Lourdes Castro (1930-2022). No mínimo, abranger o máximo

Lourdes Castro (1930-2022). No mínimo, abranger o máximo


Uma das maiores artistas portuguesas morreu, aos 91 anos, deixando-nos mapeada a fronteira entre a ausência e a presença, celebrando um pacto com as sombras de modo a revelar essas subtis diferenças que a morte não apaga.


“A minha obra é a minha vida, é como respirar. E faço tudo sem intenção, só porque gosto.” Aqui começa e acaba o mais importante. E se foi certamente uma das mais destacadas artistas portuguesas contemporâneas, isso já não era com ela. “Nem faço arte nem deixo de fazer”, disse numa entrevista ao Expresso, em 2019. “Sim, chamem-lhe arte. Com os nomes não me estorvo. Podem dizer que é arte e que sou artista, não me abala.” Mas o que lhe importava era o “estar cá”, e daí ter trocado a impressão mais imediata da luz pelo outro lado, esse que inscreve já o fantasma das coisas, das pessoas, a sensação do mundo como este nos foge.

Aplicou-se, assim, a investigar as “dimensões secretas da sombra”, aí onde se inscreve toda essa luta que há dentro da ausência, e que nos liga ao modo mais íntimo que temos de recriar o mundo, que é por meio da lembrança. Em “À Luz da Sombra”, Guy Brett explica que “o trabalho de Lourdes Castro dá vida ao belo paradoxo segundo o qual a sombra é um aspecto da luz (bloqueando-a). Na sua obra, é a escuridão que traz consigo a luz.” O célebre crítico de arte nota ainda que “é possível constatar o princípio zen de utilizar apenas a energia necessária para a eficácia da acção no tratamento do contorno por parte de Lourdes Castro”. Libertando-se dos excessos, devotando-se a um princípio de “elegância, economia e calma destilada”, Lourdes Castro sabia como aquilo que muitas vezes é ignorado pode ser tão mais revelador do que essas impressões ofuscantes. “O contorno é o mínimo que posso ter de algo, de alguém, conservando simultaneamente as suas características.”

Depois, não andava a correr atrás dos curadores, não cedeu a esses efeitos em que os artistas muitas vezes não passam de enredadores, refinados vigaristas, naturais da Capadócia, que mais do que comprometidos com uma modo de habitar poeticamente o mundo, têm mais em vista embustes, esquemas de auto-promoção. Alheada de tudo isso, Castro recorria aos amigos como modelos, deslocando-se de forma mais livre e plena na intimidade, e terá aceitado apenas uma vez uma encomenda de alguém que não conhecia, afirmando posteriormente que nunca mais o faria. “Prescindindo da tela, optando por materiais transparentes, translúcidos ou cobertos de cor”, diz-nos Brett, “Castro reinventou o retrato enquanto sombra, um traço imaterial de pessoas, fugaz e liberto de toda a portentosidade.” Assim, libertou-se da “tragédia do espelho”, como a enunciou Bernardo Soares, no “Livro do Desassossego”. Como nos recorda este heterónimo de Fernando Pessoa, “os antigos mal se viam a si próprios”. Nós, por outro lado, estamos saturados da nossa própria imagem e reflexo, “vemo-nos em todas as posições”, e de algum modo fomos capturados por essa impressão desoladora, e que pode tornar-se um cárcere. “Daí o nosso pavor e o nosso nojo por nós”, vinca Bernardo Soares. E logo adianta: “Todo homem precisa para poder viver e amar de se idealizar a si próprio (e, no fim, àqueles a quem ame). Amamo-nos por isso. Desde o momento em que me visiono e me comparo a um ideal, não muito alto, ainda baixo, de beleza humana, desisto da vida real e do amor.”

