver razão para estar sob escuta. Eram dirigentes do PS, estavam a sentir o PS atacado, como aliás se veio a provar no processo. Implicar o Ferro Rodrigues, implicar o Jaime Gama? Mas isto é tudo um bando de tontos?!

O PS de 2022 é muito diferente do de 2003?

Já não há ninguém no grupo parlamentar. Do Congresso de 81, há – havia! -, no ativo, três pessoas: o António Costa, o [Luís] Capoulas [dos Santos] e eu. Agora é tudo diferente. Se nós olharmos para a maior parte dos deputados, são todos pós-guterristas. O PS, no pós-Guterres, teve três anos fora do poder – com Barroso – e outros quatro com Passos Coelho. Depois, rapidamente voltou ao poder e transformou-se no partido do sistema. Antes era o PSD.

Como é que ser um partido do sistema se reflete dentro de um partido?

Perde-se capacidade de reinventar, discutir, inovar, se adequar às novas realidades. E isso o PS português – e não o espanhol – está a perder.

Tornou-se, de certa forma, num partido conservador?

Não, tornou-se um partido desatento. Há muitos movimentos na sociedade que o PS podia estar a acompanhar – e por vezes a liderar – e que estão à espera de que o PS o faça: o mundo estudantil, o mundo dos investigadores, o mundo dos novos empresários.

E porque a Direita também se esquece disso?

Porque o problema da Direita, neste momento, é um de autofagia. A Direita não tem líderes, programa ou futuro. Os únicos na Direita que têm alguma coisa disso são os liberais – os neoliberais.

Cotrim de Figueiredo torna-se então na estrela que mais brilha do universo da Direita?

Veja lá a desgraça que é a Direita.

Rui Rio é de Direita?

Rui Rio é um português. Tenho simpatia pessoal pelo Rui Rio, mas essa leva-me a olhar para ele e não ver ali nada de hoje.

Diria o mesmo de António Costa?

Não, António Costa tem coisas do passado e coisas do futuro. É, essencialmente, um descobridor. E um descobridor permanentemente inquieto. Às vezes isso cria problemas à governação.

Voltando a Rio…

O país precisa de sair desta pandemia libertando-se. E Rui Rio não traz nada de novo de libertação. Só o PS é que tem ainda algumas coisas que nos dizem que o país pode sair disto com alguma liberdade. Nesta campanha, quais são as linhas do PSD? Rui Rio substituiu um programa por três desejos: descer o IRS, descer o IRC e descer o IVA da restauração. Isso não é um programa de governo, isso é um programa de um contabilista. Nós precisamos de um libertador, e esse é António Costa.

Descrevia Rio num jornal como uma pessoa “cheia de problemas existenciais” que se “encobre numa couraça de aparente fortaleza para fazer política e para viver a vida”, comparando-o aos membros “elite das SS” [polícia Nazi]. Não acha isto radical?

Não. O que se escreve nos jornais tem que ser lido com as simbologias e com as distâncias devidas. As interpretações literais são o pior que se pode fazer à política. Não há nenhum interesse num artigo sem este ter beleza, inquietação ou provocação. Se não tiver isso as pessoas leem na diagonal e passam à frente. Não há política sem haver inquietação, não há política sem haver provocação. Não há novas ideias sem haver essas alfinetadas.

E vê essa disrupção nos seus pares do PS?

Isso é uma das coisas que a política no tempo de hoje vai eliminando, principalmente nas pessoas responsáveis. Durante muito tempo tive divergências ideológicas com o João Galamba, mas acho-lhe um piadão – como acho à Isabel Moreira, à Fernanda Câncio ou ao Nuno Palma. A política precisa dessa gente. De soldadinhos de chumbo estamos fartos.

Há falta de intelectuais na política portuguesa?

Há. 

E havia-os na Assembleia Constituinte?

Mais.

E por que é que há falta de intelectuais?

Porque as redes sociais anulam os intelectuais. Não se consegue ter uma ideia elaborada em cem carateres. Com um problema ainda acrescido: é que em Portugal nunca tivemos intelectuais públicos. Aliás, tivemos, mas começamos a deixar de ter: Vasco Pulido Valente, Cunha Rego, Nuno Brederode dos Santos. Nós perdemos essa elite do pensamento provocador. O Sérgio Sousa Pinto é hoje um intelectual público. Tem condições para ser um intelectual público reconhecido na Esquerda, mas em muitas circunstâncias descuida-se. Se nós olharmos para quem escreve nos jornais hoje é confrangedor. Não há pessoas que estejam na política, que estejam nas empresas ou que estejam na alta administração pública a provocar a nossa inquietação.

Porque muitas vezes serão profissionalmente prejudicadas.

Com certeza. A liberdade tem custos. Quantos vezes eu senti os custos da minha liberdade.

Quando escreveu que o Padrão Descobrimentos era um “mamarracho” que tinha de ser demolido, sentiu os custos da sua liberdade?

