A justiça portuguesa encontra-se neste momento totalmente descredibilizada, surgindo todos os dias notícias que demonstram uma deficiente gestão processual. Na verdade, não é aceitável que cidadãos sejam acusados e julgados na praça pública, acabando depois por ser despronunciados ou absolvidos pelos tribunais, sem que ninguém dê sequer uma explicação sobre o que levou a essas acusações infundadas. Surgem denúncias de irregularidades na distribuição de processos, que colocam em causa o princípio do juiz natural. Ao mesmo tempo temos custas judiciais elevadíssimas, que expulsam a classe média dos tribunais, enquanto que os honorários dos advogados no apoio judiciário se mantêm estagnados desde há mais de uma década.
Perante isto, esperava-se que os partidos que aspiram a formar governo, como o PS e o PSD, apresentassem propostas concretas que permitissem inverter estes estado de coisas. Infelizmente, no entanto, nada disto se passa.
Os programas eleitorais destes dois partidos apenas apresentam ideias vagas, a maior parte das vezes coincidentes. Assim, enquanto o programa do PS propõe “manter um esforço permanente de informatização dos processos judiciais”, o do PSD propõe uma “forte aposta na gestão e na digitalização e tecnologia”. Não por acaso, na semana passada o sistema informático dos tribunais administrativos e fiscais (SITAF) esteve bloqueado durante três dias, impedindo os advogados de praticar actos nos processos. Seriam bom que o “esforço” ou a “aposta” passassem antes por colocar nos tribunais sistemas informáticos que funcionem.
Outro ponto coincidente dos dois partidos é tirar a justiça dos tribunais. O programa do PS é claríssimo nesse sentido, propondo-se remeter “processos onde estejam em causa questões da vida dos cidadãos (ex. regulação do poder paternal, heranças)” para “julgados de paz e sistemas de resolução alternativa de litígios”. Já o do PSD propõe-se instituir “comissões independentes junto de entidades públicas, especificamente vocacionadas para a decisão de conflitos de valor inferior a metade da alçada dos tribunais de primeira instância”. Parece assim que o objectivo destes dois partidos é que a justiça deixe de ser feita nos nossos tribunais, empurrando os cidadãos para outras entidades, o que seria altamente lesivo do nosso Estado de Direito.
Os programas destes dois partidos coincidem ainda em não propor a imprescindível redução das custas judiciais. O do PS só se propõe “reduzir as situações em que as custas processuais importam valores excessivos, nos casos em que não exista alternativa à composição de um litígio”. Como essa (má) alternativa quase sempre existirá, as custas processuais permanecerão assim tranquilamente nos tais “valores excessivos”. Já o do PSD refere apenas que “os regimes de custas judiciais e de apoio judiciário têm de se organizar em função da condição social desse cidadão e das condições, por vezes de insolvência, de empresas e empresários em nome individual”. Se a ideia é passar a fixar custas com base nos rendimentos de cada um, teremos uma transformação das custas processuais em impostos, em lugar de se assumirem como taxas moderadoras do serviço público de justiça, cuja redução é imprescindível.
Mas os programas dos dois partidos coincidem igualmente numa clara tentativa de controlo político da justiça. No debate entre António Costa e Rui Rio, este último foi acusado por aquele de pretender controlar a justiça, ao propor a reforma do Conselho Superior do Ministério Público, colocando uma maioria de não magistrados no mesmo.
Efectivamente, o programa do PSD não só propõe instituir uma maioria de não magistrados nos Conselhos Superiores como também pretende que estes não sejam oriundos de profissões jurídicas, nada percebendo assim do sistema judicial que teoricamente iriam gerir. Só que o programa do PS propõe-se fazer exactamente o mesmo em relação às Ordens Profissionais, ao se propor “concluir a reforma da Lei Quadro das Associações Públicas Profissionais e a adaptação dos respetivos estatutos”. Ambos os partidos se propõem assim controlar as entidades independentes no sector da justiça, colocando-as sob o seu controlo político.
Podemos assim concluir que, se a nossa Justiça atravessa hoje uma situação desesperada, com a execução destes programas partidários ainda ficaria pior.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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