Literatura. O assalto do fantástico à realidade

Literatura. O assalto do fantástico à realidade


É importante interrogar a literatura que hoje se escreve, e, particularmente, a narrativa, a partir da sua capacidade de desmontar a realidade e as contingências a que nos força como uma inversão do mundo em que o homem é capaz de representar o que sente e pensa.


Temos tanta dificuldade em ser fantásticos, terríveis ou mesmo absurdamente discretos, viver nos limites de um segredo espantoso. Que difícil é, hoje, mesmo para os inventores de razões inordinárias, de mentiras sumptuosas, contrariarmos a nossa natureza, irmos ao fundo de um pressentimento que nos desloca das coordenadas mais vulgares, desses fundos falsos que cremos ser as fronteiras da realidade. Não precisaríamos de acreditar na transcendência, bastaria que não fôssemos tão somíticos com os conceitos ou noções através dos quais nos integramos ao mundo que nos rodeia. Esta é uma época em que a desilusão se fez uma espécie de ideologia, em que se desprezam todos os sinais da festa metafísica que se descobrem ressequidos, em loiças cujos motivos galhardos nunca mais recuperaram o seu poder de inquietação ou as leituras que nos inspiravam. O cheiro a desastre é demasiado forte para não ser acatado, para não demover todos os que não se tenham habituado a buscar animo no próprio ranço moral que, hoje, de novo nos domina. O fantástico viu-se defenestrado, e com ele todos os organismos e direções em que apontou deram origem a galerias afundadas nessa melancolia das formas arruinadas que não deixam à respiração margem para imaginar que possa reerguer-se. Os narradores estão tolhidos, e mesmo os mais imaginosos, não se atrevem a abandonar aquele “estilo minucioso e cortês, a mesma delicadeza de pesadelos, o mesmo cerimonial compassado, ridículo, as mesmas buscas inúteis, porque não levam a nada; os mesmos raciocínios bem marcados, exaustivos, e as mesmas iniciações estéreis, que não iniciam nada”, tudo isso que, no entender de Sartre, caracteriza os romances de Kafka. Mais uma vez, um percursor impõe-se-nos como uma maldição que não somos capazes de sacudir, e com ele esta desconfiança benigna de que existirá uma realidade transcendente, mas que esta se tornou inalcançável para nós, e que “serve apenas para nos fazer sentir mais cruelmente o desamparo do homem no seio do humano”. Mas depois, Sartre, remete-nos para uma curiosa anotação marginal de um astrofísico britânico do início do século passado, Arthur Stanley Eddington, que nos provoca e faz sentir de novo o apelo do fantástico: “Descobrimos uma pegada nas margens do Desconhecido. Para explicar a sua origem, edificámos teorias sobre teorias. Conseguimos, por fim, reconstituir o ser que deixou essa pegada, e acontece que esse ser somos nós próprios.”

Seja como for, é necessário primeiro extirpar todo o convencionalismo da ideia que fazemos do fantástico, e desde logo essa facilidade de vê-lo sempre como um território assombrado pelos efeitos do sobrenatural. O fantástico seria antes de mais um despertar a meio de tudo, quando os processos estão abandonados a um regime impassível, as coisas se mostram agarradas como pela raiz às suas funções, os homens assumem os seus gestos e rotinas sem admitir qualquer perturbação que possa atrasá-los. Tudo o que se intrometa é sentido como inoportuno, e às tantas tem-se do mundo essa perspectiva de um lugar esvaído, em que os próprios sentimentos subsistem apenas como acenos rituais a uma condição há muito suspensa. De algum modo, o ser fantástico nasce de uma contradição que, mesmo ao nível dos efeitos menores, começa a produzir uma sequência de atrasos. Encara tudo à sua volta, tudo o que a que a normalidade impôs alguma tarefa e todos aqueles que restringiu a um horizonte de certas funções, tudo isso subitamente parece suspeito. E nós mesmos, que até há pouco, estávamos sujeitos a essa mecânica, sentimo-nos deslocados uns poucos passos para o lado, o suficiente, no entanto, para encararmos todo aquele frenesim que nos tinha entre os seus conjurados, como uma fantasmagoria que agora nos provoca não tanto repúdio como uma certa náusea. Olhamos para todos esses signos que organizam a existência quotidiana como caracteres de uma língua morta, e todos os objectos aos quais atribuímos uma utilidade ou valor parecem-nos agora os restos de uma civilização que precisa de desaparecer. E com ela os seus fins, toda a sua destemperada velocidade que acabou desgarrada de qualquer sentido ideal e urgente e se muniu de meios monstruosos e ineficazes, os quais apenas garantem que os homens são esses estranhos seres que segregam a devastação de forma ordenada, cidades inteiras onde tudo nos empurra para fora de nós, onde a matéria funciona como visco, elementos da corrosão do espírito, que se vê agrilhoado e humilhado por um ritmo que sempre o desgasta ou expulsa. Resta, por isso, certas actividades persistentes e inúteis, malvistas, ignoradas, relatos que à luz da mentira surgem como ficções, formas de isolamento face ao mecanismo geral, essas histórias que nos parecem misteriosas porque, como nos diz Blanchot, nos dizem “tudo a respeito do que justamente não suporta ser dito”.

