Antologia finlandesa. A ordem cai, é tempo de ressaca

Antologia finlandesa. A ordem cai, é tempo de ressaca


No persistente esforço de impor a tradução como principal eixo na busca de outros mundos, a editora Contracapa continua isolada na sua tarefa de servir-se dos meios mais vulneráveis para caçar naquelas regiões onde a sobranceria faz estalar o galho e espanta a presa.


Uma das grandes lições sobre a edição enquanto gesto de autonomia e, ainda, sobre o modo como cada autor haverá de defender-se de honras inconvenientes (essas que, na verdade, apenas nos desonram), além de uma exemplar homenagem no sentido em que se dirige à inteireza do carácter de alguém que desapareceu, restituindo justamente a força, lucidez e desarmante graça de um homem, foi-nos servida por Rui Caeiro, relembrando entre os seus “Diálogos Marados” um que teve com Vitor Silva Tavares:

“Tento convencer o VST a escrever um artigo para a revista Eugénio, dirigida pelo Zetho C. Gonçalves. Sem êxito.

– Não. Não gosto de revistas literárias, nem de suplementos literários, nem de literatos.

No dia seguinte mostro-lhe o número anterior da revista Eugénio, que tinha comigo, o qual, valha a verdade, não tinha grande aspecto.

Surpreendente reviravolta. O Vitor pega na revista com um ar de agrado e diz-me:

– Espera lá, pá. Não me tinhas dito que isto era feito em papel de limpar o cu. Assim já colaboro. Amanhã trago-te o artigo.

E trouxe.”

A lição que parece simples é, na verdade, tão difícil quanto crucial, e passa pela capacidade de dispensar todos os acessos privilegiados, toda essa sedutora sobranceria, precisamente porque o que distingue os literatos é estarem imbuídos de um desejo de duração irreflectido, que não permite qualquer averiguação do respectivo sentido, ou falta dele. O literato é mais um desses seres integrados que pomposamente adequam os seus gestos a uma representação exterior de uma virtude praticamente abolida, assim abdicando das tensões e do conflito que os colocariam em colisão com um regime que vive da intensificação das aparências contra o próprio sentido da experiência vivida. Como explica Jean Baudrillard, “o consumo faz da exclusão maximal do mundo (real, social e histórico) o índice máximo de segurança”. E acrescenta que, assim, “tende para a felicidade por defeito, eliminando as tensões”. “Quanto/ mais forte seja a realidade,/ mais profunda é a sua sombra”, diz-nos um dos poetas reunidos na antologia de poesia finlandesa “O Mundo Adormecido Espera Impaciente”. Ora, é precisamente nessa sombra que nos deve interessar mover-nos. Contrariando este ideal de grandeza e duração, o poeta Paavo Haavikko diz-nos que “O melhor do homem é a sua curta duração,/ que se desvanece,/ total, absolutamente./ Estive morto desde a fundação do mundo/ até ao seu próprio nascimento,/ que sentido faria acordar para fazer coisas/ que durassem para sempre?”

Com traduções de Amadeu Baptista, e com o esmero desse trabalho artesanal que diferencia estas antologias bojudas embora de pequeno formato, destituídas de todo esse efeito de imponência que caracteriza a edição portuguesa, que tem feito de tudo para se impor fisicamente, produzindo monos, esses livros que parecem querer tapar tudo, este é o mais recente volume da discretíssima safra que nos tem chegado desde Vila Meã. Ali, Daniel Ferreira, editor-artesão, continua a fazer chegar-nos estes livros-talismã nessa dignidade de não evitarem os pobres materiais de que são feitos, livros que recusam orgulhosamente serem objectos “instagramáveis”, com um papel sem nenhum brilho, reciclado, bom para limpar o cu, e que certamente faria o contentamento do mais intransigente dos nossos editores. E é na pouca difusão que estes têm merecido, e apesar da singularidade da sua proposta, por corresponderem idealmente a uma ideia forte de cultura, essa que nasce de um longo processo de selecção e de filtragem, que podemos analisar um efeito tão pernicioso de ocultação daquilo que se mostra mais vivo e actuante na esfera da edição. Os tais suplementos de cultura são incapazes de considerar esses raros e significativos fenómenos que se esquivam à dimensão mais operática do regime comercial. Orientam-se antes para a promoção dos consumos, desse fluxo constante dos valores que são fáceis de apreender por serem facilmente quantificáveis, e, cedem, assim, a um registo de repetição regular que é favorável à expressão das massas. Escapa-lhes, deste modo, tudo aquilo que não se adequa à transacção imediata. Ora, nestas antologias não é a palavra rápida, esse sentido que tão velozmente se trafica, “não é a resposta rápida que conta, mas sim o afundamento da palavra que procura a sua responsabilidade” (Elias Canetti). Como se lê num dos poemas de Väinö Kirstinä, “Durante estes anos é/ como se alguém se precipitasse a olhar/ quando acabasses de escrever a primeira letra de um poema/ e te perguntasse por quê e o que vais dizer,/ por quê, com que finalidade?/ para que grupo social?/ e tivesses que responder, antes de continuar”.

