A reforma da justiça ou as reformas na justiça? Entre a frase feita e a necessidade de reformas


O nosso sistema de Justiça tem muitos anos e assenta em valores e numa tradição cultural marcada fortemente pelos princípios liberais introduzidos no nosso país ainda durante a guerra civil, que, no século XIX, opôs liberais a absolutistas


Uma das questões que mais tem suscitado discussões durante a atual campanha eleitoral é a da chamada «reforma da Justiça».

Como muitos leitores se lembrarão, tal problema não é novo e surge, ciclicamente, na agenda política, mormente quando há eleições.

Com regularidade, também, os responsáveis por essa área apontam – e algumas vezes até as vêm a concretizar – um conjunto de medidas que dizem corresponder à tão almejada «reforma».

Depois, num novo ciclo eleitoral, outros protagonistas políticos clamam, de novo, que falta fazer a «reforma da Justiça» e que, se forem eleitos, ela, sim, acontecerá.

Ninguém, em rigor, se atreve a dizer, entretanto, que as medidas anteriormente tomadas não foram relevantes e não tiveram sucesso, até porque, geralmente, elas concitaram um consenso alargado na Assembleia da República.

Poucos dizem claramente, também, o que, de futuro, pretendem reformar de tão essencial e quais os objetivos exatos de tal mudança e, menos ainda, como é que ela vai, em concreto, agilizar o funcionamento geral da Justiça.

Apregoam, todavia, que se pretende uma reforma que seja radical, que altere, de fundo, o modelo existente.

Esquecem-se de dizer, porém, que as traves mestras do sistema de Justiça estão fixadas na Constituição e que, para as mudar, se exige que a esta também mude, o que importa uma maioria de 2/3 de deputados.

O nosso sistema constitucional de Justiça tem muitos anos e assenta em valores humanistas e numa tradição cultural marcada fortemente pelos princípios liberais introduzidos, no nosso país, ainda durante a guerra civil, que, no século XIX, opôs liberais a absolutistas.

Tão fortemente tais valores se enraizaram na cultura política dos portugueses que mesmo o regime salazarista não os conseguiu alterar explicitamente.

Para subverter o sistema, teve de se socorrer de truques mais ou menos mal disfarçados para, paralelamente ao sistema de Justiça normal, criar instituições e leis de exceção, tendo em vista lidar com o que dizia ser a criminalidade política: isto é, com os democratas e com os resistentes.

O mesmo aconteceu, de resto, em quase toda a Europa, quando muitos dos seus países foram governados por regimes autoritários e mesmo totalitários, como aconteceu, por exemplo, na Alemanha e na Itália.

Existe, por conseguinte, entre nós, um modelo que enforma, também, desde a Revolução Francesa, a maioria das instituições jurídico-judiciárias europeias, mesmo que esse modelo comporte variantes e responda a tradições culturais nacionais diversificadas.

Em alguns casos, o modelo europeu continental e os seus princípios estruturantes de caráter humanista foram-se erodindo, aqui e ali, primeiro a propósito da luta contra o terrorismo, depois da luta contra a criminalidade informática e, por fim, para enfrentar a corrupção e outros fenómenos criminais igualmente graves da sociedade atual.

Noutros, o sistema continental europeu tornou-se apenas mais flexível e, entre outras mudanças tendentes à sua agilização, incorporou instituições provindas do sistema anglo-saxónico, que nele se encaixaram com mais ou menos sucesso e coerência.

Atentemos, por exemplo, na questão, hoje tão debatida entre nós, do juiz natural.

Na Inglaterra, esse princípio, pura e simplesmente, não existe.

Os juízes que exercem em tribunais da mesma espécie podem trocar, entre si, processos que inicialmente lhes calharam, de modo a melhor gerirem as respetivas agendas, quando uns estão sobrecarregados de trabalho e outros não.

Por outro lado, na Alemanha, os juízes podem, no princípio do ano judiciário, acordar numa especialização temporária dos juízos existentes num dado tribunal, atribuindo a certos deles – e, portanto, também aos juízes aí colocados – a competência exclusiva para julgarem, durante o período fixado, os crimes de uma certa natureza, cujos processos devam, em função da competência territorial, caber a tal tribunal.

