É desolador ver como alguns comentadores se rejubilam com o infrutífero resultado de algumas das acusações mais relevantes do Ministério Público (MP).
Pior, se possível, é verificar como alguns dos seus responsáveis associativos, quando escrevem nos jornais, parecem não se sobressaltar com o sucedido e, quando abordam tais casos, aparentam tudo justificar apenas com razões externas ao MP.
Mais enigmático é, contudo, constatar como tais episódios não levaram já, aparentemente, a um profundo processo de reflexão interna no seio da própria instituição.
Poder-se-á sempre dizer que tanto se faz Justiça com uma condenação, como com uma absolvição.
É certo, mas quando uma, duas, três acusações criminais incidem sobre alguns dos responsáveis mais altos das instituições da República e se refletem, portanto, no desempenho e autoridade destas, não conduzindo, depois, no essencial, ao reconhecimento pelos tribunais do trabalho de investigação e à comprovação das propostas de condenação formalizadas na acusação do MP, não nos podemos bastar com tal constatação.
Qualquer que seja a opinião que se possa ter sobre o teor de algumas das sentenças e decisões que determinaram o desfecho de tais acusações – e algumas são, deveras, suscetíveis de algum espanto – o que se evidencia é sempre a dificuldade que o MP tem de, na Instrução ou em Julgamento, as fazer vingar.
Uma vez que tais casos se repetem, era, no mínimo, razoável que o MP se debruçasse, sem autoindulgência, sobre a escolha das metodologias de trabalho que conduziram a tais resultados.
É verdade que a reforma do funcionamento do MP não se esgotou na recente revisão do seu Estatuto.
É, por isso, necessário – como já defendi – revisitar ainda os normativos do Código de Processo Penal que regulam o funcionamento da sua hierarquia processual.
O Código de Processo Penal (CPP) é, na verdade, a sede própria para, com transparência e controlo efetivo, se delinearem as responsabilidades processuais de todos os magistrados que intervêm, de facto, na condução dos processos.
Teremos de convir, também, que – e enquanto -, o CPP não for revisto no que respeita à intervenção hierárquica processual, os muitos magistrados, alegadamente com poderes de direção, que, a diferentes níveis, integram a carreira do MP não podem, na verdade, concretizar quaisquer reais funções de controlo, orientação e coordenação das investigações e peças processuais elaboradas, em cada momento, por magistrados com inferior responsabilidade e, em princípio, com menor experiência.
Isso tende a fazer, hoje, da hierarquia do MP uma cadeia de comando que privilegia, sobretudo, a intendência.
Se isso a isenta – para alívio de alguns – de responsabilidades funcionais no âmbito processual, não lhe permite, porém, exercer, tempestiva e adequadamente, as competências constitucionais que justificam a existência do MP, enquanto magistratura autónoma e diferenciada da judicatura.
Foi, aliás, essa sua condição de magistratura responsável e hierarquizada – e, por isso, mais flexível na organização e gestão operacional dos processos – que esteve, verdadeiramente, na origem da atribuição ao MP da direção do inquérito, no atual Código de Processo Penal.
Claro está que as mudanças necessárias não dependem, apenas, de reformas legislativas.
Nem, dadas as circunstâncias, por elas se deve esperar tão cedo.
Urge, por conseguinte, uma reflexão interna sobre vários aspetos da prática processual consolidada nos últimos anos no Ministério Público.
Tal reflexão deve partir de um postulado simples: toda a prova dos factos de uma acusação tem e deve ser reprodutível em julgamento.
Não bastam, com efeito, para o seu sucesso, as convicções pessoais dos magistrados, mais ou menos bem expressas nas acusações, se o que nelas se disser for impossível, ou tiver muita dificuldade, de ser comprovado em julgamento.
O julgamento é, de facto, o momento crucial na prestação de contas criminais.
Partindo desta ideia – epicentro do nosso sistema processual penal – será, pelo menos, necessário reexaminar criticamente a atual formulação e distribuição de funções e responsabilidades dos procuradores, no âmbito dos processos mais complexos e relevantes socialmente.
Parece, desde logo, pouco curial que as funções que o MP exerce no julgamento estejam arredadas da especialização que, supostamente, é exigida aos procuradores que agem na fase de investigação e acusação.
Por outro lado, teremos de convir, também, que só quem tem experiência efetiva – atual ou pretérita – de julgamento está em condições ideais para preparar um libelo acusatório que não se apresente como essencialmente auto-justificativo, mas tenha em mente, sobretudo, a viabilidade da sua reprodução e comprovação em juízo.
Uma acusação não pode ser um repositório de convicções; antes, um projeto de sentença devidamente assente em provas legais e, em princípio, cabais e irrefutáveis.
Importa, ainda, pelo que antes se disse, compreender como é fundamental saber gerir a estratégia processual – deixando de lado os exercícios de estilo de pendor académico – isolando as condutas e os factos sobre os quais há certezas razoáveis e provas claras, daquelas outras situações sobre que, mesmo quando plausíveis, se avolumam dificuldades na definição dos seus contornos e, por isso, são de prova difícil em juízo.
Uma acusação não pode assemelhar-se, assim, a uma aposta de jogo ou lotaria, nem, como se costuma dizer, para atirar o barro à parede.
Ela deve, pois, ser e parecer sólida e consistente.
Tomando em conta estes três aspetos, o MP, como corpo de magistrados hierarquizado, pode iniciar – sem necessidade de reformas legislativas prévias e, até, tendo em conta as que hão de vir – uma reflexão própria que parta da análise concreta dos processos mais problemáticos e das questões que eles têm suscitado.
Nisso reside, também, o exercício da sua autonomia e o sentido da responsabilidade dos seus magistrados.