Uma das nossas mais grosseiras falhas nessas listas que funcionam como balanço do que se publicou nos últimos doze meses foi o facto de não termos assinalado o trabalho exemplar da editora Contracapa, o qual se reveste do que há de mais nobre no esforço de divulgação e crítica, no sentido em que institui por virtude de meios pobres, com preços acessíveis, uma resistência que, essa sim, opera como um perfeito contraponto face à exultante e apoteótica edição que, mesmo quando difunde noções combativas, se deixa arrastar pelo regime geral do consumo. Ora, nesta condição em que todas as actividades, todos os trabalhos, todos os conflitos e todas as estações se vêm abolidas, e em que para servir e agraciar os deuses ou demónios do consumo tudo aparece finalmente digerido e restituído à mesma matéria fecal homogénea, como nos diz Jean Baudrillard. É a ele que vamos buscar também uma imagem que, ilustrando o “estatuto miraculoso do consumo”, nos fala também da condição desses pequenos editores, que se humilham em vez de aprofundarem a articulação viva desses elementos que os tornam distintos, e que assim os guiam de volta para o trabalho do sonho, o trabalho poético, o trabalho do sentido, ou seja, os grandes esquemas do deslocamento e da condensação, as grandes figuras da metáfora e da contradição, restituindo-se a função simbólica que é o jogo da nossa potência emancipadora. Baudrillard serve-se do exemplo dos indígenas da Melanésia, e conta-nos como estes, sentindo-se maravilhados com os aviões que passavam no céu, estabeleceram um plano para os atrair, uma vez que estes objectos nunca desciam até eles. “Só os Brancos conseguiam apanhá-los. A razão estava em que estes possuíam no solo, em certos espaços, objectos semelhantes que atraíam os aviões que voavam. Os indígenas lançaram-se então a construir um simulacro de avião com ramos e lianas, delimitaram um espaço que iluminavam de noite e puseram-se pacientemente à espera que os verdadeiros aviões ali viessem aterrar.”

Canetti diz-nos que nunca é inteiramente  isento de perigo dirigirmo-nos aos chamados primitivos, e que se vamos ter com eles é para, a partir deles, lançarmos uma luz impiedosa sobre nós próprios. Ora, é precisamente isso que faz Baudrillard, servindo-se desta feroz analogia, tão paródica como reveladora, para falar nos “caçadores-recolectores antropoides que erram actualmente na selva das nossas cidades”. Mas aqui interessa-nos pensar no quanto os índigenas da chamada edição independente – e aqui, de passagem, “ocorre dizer que não vejo ninguém independente de coisa alguma” (Cesariny) –, se servem de semelhantes estratégias para conseguir apanhar os aviões, lançar a sua rede sobre os céus, alcançando esse estatuto que apreendem como o de verdadeira grandeza, pois estão colonizados pela mentalidade de consumo privada e colectiva, e cedem ao pensamento mágico que o governa, adoptando os rituais de uma certa opulência, esses signos de um mediatismo perpétuo, que é o equivalente dos aviões simulacros, dos modelos reduzidos dos Melanésios, ou seja, “o reflexo antecipado da Grande Satisfação virtual, da Opulência total, da Jubilação derradeira dos miraculados definitivos, cuja esperança louca alimenta a banalidade quotidiana”. Baudrillard adianta ainda que mesmo as satisfações menores se reduzem também a simples práticas de exorcismo, a meios de conjurar o Bem-Estar total, a Beatitude. Assim, embora a quotidianidade seja pobre e residual, mostra-se triunfante e eufórica no esforço de autonomização total e de reinterpretação do mundo para uso interno. Baudrillard adianta ainda que esta quotidianidade como enclausuramento seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o álibi de uma participação no mundo. E é esta a grande ilusão que cada um fabrica para si mesmo, a ideia de uma prática refractária que é, na verdade, uma forma de integração absoluta, pois até os sonhos estão dominados pelo efeito do consumo, o qual gera essa tranquilidade selada pela distância ao mundo e que gera um prazer através do falhanço, gozando estes dessa virtude de se assumirem como proscritos na sua própria época. Toda a resistência se vê assim apanhada “numa estrutura de apego melancólico a uma certa estirpe do seu passado morto, cujo espírito é fantasmagórico, cuja estrutura de desejo é retrógrada e castigadora” (Wendy Brown).

