Uma América mais violenta e dividida, um ano após o assalto ao Capitólio

Uma América mais violenta e dividida, um ano após o assalto ao Capitólio


O perfil dos detidos no ataque não bate certo com o da habitual violência de extrema-direita. “Foi a estreia de um movimento político amplo, numeroso, conspirativo, furioso e preparado para usar a violência”.


A insurreição no Capitólio marcou uma mudança do perfil da violência política nos EUA. Exatamente um ano depois, olhando para os mais de 700 detidos por avançar sobre as barreiras policiais, causando mortos e feridos, invadindo um dos símbolos do poderio americano enquanto o mundo assistia, vemos que não se tratam dos suspeitos do costume.

Até então, a violência da extrema-direita sempre fora associada maioritariamente a jovens, desempregados ou pobres, sem educação superior, envolvidos com milícias ou organizações supremacistas brancas. No entanto, não é isso que vemos entre os detidos. A média de idade está nos 40, 50 anos, mais de metade são empresários, arquitetos, médicos, só 7% estavam desempregados, verificou o Chicago Project on Security and Threats, da Universidade de Chicago. 15% tinham experiência militar, quando a percentagem costumava ser 40% entre detidos por violência de extrema-direita, a taxa de gente com cadastro é menos de metade do habitual, uns meros 13% foram identificados como membros de grupos violentos como os Proud Boys ou os Oath Keepers. Muitos mantinham famílias e vidas aparentemente estáveis.

“Isto não é simplesmente um comportamento criminoso normal ou uma escalada como lutas de rua”, salientou Robert Pape, que dirigiu a pesquisa do Chicago Project on Security and Threats, à NPR.

“Isto é claramente violência política coletiva cometida por centenas e centenas de pessoas, essencialmente com os mesmos propósitos políticos”, reforçou. Esse objetivo era o assalto à democracia americana, uma tentativa de parar a contagem dos votos para manter no poder Donald Trump, que galvanizou essa multidão a partir de um palanque, após meses a negar a validade das eleições.

Não foram apenas as franjas mais marginais da política americana que fizeram o 6 de Janeiro, comparecendo no Capitólio com gás pimenta, bastões ou equipamento militar, espancando selvaticamente policiais enquanto filmavam com orgulho, em direto para as redes sociais. Um ano depois, um quarto dos inquiridos pela Ipsos e ABC News acreditava que os insurretos estavam a defender a democracia, recebendo apoio de mais de metade dos republicanos e condenação unânime entre democratas.

Na prática, o 6 de Janeiro “foi a estreia de um movimento político que é amplo, numeroso, conspirativo, furioso e preparado para usar violência para fins políticos”, explicou o jornalista Barton Gellman, da Atlantic, à conversa num podcast do Vox. ”Não tínhamos um movimento de massas politicamente violento neste país desde há mais de cem anos”, lembrou Gellman, apontando que como último precedente histórico o ressurgimento do Ku Klux Klux Klan, na década de 1920. “Mas temos um agora”.

Os números são preocupantes. Mais de um ano após as eleições presidenciais, quase 60% dos republicanos ainda creem que Joe Biden é um Presidente ilegítimo, mostram sondagens do Washington Post e da Universidade de Maryland. Sendo que um em cada quatro republicanos concordou que pode ser preciso ação violenta contra o Governo, numa sondagem do Survey Center on American Life, o valor mais elevado registado em décadas, trata-se de um cocktail explosivo.

“Se eu acreditar em algo, posso agir em relação a isso, ou posso não agir”, ressalvou Daniel Cox, diretor do Survey Center on American Life, à NPR. “Não devemos andar por aí a dizer: ‘Oh meu deus, 40% dos republicanos vão atacar o Capitólio’. Mas, sob as circunstâncias certas, se tens esta visão do mundo , então estás mais inclinado para agir de certa maneira se te apresentarem essa opção”.

