Entre as muitas narrativas que chegaram até nós vindas da infância da humanidade, poucas são tão significativas, tão persistentemente vitais, como a da transformação do humano em animal. Sem prejuízo do artifício literário, não podemos deixar de olhar para esta transformação como uma expressão ficcional da ameaça que Hobbes intuiu pairar permanentemente sobre a nossa cabeça: está quase sempre a menos de meio passo de escolher a violência.
E, entre este conjunto de narrativas, talvez a mais difundida seja a da transformação do homem em lobo. Não deixa de ser curioso reparar que, de entre os monstros canónicos do cinema de terror (uma das mais plenas e consequentes versões contemporâneas do folclore), o lobisomem ocupa um lugar ímpar. Fantasmas, vampiros, zombies ou, até, o Monstro de Frankenstein, ainda que em diferentes manifestações, pertencem a uma mesma estirpe e expressam o nosso medo da morte, ou melhor, a nossa repulsa pelos que que regressam de entre os mortos: a mais violenta, física e radical perversão da natureza. Já o lobisomem é, de forma bem mais evidente, uma expressão do medo da animalidade que, em potência, cada um de nós carrega dentro, sendo o lobo um elemento cultural comum para expressar a ideia da besta que transportamos no âmago, presente em diversos folclores europeus.
Como a etnologia e a história do Direito mostraram, em muitas comunidades arcaicas aquele membro que colocava em causa a harmonia interna do grupo seria, em última instância e na ineficácia de qualquer outra punição menor, proscrito, isto é, posto fora do clima de paz e de proteção mútua em que os membros da comunidade viviam nas relações entre si, equiparável a um animal selvagem, que por todos deveria ser perseguido e eliminado e que ninguém deveria proteger. Apesar de não podermos estar absolutamente certos sobre as suas implicações concretas, no direito inglês medieval ainda era comum a ideia de que o criminoso deveria carregar a cabeça do lobo, o que, mesmo não significando uma imposição factual – a de literalmente ter de usar uma cabeça ou máscara de lobo -, manifesta a equiparação simbólica do delinquente a um lobo.
Tendo, provavelmente, chegado ao ponto em que um leitor que veio a este texto à procura de saber um par de coisas sobre um restaurante é levado a desistir, porque esse “par de coisas” não parece querer aparecer, explico que o que até aqui nos trouxe tem uma explicação. O restaurante Lobo Mau, do chef Hugo Guerra, carrega orgulhosa e reiteradamente a cabeça de um lobo como logótipo e imagem de marca (digo reiteradamente porque na entrada, em cada uma das duas salas e, claro, nos menus, a imagem do lobo é omnipresente).
A intenção topa-se a léguas. Sem qualquer ironia ou, até mesmo, humor, o nome e a simbologia do restaurante expressam, de forma bem transparente até, um desejo de irreverência, um chef que do meio do recreio proclama a sua não conformação com a norma. A ironia e o humor salvariam esta ideia da infantilidade. Não salvam, diga-se, nem é disso que se trata, porque a expressão é exata e intencional. Mas, também, nem tudo é ou tem de ser salvo pela ironia ou pelo humor. O que salva sempre um restaurante, por mais histriónicas que sejam as personalidades dos seus donos ou chefs, é a comida ser boa. Esta é uma lição que os restaurantes do “grupo Olivier”, por exemplo, raramente têm arcaboiço para compreender. Já o chef Hugo Guerra, mostra que aprendeu e põe em prática esta lição. E o que salva – com distinção – um restaurante que, como o Lobo Mau, afirma logo muito antes de o primeiro prato estar sequer perto do nosso palato, é apresentar um predicado proporcional à bravata. Também aqui, o Lobo Mau sabe estar à altura do que se espera de tamanha fanfarronice. Nem sempre é aconselhável um restaurante ser um prolongamento da personalidade do seu chef, tudo depende dos chefs e das suas personalidades. Mas há circunstâncias em que, mesmo na iminência de um cocktail potencialmente explosivo, não nos cumpre recomendar contenção, porque há evidências de uma aprendizagem ou, como se costuma dizer, de um caminho feito pelo chef e perfeitamente explicado à sua equipa. Tanto a personalidade deste chef, como a do seu restaurante, deixam bem visíveis as suas cicatrizes e há uma beleza pura e honesta quando, através de uma ementa, isso chega de forma deliciosa a quem ali come.
Como é que se chega, com todo o mérito, a esta virtuosa franqueza? Aqui o Lobo Mau é todo um aparato de exemplos. Praticam, desde cedo, uma ementa curta, com meia dúzia de entradas, semelhante número de pratos principais e apenas três sobremesas. Com o tempo, este tem-se tornado, para mim, um dos mais claros indícios de um bom restaurante. Não é absoluto e, por si só, pouco significado tem, mas a experiência tem mostrado que um restaurante que pensa a sua ementa em termos de coerência e exequibilidade e que procura equilibrar estes valores com alguma variedade de escolha é um restaurante com as preocupações certas. A ementa é atenta à sazonalidade e varia com frequência, ainda que alguns dos seus protagonistas façam, felizmente, parte do elenco permanente. Alguns dos pratos que aqui são descritos podem não ficar na ementa por muito mais tempo, mas fica a ideia de que os melhores regressam sempre e que os novos acalmaram a saudade dos que partiram.
