Funeral de Estado, um filme irreprimível

Funeral de Estado, um filme irreprimível


Para quem gosta de História e Política, o apelo do filme do ucraniano Sergei Loznitza é irreprimível: duas horas e quinze minutos, com imagens escolhidas de entre 40 horas de inéditos, de filmagens durante os 4 dias que durou o velório/funeral de Estaline. E, através dessas imagens, a procura do retrato de uma sociedade (sob…


São duas horas e quinze minutos sem narração, sem voz off, sem indicação, sequer, dos principais protagonistas (da nomenklatura soviética, se se excluir a chamada ao microfone feita pelos próprios, nos discursos antes do enterro final). Há, apenas, no final a referência, embora sem menção das fontes consultadas, ao número de mortos, presos, torturados, deixados à fome sob o regime soviético.

As imagens, a preto e branco e a cores (Estaline não gostava de imagens a cores), foram captadas para um filme, a apresentar não muito depois do momento que estava a ser filmado (Stalin morre a 5 de março de 1953), com objectivo de glorificação estalinista. Sucede que, pouco depois da morte de Estaline, com Khrushchev se passou a denunciar o culto de personalidade de Estaline e se procurou proceder à “desestalinização” do regime. O filme, “A grande despedida”, da autoria de quatro reputados realizadores (mas no qual trabalhariam, segundo Masha Gessen, na New Yorker, “duzentos cinegrafistas [que] documentaram o luto em toda a União Soviética, filmando enlutados ao redor do caixão e nas fábricas, nas estepes, nas praças públicas, aglomerados em torno de alto-falantes, monumentos e quiosques de jornais. Em duas semanas, eles rodaram mais de trinta mil metros de filme, em cores e em preto e branco”), acabaria por ficar na gaveta. Nos arquivos. Agora revistos e recuperados, numa obra que é uma “amálgama assustadora entre a pompa oficial e a experiência quotidiana” dos tempos soviéticos (AO Scott, The New York Times), para o grande público por Sergei Loznitza. 

O filme-documentário é muito eficaz no modo como nos dá a perceber a imensidão de territórios sob alçada da URSS e a impressionante uniformidade no modo de dar a conhecer a notícia (altifalantes, com a rádio, a partir de Moscovo, a dar uma infinidade de pormenores e detalhes das últimas horas da evolução do quadro clínico de Estaline, com todos os termos técnicos associados) e de reacção à mesma – os homens tirando os chapéus, o mesmo ar compungido, hirto, sério, temeroso (como regista Jorge Almeida Fernandes, no Público, um “império multiétnico de 22 milhões de Km2. Por toda a parte, a mesma postura de espanto e insegurança. O filme recolhe centenas de cenas, dos Bálticos à Ucrânia, da Sibéria ao Tajiquistão, do Azerbaijão à Rússia profunda”). Para este documentário, muitas horas de gravações de rádio (cujos anúncios, atinentes à morte de Estaline, se faziam “em tons majestosos e sombrios”), foram, também, tratadas, bem como os registos, de poetas mobilizados para o momento, cujo panegírico e hagiografia roçam sempre o ridículo, exaltando o amor de Estaline pela humanidade ou considerando-o “o maior génio da história da humanidade” (“o arquivo teve 40 horas de filmagens, a cores e a preto e branco. Houve também 24 horas de transmissões de rádio originais, além de gravações dos elogios. Especialistas lituanos em pós-produção e restauração de imagens limparam a filmagem antiga, devolvendo-a a uma nitidez brilhante. O designer de som Vladimir Golovnitskiy montou uma trilha sonora misturando gravações de arquivo com um novo trabalho de som, dando às imagens muitas vezes silenciosas um sentido de vida. O efeito é surpreendente. O funeral do estado parece inquietantemente fresco”, Alex von Tunzelmann, no The Guardian). Durante o velório, pelo qual passam dezenas de milhares de pessoas, música clássica em permanência. Os sons foram também compostos, pela equipa de Loznitza no sentido de nos introduzirem, com maior densidade, naquele ambiente. No dizer do realizador, entrevistado, há meses, para o Ípsilon (Público): “O som é muito importante. Como vemos no filme, Estaline chegava aos confins da URSS através do som. [Procuramos tratar o som de modo a obter o efeito] como se os acontecimentos se desenrolassem “aqui e agora” e como se o espectador estivesse na Praça Vermelha ou numa aldeia remota a fazer o luto por Estaline em Março de 1953. Tínhamos a gravação da transmissão radiofónica original que foi difundida através de toda a URSS no dia do funeral e usámos excertos dela”. A música que passa é de Schubert, Chopin, Tchaikovsky e a Lacrimosa de Mozart. 