Caça ao homem Ao longo do último ano, vimos os apoiantes de Donald Trump que tomaram o Capitólio serem investigados, detidos e acusados judicialmente, recorrendo a uma gigantesca quantidade de imagens e denúncias, numa das maiores caças ao homem alguma vez encetada pela justiça americana. No entanto, continua por apurar a responsabilidade dos dirigentes políticos que propagaram a chamada “Grande Mentira”, que convenceram a multidão de que a América estava em perigo e que a vitória eleitoral fora roubada ao seu Presidente.

Mesmo o inquérito do Congresso ao 6 de janeiro, boicotado pelo Partido Republicano, tem tido dificuldade em avançar, mas entretanto já houve algumas novidade. Ficou-se a saber que mesmo no círculo próximo de Trump houve pânico ao ver a turba invadir o Capitólio, apesar de terem passado os meses seguintes a minimizar o sucedido.

“Ele tem de condenar esta merd* ASAP”, implorou o próprio Donald Trump Jr, tentando contactar o pai durante o ataque ao Capitólio, através do seu chefe de gabinete, Mark Meadows, num sms a que a comissão de inquérito teve acesso, enquanto o Presidente mantinha um silêncio ensurdecedor durante quatro horas, quebrando-o para pedir aos seus apoiantes que “continuassem pacíficos”, assegurando que os adorava.

“Por favor ponham-no na TV”, lia-se numa mensagem Brian Kilmeade, um dos apresentadores da Fox News favoritos de Trump, enquanto Don Jr. também tentava contactar o Presidente. “Isto está a prejudicar-nos a todos… Ele está a destruir o seu legado”, reforçou Laura Ingraham Ingrham, colega de Kilmeade.

No entanto, se familiares de Trump e os seus amigos na Fox News estavam em pânico, não é certo que esse fosse o sentimento do Presidente e de alguns dos dirigentes da sua Administração. A suspeita de que houve premeditação no ataque ao Capitólio, gente nas sombras a manobrar a multidão, continua bem viva.

Há muitas questões quanto a reuniões misteriosas de alguns dos mais ferozes lealistas de Trump, como Steve Bannon ou Rudy Giuliani, no Willard Hotel, a uns quarteirões da Casa Branca, na noite de 5 de janeiro, onde montaram uma espécie de “sala de guerra” para onde ligou o próprio Trump. Um email enviado dias antes pelo chefe de gabinete, em que Meadows assegura que a Guarda Nacional estaria a postos para “proteger pessoas pró-Trump”, também chamou a atenção da comissão de inquérito. Que tenta trabalhar a toda a velocidade, consciente que, caso os democratas percam a maioria no Congresso nas eleições intercalares, este ano, tudo indica que os republicanos acabarão com o inquérito.

O certo é que, um ano depois, o espetro da insurreição continua a assombrar a América. No Capitólio, os sinais são visíveis em todo o lado, dos escudos anti-motins guardados perto da entrada, aos detetores de metais por todo o lado, até ao equipamento altamente militarizado que dispõe a polícia do Capitólio, hoje mais numerosa e com treino reforçado, num esforço que custou uns 400 milhões de dólares, mais de 350 milhões de euros, descreveu a Reuters.

Mas a maior cicatriz é mesmo na psique americana, no fosso cada vez maior entre as duas metade do país, que quase vivem em universos paralelos. Os dirigentes republicanos que num primeiro momento apontaram o dedo a Trump, ou lhe voltaram a jurar lealdade ou deram por si corridos dos seus postos. E a batalha quanto à legitimidade das últimas presidenciais continua acessa, com dirigentes republicanos a tentarem tomar o controlo da maquinaria eleitoral a nível dos estados e condados.

“Estão a preparar o terreno para uma insurreição em câmara lenta”, alertou o advogado Mark Brewer, especialista em legislação eleitoral, ao Los Angeles Times. Steven Levitsky, professor de Ciências Políticas na Universidade de Harvard, concordou. “Não é claro que o Partido Republicano esteja mais disposto a aceitar uma derrota”.