Em ambos os casos, porém, continua a existir, em tais países, a garantia de que os processos não são distribuídos por interferência de qualquer órgão do poder político.

Apenas os juízes, com base num princípio de confiança mútua que deve caracterizar as relações entre órgãos que pertencem a uma mesma magistratura independente, acordam entre si, de modo pragmático e para melhor serviço dos cidadãos, a distribuição dos processos.

Numa outra perspetiva – a da falta de meios – a minha experiência profissional concreta diz-me que ela existe um pouco em muitos países da UE, sendo disso testemunho um recente e desenvolvido artigo publicado no Le Monde, em que se retratava com exemplos variados a penúria financeira e de quadros dos tribunais e procuradorias francesas.

E, note-se, neste país existe o princípio da oportunidade no exercício da ação penal, que permite arquivar, sem investigação, um conjunto predefinido de processos crime.

Falar, pois, em «reforma da justiça», sem se saber muito bem o que se quer reformar e em que sentido, nada significa de politicamente relevante.

Tal proclamação poderá responder de imediato às queixas dos cidadãos envolvidos em processos judiciários, que tardam em ser resolvidos, poderá ajudar a acalmar os exaltados com a urgência de resultados nos processos que atingem figuras emblemáticas da política ou do futebol, mas, em rigor, de pouco adianta.

É, por isso, importante que as forças que compõem o bloco constitucional não se deixem enredar em cantos de sereia dos populistas, quando se trata de abordar questões sérias, como são as reformas que devem, sem dúvida, ser feitas na Justiça, tendo em vista a dignificação e reforço do Estado de Direito.

Uma coisa é a «reforma da Justiça» que resulta dos princípios humanistas da nossa constituição democrática; outra, bem diferente, é fazer reformas nessa mesma Justiça.

E estas têm de ser um trabalho atento e consensual de todos os dias e de todos os órgãos de soberania.

A reforma da justiça ou as reformas na justiça? Entre a frase feita e a necessidade de reformas


O nosso sistema de Justiça tem muitos anos e assenta em valores e numa tradição cultural marcada fortemente pelos princípios liberais introduzidos no nosso país ainda durante a guerra civil, que, no século XIX, opôs liberais a absolutistas


Uma das questões que mais tem suscitado discussões durante a atual campanha eleitoral é a da chamada «reforma da Justiça».

Como muitos leitores se lembrarão, tal problema não é novo e surge, ciclicamente, na agenda política, mormente quando há eleições.

Com regularidade, também, os responsáveis por essa área apontam – e algumas vezes até as vêm a concretizar – um conjunto de medidas que dizem corresponder à tão almejada «reforma».

Depois, num novo ciclo eleitoral, outros protagonistas políticos clamam, de novo, que falta fazer a «reforma da Justiça» e que, se forem eleitos, ela, sim, acontecerá.

Ninguém, em rigor, se atreve a dizer, entretanto, que as medidas anteriormente tomadas não foram relevantes e não tiveram sucesso, até porque, geralmente, elas concitaram um consenso alargado na Assembleia da República.

Poucos dizem claramente, também, o que, de futuro, pretendem reformar de tão essencial e quais os objetivos exatos de tal mudança e, menos ainda, como é que ela vai, em concreto, agilizar o funcionamento geral da Justiça.

Apregoam, todavia, que se pretende uma reforma que seja radical, que altere, de fundo, o modelo existente.

Esquecem-se de dizer, porém, que as traves mestras do sistema de Justiça estão fixadas na Constituição e que, para as mudar, se exige que a esta também mude, o que importa uma maioria de 2/3 de deputados.

O nosso sistema constitucional de Justiça tem muitos anos e assenta em valores humanistas e numa tradição cultural marcada fortemente pelos princípios liberais introduzidos, no nosso país, ainda durante a guerra civil, que, no século XIX, opôs liberais a absolutistas.