Quatro dias de velório/funeral sob intenso frio, casacos a preceito enquanto a neve cai, jornais adquiridos a rodos, altifalantes escutados, líderes congéneres internacionais a chegarem a Moscovo (de Pequim, RDA, Hungria, Checoslováquia, etc), um ligeiro sorriso, retratos gigantescos de Estaline nos edifícios públicos e entre as multidões, aglomerados de pessoas em fazendas públicas, fábricas, estaleiros, campos de petróleo, grandes coroas de flores depositadas, ininterruptamente sob o caixão de Estaline, pintores a retratar o corpo cadáver, mulheres, sobretudo, a chorar, rostos fechados, tristeza por toda a parte, na URSS. Ou, nem tanto? A ambiguidade da interpretação das imagens é inapelável. Por exemplo, no The Guardian, Peter Bradshaw observa o fácies de milhares de pessoas da seguinte forma: “os rostos “são sérios, vigilantes, inexpressivos e neutros, uma acentuação (…) que as pessoas aprenderam a mostrar enquanto Stalin estava vivo, para o caso de qualquer demonstração emocional poder ser interpretada como errada ou desleal. No entanto, talvez sua tristeza seja muito complexa para ser interpretada: a compreensão de que uma era está chegando ao fim e um encanto está se dissipando”. A ambiguidade das imagens – um retrato “hipnótico” (New Yorker), “fascinante e evasivo” (The York Times) – é corroborada, por antonomásia, pelo facto de a aparente expressão de um luto tão intenso, desaguar, aliás, historicamente, em tempos imediatos, na condenação do culto de personalidade e na tentativa de apagar Estaline.
Mas, complexidade de volta, abuso e arbítrios absolutos, sem limites (naquele regime estalinista), e, ainda assim, muitos amando o tirano, em um paradoxo sublinhado pelo realizador de “Funeral de Estado” que remete para a complexa questão da “culpa coletiva”: por um lado, um estado de terror ao qual a submissão é imposta, mas, simultaneamente, um regime que sem muitos apoiantes não resistiria.  
Alex von Tunzelmann sintetiza, no The Guardian, as suas interrogações sobre os imensos rostos que viu na tela, neste filme de Loznitza: “há muito sofrimento convincente aqui também. Os olhos estão baixos; ombros caídos. Muitos choram como se realmente tivessem perdido um pai querido. Eles o amavam genuinamente? Ou eles achavam que deviam ser vistos a amá-lo?” (e, na mesma linha, AO Scott, no The New York Times: “esse olhar fixo e sério significa estoicismo ou desafio? Esse leve sorriso é uma expressão de alívio? De gratidão? De terror? Quando alguém olha diretamente para a câmera, os olhos registram suspeita ou solidariedade?”).