Aí há duas questões diferentes: a primeira é uma questão estética. A segunda é uma questão simbólica – quando escrevo que o Padrão tem de ser demolido, não estou a escrever que o Padrão tem de ser demolido. O que tem é de ser interpretado, como acontece nos países desenvolvidos e quando se olha para o passado e se vê o passado numa perspetiva do passado – não do presente.

Mas quando escreve que o Padrão tem de ser demolido não está à espera que os leitores achem que tenha de ser limado, não é?

Mas está a ver? O problema que se põe é que essa minha posição criou uma discussão nacional. E a criação da discussão nacional terá os seus frutos. E a forma como as pessoas passaram a olhar o Padrão dos Descobrimentos – com custo para mim – é diferente antes e depois dessa minha posição.

Mas defende ou não que deve ser demolido?

Não, não deve ser demolido. A demolição é simbólica! Toda a gente percebeu isso quando leu aquilo. É como quando disse que “devia ter havido mortos no 25 de Abril”. Isso é simbólico. A escrita dos políticos – principalmente os políticos que têm obrigação de provocar as pessoas – não pode ser uma escrita linear. Os políticos não podem só aprender o AEIOU!

Mas quem mais faz isso além de si na política portuguesa?

De vez em quando há umas celeumas. A Câncio faz isso, o Nuno Palma faz isso, o Sousa Pinto faz isso, o Francisco Assis faz isso, o Paulo Rangel, de quando em vez, faz isso. Agora há pouca gente a fazer. Somos um país demasiado pequeno. Precisávamos ser maiores na nossa cabeça, na nossa inquietação, na nossa própria forma de nos olharmos! Ficamos sempre num canto, no fim da sala: ninguém se propõe a teorizar, a fazer um discurso, a querer ir ao quadro! Nós temos, em Portugal, três momentos de afirmação: o Rei fundador, o Rei estratega e o rei da Europa: D. Afonso Henriques, D. João II e Mário Soares. E temos obrigação, hoje, de olharmos para este terceiro reino e fazermos disto alguma coisa. Temos que deixar de ser os coitadinhos que andam sempre a lamentar-se. Temos que puxar pela carroça. Não podemos estar sempre a lamentar-nos: ninguém trata de nós, temos de ser nós a tratar.

A não ser um serviço à causa pública ou ao país, um jovem que saiba que consegue singrar na Europa não tem motivos para ficar em Portugal. Não há condições. Tem de emigrar. 

Há mais de uma década que deixei de utilizar a palavra emigração. Não há emigração, isso deixou de existir.

Na Europa?

Na Europa. Então nós somos a Europa ou não somos a Europa?! Então temos um espaço de liberdade de capitais, de mercadorias e de pessoas e falamos de emigração?!

Então um jovem indo trabalhar para Alemanha …

Não é emigrante nenhum! É um cidadão europeu. Nós dividimos as pessoas que saem do país em dois grupos: os emigrantes que são pobres e os expatriados que são ricos. Os filhos das grandes famílias que iam estudar para Londres não eram emigrantes, eram expatriados – estavam fora da sua pátria. Os tipos pobres que iam a salto para trabalhar nas obras em Paris e viver nos bimobil eram emigrantes.

Acha que o Maio de 68 foi um dos momentos mais importantes da modernidade?

O século XXI é o século de todos os continentes…

Não sei o que é isso.

É o século em que todos os espaços territoriais se afirmam com novos centrismos. A afirmação da China regressa ao sinocentrismo. A afirmação de África regressa o afrocentrismo (e vai até buscar o Egito como elemento fundador). O século XX foi o último século do eurocentrismo. Ou seja, infelizmente – ou felizmente -, passámos a ter um mundo multipolar no que diz respeito ao pensamento, a ideologia, às propostas políticas, à vida diária.

Isso cai com o Muro de Berlim?

Não, nasce com a televisão. A televisão – as transmissões em direto, os filmes que vinham da Austrália, os filmes que vinham da América do Sul, a informação que vinha diária da América do Norte – criou o mundo. A televisão é um verdadeiro instrumento de globalização.

E não acha que tornou o mundo um bocado mais enfadonho?

Isso é só quem não consegue ver beleza nos episódios da natureza que passam na SIC domingo à hora de almoço. O mundo é tão bonito que nunca é enfadonho. 

Essa beleza não será um bocado burguesa a mais?

Não, não. É tão primária que qualquer pessoa que nunca ouviu falar na burguesia acha que ela é extraordinária e bela. Qualquer “indígena” de uma África mais profunda encontra beleza numa grande planície onde existem todas as cores, quer no chão, quer no horizonte, quer nos animais.

Uma pessoa que estiver com fome pensa nisso?

A fome é uma coisa que existe porque no mundo industrializado não temos acesso aos bens. A fome das pessoas quando não viviam no mundo industrializado era saciada caçando ou tirando das árvores.

Há gente que morre à fome no mundo industrializado.