Por outro lado, e esta é talvez uma das melhores qualidades do Lobo Mau, tem ementa curta, mas que nunca é pobre. A variedade está onde tem de estar, não no número de pratos, mas no espectro de sabores que cada escolha proporciona e nas diversas geografias que esses sabores sugerem, tendo sempre, contudo, a essência portuguesa como fio condutor.
Nas entradas, o “brioche corado, vaca tenra e pickles” é o melhor exemplo de um prato que mostra muito mais do que a sua descrição e aparência parecem sugerir, numa viagem sublime entre o ácido, o rico e o doce, que tanto remete para a boa técnica francesa como para aquela dentada bem no centro de um ótimo hambúrguer, em que o pão, a carne e o pickle explodem como aranhas pelas estrelas. O mesmo se pode dizer do “bacalhau, puré de grão, ras el hanout e emulsão de pimentos” ou do “arroz cremoso de cogumelos, abóbora e algas”.
Se o brioche é o grande destaque da ementa, o segundo protagonista é um prato de peixe quase perfeito, a “corvina da nossa costa, espinafres do quintal, feijoca e caldo do mar”, que veio substituir a incrível “corvina e beldroegas” do anterior menu. Há uma ligeira secura, identificável com a casca da feijoca, que não convence completamente o palato, mas a temperatura do peixe e o sabor do caldo do mar tornam isso apenas um detalhe. Este é, aliás, outro dos pratos em que a amplitude de sabores notável é notável.
Das entradas, destaca-se também o “hotdog de camarão, molho tártaro e funcho” (numa refeição a dois, o brioche e o hotdog são a combinação perfeita de entradas), o “creme de castanhas, queijo chèvre e crumble de chouriço” e o “taco vegetariano, maionese de açafrão, crocante de wasabi e espinafres”. Este último é um equívoco, mas daqueles que acabam por correr bem e não incomodam. A semelhança entre este prato e um taco é puramente estética e visual. Chamam-lhe taco e até podemos aceitar, com alguma latitude, que o que nos é colocado à frente encaixa algures no conceito de taco, da mesma forma podemos dizer que esses gajos que andam pela cidade de trotinete estão “ao volante” de alguma coisa. Taco vegetariano é impreciso, porque aquilo é muito mais uma salada encaixada numa estrutura de folha arroz prensada (o simulacro do taco) mas, espantemo-nos, uma das melhores saladas que Lisboa tem para oferecer neste momento, tão boa que se desculpa a inexatidão do nome. Nos pratos principais, para além da corvina, são alternativas honrosas a “melosa de vaca, puré de aipo e mandioca estaladiça” (o puré de aipo é soberbo) e os já referidos bacalhau e arroz cremoso de cogumelo.
Há um embaraço que quase todos aqueles que escrevem sobre comida devem ter a coragem ou uma boa dose de desprendimento para superar. Para ser exata e eficaz, sob pena de frigidez descritiva, a adjetivação na gastronomia está perto de resvalar para o pornográfico. Escapar a isto é toda uma arte e fazê-lo nas sobremesas é a prova de fogo dos heróis. Por isso, muitas vezes, o embaraço é superado descrevendo as coisas como elas, mais intimamente, são: as “rabanadas com tempo e mousse de café”, a melhor das três sobremesas, são espessas, fofas e húmidas na textura, cujos excessos são contrabalançados por um creme ligeiramente amargo (do café).
Como nos explica a personagem de Katharine Hepburn em A Rainha Africana, “Nature is what we are put in this world to rise above”. Se a imagem do lobo evoca a imensidão de vezes que escolhemos ser uma besta para o próximo, a cozinha representa o quão distante conseguimos colocar-nos dessa besta. Até na sua versão mais tímida, até na escassez, a cozinha foi sempre uma transformação, uma transformação que não nos leva ao animal, mas que, antes, nos convida a superar a nossa natureza. Isto vale tanto para a cozinha enquanto técnica, como para a cozinha enquanto socialização. Mark Twain dizia que “o homem é o único animal que cora, ou que precisa de o fazer”. Eu digo que o homem é o único animal que cozinha, ou que precisa de o fazer. A segunda parte da frase é, aliás, a mais verdadeira, porque a cozinha é uma necessidade humana. A gastronomia não é uma necessidade, antes um privilégio. Mas a necessidade de cozinhar é universalmente humana, e dominar esta linguagem de amor torna qualquer outro idioma dispensável.
Recordando os momentos em que estive sentado numa das mesas do Lobo Mau, revisito a imagem da cabeça do lobo, que me acompanhou de forma nada discreta ao longo da refeição. O seu propósito óbvio, o deitar a língua de fora de um chef que ainda não abandonou por completo a juventude, pouco interessa. O talento, a maturidade e a criatividade do chef Hugo Guerra são o melhor depoimento de um chef que, tanto quanto pude observar, gosta de passear pelo restaurante e fala pelos cotovelos, mas que domina a tal linguagem de amor da cozinha e, por isso, os outros idiomas são secundários. Depois de estagiar com a lenda Martín Berasategui e de trabalhar em projetos de outros – como a Bica do Sapato, o Pátio Velho ou o El Clandestino -, o Lobo Mau é o primeiro projeto original do chef Hugo Guerra, que, aos 34 anos, já é um dos nomes mais interessantes da nova cozinha portuguesa.