“Funeral de Estado” foi, também, ensejo para recuperar alguns testemunhos da época de não anónimos que explicaram como se criou um dado ambiente. Masha Gessen, na New Yorker, recupera dois desses relatos ilustres: 
“As ruas estavam cheias de pessoas que pareciam de alguma forma excitadas e perdidas, e música fúnebre tocava constantemente”, Andrei Sakharov, o dissidente e vencedor do Prémio Nobel da Paz, 'Estou imensamente impressionado com a morte de um grande homem. Eu continuo pensando em sua humanidade. ' . . . Muito em breve eu ficaria envergonhado de pensar nessas palavras. Como eu poderia explicar como escrevê-los? Até hoje, não consigo entender totalmente. Eu já sabia muito sobre seus crimes terríveis.”  (…). Outro vencedor russo do Nobel, Joseph Brodsky, escrevendo em 1973, descreveu alguns dos mecanismos de criação do clima de luto:
‘Suspeito que não haja outro assassino na história mundial cuja morte tenha sido lamentada por tantos com tanta sinceridade. O número de pessoas que choraram pode ser facilmente explicado pelo tamanho da população. . ., mas a qualidade das lágrimas é mais difícil de explicar. Há vinte anos, eu tinha treze anos, era um estudante. Todos nós fomos conduzidos ao corredor da escola e instruídos a nos ajoelharmos, e a secretária da organização do Partido, uma mulher viril com uma fileira de medalhas no peito, gritou do palco, enquanto torcia as mãos: "Chorem, crianças, choro! Stalin morreu!” Ela começou a chorar primeiro. Não houve nada a fazer: começamos a fungar, e então, aos poucos, começamos a berrar. O salão chorava, o presidium chorava, os pais choravam, os vizinhos choravam e o rádio tocava “Marche Funèbre” de Chopin e alguma coisa de Beethoven. Parece que durante cinco dias seguidos a rádio transmitiu apenas música fúnebre. Quanto a mim, não estava chorando – uma fonte de vergonha na época, uma fonte de orgulho agora – embora estivesse ajoelhado e fungando.”
Há pessoas à espera durante horas, mais do que um dia, para poder passar perto do caixão de Estaline (no Salão dos Sindicatos, em Moscovo); as aglomerações na rua são tais que morrem centenas (ou milhares) de pessoas esmagadas; há gente que veio de outras cidades até Moscovo. E, no entanto, estes cidadãos, nas imagens que chegam até nós, “nunca são vistos interagindo uns com os outros. É um retrato do que Hannah Arendt, descrevendo a sociedade totalitária, chamou de “um homem de dimensões gigantescas”. Cada rosto está lá como parte do todo enlutado, movendo-se no mesmo ritmo e respirando em sincronia com dezenas de milhares de outras pessoas, sem uma palavra ou um olhar. O único som vem dos alto-falantes: música, reportagem matinal e poesia – endechas escritas às pressas por muitos poetas soviéticos escrevendo na hora”.
É face a este entorno cultural que Sergei Loznitza não compreende como o regime soviético era, nas primeiras décadas, considerado ateu: “nas primeiras décadas da era soviética era uma religião e Estaline era deus. Quando Dolores Ibárruri [La Pasionaria, comunista espanhola, de origem basca, 1895-1989] visitou pela primeira vez a URSS nos anos 30, dizia, nas suas impressões, que sentia que tinha visitado o Antigo Egipto. O culto era omnipresente e altamente ritualizado. É claro nas imagens do filme”. 
E, ainda em nossos dias, “o estalinismo está bem e recomenda-se na Rússia de hoje. Há um revival da sua popularidade, há monumentos em sua honra erigidos em várias cidades, os seus retratos são vendidos em lojas de souvenirs e há uma abundância de livros sobre ele. Os crimes do regime nunca foram julgados e a nação parece ignorar completamente os horrores que se cometeram.”

Existindo este amplo conjunto de imagens inéditas, um verdadeiro achado, ainda assim, parece difícil colocar alunos de História do Secundário, quando estas matérias são (re)visitadas (em profundidade), durante 135 minutos a olhar “Funeral de Estado”. Por um lado, porque, como se percebe pelas caixas de comentários em jornais, a ecologia do tempo tende a subsumir, ao fim de alguns minutos de visionamento, o documentário a “mais do mesmo” (sem buscar de entender o que tal significa), depois pela tal ambiguidade e falta de contextualização (“é como se o diretor dissesse: “Não vou fingir que vou ajudá-lo a compreender o incompreensível”. O que se perde na balança, é claro, é o contexto: espectadores comuns, sejam americanos ou russos, muitas vezes não saberão o que estão vendo”, Masha Gessen) inerente ao filme (que lhe confere, e ao mesmo tempo, a sua grandeza): “Nem voz off, nem explicações (para além de umas legendas no genérico de fecho), nem condução moralista do espectador. O filme, no limite, é sobre isto, sobre a mise en scène da dor e do luto levado a cabo por um Estado muito particular: um filme sobre um espectáculo, portanto. Que pensamentos, que emoções, que género de orfandade era o daquela gente? O filme de Loznitsa não pratica, aí, nenhuma devassa. Vemos, testemunhamos, e é quase tudo. (…) Razão, também, por que Funeral de Estado nos parece um objecto tão grandioso.” (Luís Miguel Oliveira, Ipsílon, Público).