Para Lourdes Castro o amor é essa persistência dos outros em nós. Essa sobrevivência do que foi gravado com a luz dos dias e que deixa as suas marcas, a impressão da sua passagem na zona interior, para ser apropriado pela vida fora, quando nos agarramos à sensação que alguém nos dá como a um corrimão. “O que me atrai: a sombra não ocupar espaço e guardar a sua presença mesmo desligada do corpo que a projectou.” 

Como epígrafe do livro que nasceu da série “Grande Herbário de Sombras”, editado pela Assírio & Alvim, Castro serviu-se de uns versos de José Tolentino Mendonça, autor que, de resto, sempre foi mais fértil no esforço de enunciar aspectos da criação alheia do que a propor ele mesmo motivos originais: “A minha arte é uma espécie de pacto:/ não distingo as áreas selvagens das cultivadas/ e elas não distinguem a minha sombra/ da minha luz”. Prescindindo de grandes explicações, a artista limitava-se a referir que a série fora feita durante o verão de 1972, na Ilha da Madeira. Continha uma centena de sombras de diferentes espécies botânicas, e Castro dizia que estas a lembravam das primeiras sombras que havia colhido uma década antes, sendo essas projectadas directamente sobre a seda de serigrafia com luz de mercúrio. Desligando-se do tempo, era da natureza que obtinha as suas coordenadas, e assim também aquele herbário funciona como um espantoso itinerário, uma série de gestos e de esperas em atenção à variedade de plantas, ervas, frutos e flores que tinha à sua volta, servindo-se de papel heliográfico exposto directamente ao sol para fixar as suas sombras.

Lourdes Castro morreu, aos 91 anos, no sábado passado, na mesma ilha e no mesmo local onde nasceu a 9 de Dezembro de 1930. Junto à Praia Formosa, ali onde aprendeu a ligar às coisas, onde viveu não só os primeiros anos, mas boa parte da juventude, tendo deixado a Ilha da Madeira aos 20 anos, acabando por regressar definitivamente em 1983. Ali teve uma infância cheia de espaço, “assim de correr à vontade” e sabia como é nessa primeira idade que são dados esses nós que não mais se desatam. A liberdade é uma sensação demasiado forte e que impede os que a gozaram de alguma vez serem coniventes com o regime de cativeiro e as distracções que fazem parte do seu programa. Foi lá que começou tudo, nos banhos que os miúdos davam no mar de manhã antes de ir para a escola, na cana-de-açúcar que em que se lambuzavam, nas bananeiras que ali dão um fruto ajustado à mão das crianças. “Sou bicho, sou animal, sou gente, tenho uma flecha e ainda sou peixe: sou da água”, disse numa entrevista ao Público, explicando que a flecha sinaliza o estar dirigida para diante, inda que deixe atrás de si um jardim que se suspende em sombras. 

Estudou no Colégio Alemão, desde o jardim-de-infância, mas tinha já aprendido a ler com a avó da Praia Formosa, que foi a primeira aluna do Liceu do Funchal e que viria a tornar-se professora. Após o início da II Guerra, o colégio fechou, e Lourdes Castro prosseguiu as lições “com uma senhora alemã, uma botânica que vivia sozinha e dava lições particulares”. Esta tinha estado na América do Sul e vivia, segundo a artista se recorda, num quarto cheio de papagaios e com um tucano. Foi ela que lhe deu a ler um livro que viria a ter um impacto decisivo na sua formação: “Zen e a Arte do Tiro com Arco", de Eugen Herrigel. Como não podia deixar de ser, o mundo era uma hipótese encantadora e que a chamava, e, então, deixou a ilha e rumou a Lisboa, e inscreveu-se em Belas Artes, curso que não concluiu “porque era preciso fazer seis modelos nus, seis naturezas mortas e mais não sei o quê…” E o que fez Lourdes Castro? “Se a gente não pintava corzinha de pele, meio rosa… O mestre de Pintura não aceitava. Pintei a pele dos nus de verde e de azul. Como pintava em casa, comecei a pintar à minha maneira”, contou na já citada entrevista ao Expresso. Ficou excluída e não lhe pareceu que o juízo do tal professor estivesse errado. O que lhe interessava fazer não passava certamente por ali. Entretanto, tinha já feito as primeiras viagens, com o namorado René Bertholo. Tinham andado à boleia pela Europa, sem dinheiro nenhum, e, sabendo que haveriam de se safar de um jeito ou de outro, no início dos anos 50, deixaram a capital portuguesa por Munique, na Alemanha. Celebraram o casamento por procuração, e depois de uns tempos, tendo-se candidatado a uma bolsa da Gulbenkian, que lhe foi dada, o casal veio a instalar-se em Paris, numa pequeníssima casa na Rue des Saints-Pères, e aí lançaram a hoje mítica revista KWY. Eram as letras em falta no alfabeto português, e se foi só um nome, discretamente, este anunciava todo um programa de buscas dentro do que falta, abrindo caminho a colaborações com diferentes artistas, tendo-se realizado ao todo 12 números, entre 1958 e 1963. Começaram por 50 a 60 exemplares, e a revista nunca teve mais de 300, mas a sua ambição exploratória cativou outros nomes que participaram tanto na sua concepção, como Christo, Escada, João Vieira e Jan Voss, como no elenco dos convidados para cada edição.