Mas se, hoje, pelo contrário, se pretende tratar como ficções hipóteses que, em lugar de hipóteses que tratem desta inversão das coisas, apenas nos afundam mais ainda nesses horizontes contingentes, nesse regime ilusório e na sua fachada impositiva, estamos ainda a ser dilacerados pela extensão da realidade como máquina absurda para o interior da imaginação. Trata-se de um envenenamento que determina que qualquer homem que ainda venha a nascer nesta atmosfera condenada se sinta infinitamente só, e que tenha de atravessar os seus dias como um exilado íntimo, colhendo alimento nessa zona marginal do fantástico, decidindo o seu destino mesmo contra aqueles que, sendo-lhe próximos, e a quem se sente afectivamente ligado, são incapazes de uma rejeição dos aspectos principais dessa trama que se torna tão mais supersticiosa e intolerante quanto mais ameaçada se sente. E é por isto que todo o leitor, nesse parêntesis em que se vê deslocado das circunstâncias desoladores que o arregimentam no dia-a-dia, e se sente identificado com o herói fantástico, vive de forma angustiada esse conflito consigo mesmo, e sente-se um estranho face às suas próprias sensações, e quando, ainda sujeito à embriaguez dessa consciência, dá sinais dela, no meio de todos os outros sente-se “uma vítima e um carrasco” (Sarte), e sofre novamente aquele efeito de humilhação tão característico da infância, a exasperação da criança (como a do sonhador ou do primitivo) tentando explicar-se frente aos adultos, tentando explicar com palavras deste mundo essas noções que o estilhaçariam de vez. Essa hipótese mágica, hoje, e dado o avançado da hora, tornou-se uma proferição diabólica, uma língua que apenas sabe anunciar catástrofes, e é por isso que a literatura, aquela que nasce como um distúrbio, se tornou a ocupação de uma raça maldita, a qual parece entreter-se com visões apocalípticas. Mas isso é apenas uma visão parcial das coisas, a desses que se recusam a reconhecer a inversão do mundo na realidade com que nos confrontamos todos os dias, aqueles que ainda se debatem pelo pequeno lucro que pode ser conquistado dentro dessa ficção imobilizada, e que recusam toda a transcendência. A grande calamidade para estes prende-se com tudo o que possa comprometer os seus interesses específicos de acordo com as voláteis (ainda que violentas e obstinadas) leis em vigor. O seu universo é simultaneamente patético e absurdamente concreto e doloroso. Mas é da familiaridade com esta dor que a maioria não abdica. Esta dor, na sua frequência quase estimulante, parece manter as coisas no seu lugar. Ao menos isso: a estagnação como valor supremo. Por agora, o futuro é precisamente aquilo de que não queremos falar. E sempre que nos projectamos adiante, esse território aparece-nos como um labirinto doentio, como um organismo intestinal sem saída, cheio de extensões e membros atrofiados, e que só conseguisse adormecer debruçado sobre a água de um curso que lhe devolva um reflexo amaciado, feito por esse fluxo apaziguador das alegorias do presente. Toda a narrativa que procure encarar o destino da nossa época não consegue abandonar esse regime alegórico. Mais do que um sinal de cansaço, este é o efeito de um terror em vislumbrar a condição a que diariamente nos destinamos. E se é certo que a negligência com que nos trata é, em certos aspectos, inimaginável, o que é própria da nossa condição é este incapacidade de afastar em absoluto o tumulto interior perante aquilo que não podemos ignorar inteiramente. Por isso, são cada vez mais aqueles que dão pela sua saúde precocemente arruinada, aqueles que desistem da vida como pássaros que parecem cometer um erro de navegação e se esmagam em grande número contra as janelas de edifícios tão altos que julgam estar suspensos da Terra. É nos corpos que hoje se pode ler os textos mais duros em relação à nossa condição, estes corpos que, apesar de belos, num momento de distracção, exprimem a humilhação absoluta de serem constantemente tratados como fins em si mesmo, a estatuária de uma sociedade que proclamou o divórcio entre o físico e o espiritual. O pior que se pode dizer sobre a nossa vida é que ela continua. Contra si mesma, por algum capricho maligno, encaminhando-nos por um sensação do mundo em que dizer vida ou doença parece ser a mesma coisa. Tudo nos aparece às avessas, e, por isso, só é possível ler os sintomas de um mal que se adia. Toda a coragem se assemelha a um precipitar do que se nos impõe como inevitável. Os outros especializam-se em adiamentos. Todo o leitor sente-se eleito por um pesadelo que o visita sempre que pega num livro que parece especificamente dirigido à sua consciência. Sempre que abre algum é como se a realidade inteira perdesse o chão. De cada vez que acorda, no seu íntimo, chega a sentir que atraiçoa tudo aquilo que sabe. Reconhece, no entanto, que esse é um dos efeitos da actuação do veneno no organismo dessas velhas noções de que se liberta, e entende também que o fantástico persiste para lá dessa biologia maldita, à espera que se dê, por fim, a inversão, em que a alma voltará a ocupar o lugar do corpo e o corpo o da alma, de modo a que realidade volte a parecer-nos algo tão disponível a ser trabalhada pela nossa vontade e imaginação como um sonho.