A Constituição atribui no seu art. 49º o direito de voto a todos os cidadãos maiores de 18 anos, ressalvadas as incapacidades previstas na lei geral. Ora, o art. 2º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (Lei 14/79, de 16 de Maio, com sucessivas alterações) apenas exclui a capacidade eleitoral aos interditos (hoje maiores acompanhados) por sentença transitada em julgado, aos notoriamente reconhecidos como dementes, desde que internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tal declarados por uma junta de dois médicos, e aos que estejam privados de direitos políticos por decisão judicial transitada em julgado. Não são assim abrangidas por qualquer incapacidade eleitoral as pessoas sujeitas a confinamento, as quais conservam todos os direitos políticos, incluindo naturalmente o direito ao voto.
Ao determinar o confinamento obrigatório no dia das eleições dos doentes com Covid-19, dos infectados com Sars-Cov-2 e dos cidadãos a quem as autoridades de saúde tenham determinado a vigilância activa, o art. 3º da Resolução do Conselho de Ministros 157/2021, de 27 de Novembro, acaba na prática por privar todos esses cidadãos do seu direito de voto. Tal privação é manifestamente ilegal e inconstitucional, uma vez que uma simples resolução do Conselho de Ministros, sendo apenas um regulamento do Governo, não se pode sobrepor a uma lei do Parlamento e muito menos à Constituição, privando os cidadãos do seu direito de voto fora dos casos em que a lei o admite.
Por esse motivo, o Governo já deveria ter criado uma estrutura adequada para que os infectados e as pessoas sob vigilância possam votar em condições de segurança para todos os eleitores, por exemplo através da instalação de assembleias de votos específicas destinadas a cada um desses grupos, com todas as medidas de protecção necessárias para evitar qualquer contaminação pelo vírus.
Em lugar disso, o Governo optou por pedir um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, segundo o Primeiro-Ministro para “poder actuar com base num quadro jurídico sólido”. O Primeiro-Ministro acrescentou que “a questão foi colocada quarta-feira de manhã à senhora Procuradora-Geral da República e é natural que o Conselho Consultivo precise de algumas semanas para se poder pronunciar. Só a PGR é que poderá dizer quando é que estará em condições de dar uma pronúncia”. Uma vez que faltam apenas três semanas para as eleições, corremos o risco de o parecer chegar na véspera das mesmas, quando já nada possa ser feito, ou até depois das mesmas, perdendo assim qualquer utilidade.
De qualquer forma, também se sabe que, de acordo com o art. 50º do Estatuto do Ministério Público (Lei 68/2019, de 27 de Agosto), os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República só valem como interpretação oficial quando homologados pela entidade que os solicitou, acontecendo muitas vezes que essa homologação não ocorre e o parecer nem sequer chega a ser divulgado. Assim, por exemplo, os jornais já noticiaram que entre 2017 e 2019 o Governo solicitou 45 pareceres jurídicos ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, mas apenas homologou 12.
O que sabemos, porém, é que, podendo haver centenas de milhares de pessoas em isolamento no próximo dia 30 de Janeiro, o impedimento de voto de todos esses cidadãos pode falsear totalmente os resultados eleitorais, levando a que os mesmos não representem verdadeiramente a vontade popular. É manifesto que todos os órgãos de soberania deveriam estar empenhados em tudo fazer para impedir que esta situação se possa verificar, já que a mesma será altamente perturbadora para o regular funcionamento das instituições democráticas.
Em lugar de pedir pareceres, que depois decidirá se homologará ou não, o Governo deveria estar neste momento concentrado em criar a estrutura necessária para assegurar o direito de voto em condições de segurança a todos os cidadãos que o pretendam exercer. É isso o que se espera de qualquer Governo.