Há gente que morre à fome porque passamos a ter um mundo industrializado. Tudo é feito numa perspetiva extrativa. Deixámos de ter a perspetiva de contemplação de viver com a natureza.

Ninguém consegue contemplar a natureza se tiver a barriga vazia. Vai definhar.

Esse é um problema também do entendimento das migrações. Ao longo de séculos, o Homo Sapiens foi-se transferindo de territórios fruto dessas implicações naturais. Agora, com a divisão dos países, deixámos de ter a capacidade de migração. A partir do momento em que se sai de uma fronteira já se passa a ser um migrante e deixa-se de ter a possibilidade de ir comer ou de encontrar os bens para o poder fazer.

Está então a dizer-me que antes da criação dos Estados modernos não se morria à fome?

Não havia nada do que nós pensamos que é a fome, a sociedade e o fornecimento de bens. Em segundo lugar, não havia nada do que era médicos ou saúde. Em terceiro lugar, ninguém pensava sobre o fim da vida. Em quarto lugar, ninguém queria saber onde ia ficar e como é que se ia organizar.

Ou seja, o conceito de morrer à fome é uma criação da modernidade?

É um conceito que nasce depois do Homem ter deixado de ter a capacidade de ir à procura do alimento.

Até aí morria-se de quê?

De razões naturais.

Acha que o conforto que traz o capitalismo é prejudicial ao Homem?

É prejudicial à capacidade do Homem de se reinventar. 

Como se muda isso?

Com coisas naturais. A China, por ir invadir a Europa do ponto de vista cultural, vai obrigar a que esta se adeque. A China e o espaço muçulmano. Ou nós temos uma capacidade, enquanto comunidades, de olharmos para isto e agirmos – e temos que fazê-lo nas próximas décadas – ou então somos colonizados. 

A cultura islâmica tem coisas bastante diferentes da europeia, nomeadamente no que toca a liberdades sexuais ou respeito pelas mulheres. Acha que isto poderá vir a ser um problema?

Mas essas diferenças não são apenas importadas do exterior. São, também, um problema interno. Temos a ideia de que a França é um grande país, um país moderno. O espaço rural francês é do mais arcaico que existe. O inglês idem. Esse espaço vai continuar a existir e ter dificuldades em adequar-se à realidade. O Vox é hoje um partido que tem uma influência determinante em Espanha. Nega o papel das mulheres, das liberdades individuais ou da liberdade ensino. Onde é que estava essa gente? Essa gente existia, só que estava bem com sistema. O sistema deixou de lhe fornecer as ideias e os bens essenciais, e as pessoas revoltaram-se. Foi assim, sempre, que nasceram os regimes de totalitários.

Escreveu que um dia estaríamos a questionar a Europa. Acha que, no futuro, a União Europeia terá problemas em manter-se unida?

Se nós olharmos para a história, todos os grandes blocos acabaram por cair. Os impérios romanos foram os grandes blocos que marcaram a Europa e desapareceram. 

O mesmo acontecerá com a Europa?

É inevitável. Agora, fazer futurologia sobre o que vai acontecer no século XXI… Acho que o século XXI é perceber até onde vai o homem permitir a máquina. E é nessa circunstância que temos de viver.

Pensa que, fruto da tecnologia, o Homem pode tornar-se cada vez menos Homem?

Pode. Já está a tornar-se. Porque o espaço de criação de vida própria da máquina é incomensurável.

Mas a máquina ultrapassa homem?

Já está a ultrapassar o homem. Faço uma pesquisa no Google sobre praias na Galiza e passadas duas horas está em todo o lado coisas sobre praias na Galiza. 

Há bocado falávamos da beleza. A máquina não chega à beleza.

A máquina chega à beleza pelo número de cliques.

Mas isso não é verdadeiro. 

Mas isso é partindo do princípio de que a nossa beleza é que é verdadeira. Nós podemos ir à procura do que mais ninguém procura. O que acontece é que o homem da massa vai à procura daquilo que é a beleza da massa. Isso é o que está a acontecer e é por isso que a máquina implica decisivamente no homem e hoje já o comanda.

Há certas coisas no ser humano que a máquina nunca atingirá.

Só a perversão é que a máquina ainda não consegue imitar.

Como é que a máquina chega à alma?

A perversão e a promiscuidade são exteriorizações da alma. As máquinas implicam na nossa própria capacidade de sermos maus. As redes sociais levam-nos à reação em cadeia relativamente a uma coisa qualquer. Nós estamos a ficar maus fruto da máquina.

Como se poderá combater isso? 

Com mais informação, com mais formação, com mais clareza e, principalmente, sem medo: nós não somos seres bondosos. Temos é de deixar de ter medo de nos expormos.

Daí concluo que as redes sociais fazem mal aos humanos?

A massificação faz mal aos humanos. E as redes sociais são instrumentos da massificação. Isso não é um problema de hoje. Os totalitarismos fizeram isso. E as redes sociais estão a levar-nos para aí.