Tão fortemente tais valores se enraizaram na cultura política dos portugueses que mesmo o regime salazarista não os conseguiu alterar explicitamente.

Para subverter o sistema, teve de se socorrer de truques mais ou menos mal disfarçados para, paralelamente ao sistema de Justiça normal, criar instituições e leis de exceção, tendo em vista lidar com o que dizia ser a criminalidade política: isto é, com os democratas e com os resistentes.

O mesmo aconteceu, de resto, em quase toda a Europa, quando muitos dos seus países foram governados por regimes autoritários e mesmo totalitários, como aconteceu, por exemplo, na Alemanha e na Itália.

Existe, por conseguinte, entre nós, um modelo que enforma, também, desde a Revolução Francesa, a maioria das instituições jurídico-judiciárias europeias, mesmo que esse modelo comporte variantes e responda a tradições culturais nacionais diversificadas.

Em alguns casos, o modelo europeu continental e os seus princípios estruturantes de caráter humanista foram-se erodindo, aqui e ali, primeiro a propósito da luta contra o terrorismo, depois da luta contra a criminalidade informática e, por fim, para enfrentar a corrupção e outros fenómenos criminais igualmente graves da sociedade atual.

Noutros, o sistema continental europeu tornou-se apenas mais flexível e, entre outras mudanças tendentes à sua agilização, incorporou instituições provindas do sistema anglo-saxónico, que nele se encaixaram com mais ou menos sucesso e coerência.

Atentemos, por exemplo, na questão, hoje tão debatida entre nós, do juiz natural.

Na Inglaterra, esse princípio, pura e simplesmente, não existe.

Os juízes que exercem em tribunais da mesma espécie podem trocar, entre si, processos que inicialmente lhes calharam, de modo a melhor gerirem as respetivas agendas, quando uns estão sobrecarregados de trabalho e outros não.

Por outro lado, na Alemanha, os juízes podem, no princípio do ano judiciário, acordar numa especialização temporária dos juízos existentes num dado tribunal, atribuindo a certos deles – e, portanto, também aos juízes aí colocados – a competência exclusiva para julgarem, durante o período fixado, os crimes de uma certa natureza, cujos processos devam, em função da competência territorial, caber a tal tribunal.

Em ambos os casos, porém, continua a existir, em tais países, a garantia de que os processos não são distribuídos por interferência de qualquer órgão do poder político.

Apenas os juízes, com base num princípio de confiança mútua que deve caracterizar as relações entre órgãos que pertencem a uma mesma magistratura independente, acordam entre si, de modo pragmático e para melhor serviço dos cidadãos, a distribuição dos processos.

Numa outra perspetiva – a da falta de meios – a minha experiência profissional concreta diz-me que ela existe um pouco em muitos países da UE, sendo disso testemunho um recente e desenvolvido artigo publicado no Le Monde, em que se retratava com exemplos variados a penúria financeira e de quadros dos tribunais e procuradorias francesas.

E, note-se, neste país existe o princípio da oportunidade no exercício da ação penal, que permite arquivar, sem investigação, um conjunto predefinido de processos crime.

Falar, pois, em «reforma da justiça», sem se saber muito bem o que se quer reformar e em que sentido, nada significa de politicamente relevante.

Tal proclamação poderá responder de imediato às queixas dos cidadãos envolvidos em processos judiciários, que tardam em ser resolvidos, poderá ajudar a acalmar os exaltados com a urgência de resultados nos processos que atingem figuras emblemáticas da política ou do futebol, mas, em rigor, de pouco adianta.

É, por isso, importante que as forças que compõem o bloco constitucional não se deixem enredar em cantos de sereia dos populistas, quando se trata de abordar questões sérias, como são as reformas que devem, sem dúvida, ser feitas na Justiça, tendo em vista a dignificação e reforço do Estado de Direito.

Uma coisa é a «reforma da Justiça» que resulta dos princípios humanistas da nossa constituição democrática; outra, bem diferente, é fazer reformas nessa mesma Justiça.

E estas têm de ser um trabalho atento e consensual de todos os dias e de todos os órgãos de soberania.