Lourdes Castro disse que esse período de exílio em Paris, que se prolongou até 1983, foi mais cultural do que político, e foi-lhe muitíssimo proveitosa a proximidade com os intelectuais e artistas do mundo inteiro que continuavam a fazer daquela cidade a capital da arte moderna, e, nesse ambiente, no início da década de 1960, surgiram os objectos: acumulações de "tralhas que já não servem para nada", coladas sobre antigas telas e pintadas da cor do alumínio. Começaria também a realizar os seus Álbuns de Família, os 34 livros nos quais foi guardando tudo o que se relacionava com as sombras, aproveitando ecos e orientações de toda a ordem, misturando a poesia, a moda ou a cozinha, e criando, assim, um arquivo absolutamente singular. Essa exploração de géneros, suportes e técnicas sempre com a maior das liberdades, começou a ser orientada por algumas fixações, por um despojamento e uma obsessão em acolher no mínimo o máximo, e tornou-se então essa caçadora de impressões de segunda ordem, desde as sombras projectadas aos contornos. Sublinharia mais tarde como “o contorno da sombra é ainda mais fantasmático, fugitivo, ainda mais ausente”. Surge, então, os retratos de amigos sobre tela ou em coloridos e recortados plexiglass. Já no verão de 1968, surgem as "sombras deitadas" bordadas em lençóis. Num outro verão, em 1972, passado na Madeira, reúne o já referido herbário de sombras. Foca-se depois no "Teatro de Sombras", já experimentado desde 1966, e que irá assumir um papel relevante na actividade da artista a partir de uma estada em Munique, entre 1972 e 1973: "Durante o espectáculo eu sou a sombra e o Manuel [Zimbro] é a luz." 

Manuel Zimbro (1944-2003) será o seu segundo marido e, sendo a arte uma decorrência da vida, passam a assistir-se na criação das suas obras. "A gente fez tudo juntos, nem que só fosse fazer o almoço para o outro", notava numa entrevista ao Público. Já na Madeira, entre 1983 e 1988 vivem na Quinta do Monte, tornando-se guardiões das histórias do palacete do século XIX, onde viveu até à morte o último imperador austríaco, Carlos de Habsburgo, e depois constroem uma casa no Caniço. Já sem o marido, restava a Lourdes Castro as tantas sombras e contornos, aquele mínimo que lhe permitia trabalhar “esta ausência no seio de toda a existência temporal e material que perseguia incansavelmente” (Anne Bonnin). Isso permitiu-lhe ir-se libertando das leis deste mundo, e antecipar o desaparecimento, concretizando pelo avesso, através da falta, o que há de mais profundo e tocante na nossa breve passagem pela terra, esse vazio que treme de lembranças.