Felizmente, perante uma antologia como esta “a ordem cai, é tempo de ressaca”, como nos diz um dos versos que ali se colhe. E para que isto se consiga é preciso reparar nessa “Anotação final num diário”, um brevíssimo poema de Gösta Ågren: “O que não aceita/ a sua derrota está/ vencido.” Esta seria uma boa moral e um ponto de partida para uma edição que abdicasse da resposta rápida, para adequar não apenas os textos mas igualmente o contexto a esse afundamento da palavra que procura a sua responsabilidade. Com mais esta colaboração com Amadeu Baptista – que tinha já assinado a antologia de poesia islandesa “Pelos Nossos Corações Passa a Linha de Fogo” e a antologia de poesia sueca “O Destino da Árvore é Transformar-se em Papel” –, este tão vulnerável projecto continua a dar-nos “um testemunho da audaz linha/ do rosto, da emancipação da mão”. Editada no passado mês de outubro, trata-se de uma recolha muitíssimo abrangente, que nos apresenta a 31 poetas contemporâneos, dispensando qualquer prefácio ou nota de apresentação, e que nos dá apenas os poemas, com os autores elencados de forma cronológica, começando com Edith Södergran, nascida em 1892, e acabando em Agneta Enckell, nascida em 1957. São 350 páginas, e se, em diversos momentos, a revisão deixou escapar gralhas e alguns problemas de ordem gramatical, se isso levanta aqui e ali a suspeita de um trabalho de tradução que poderá cometer despreocupadamente uma série de erros, isso não vai ao ponto de nos dar a sensação de estarmos a ler autores enfiados à balda num contentor, para serem traficados em versões insossas ou demasiado rudes, o que acontece amiúde, servidos a incautos leitores que acabam com uma fraca impressão de algum país de que raramente nos chegam notícias quanto aos fulgores extraídos na sua relação com as palavras. A larga maioria dos poemas sobrevive bem ao descongelamento, e as tantas vozes chegam-nos com a frescura de um arroio correndo e rasgando ao meio esse sonho da tradução como língua exploratória, como meio de ir mais longe beber uma água capaz de reflectir outros mundos dentro de um mesmo sentido vivificante. A partir de uma escolha mais abrangente que o poeta português verteu da língua espanhola, coube depois ao editor rastrear um reflexo amadurecido, uma poesia capaz de fulgores contidos que expressam uma ética dos vencidos, numa fala que, embora simples, ou especialmente por isso, não é apenas insubmissa, mas revela um verdadeiro desprezo pelas formas do tempo como ficção alargada. Lars Huldén contraria essa noção que hoje se vai tendo do poeta como figura tão mais enfática quanto menos tem a dizer, e que se serve de todos os truques e afectações apenas para produzir efeito, um prestígio qualquer que deslumbre aqueles que rejubilam com os objectos redundantes, a errância lúdica do modo combinatório, que se inscreve no estilo de conduta hedonista, sempre com as suas urgências afectivas e que são desenhadas pelos “estrategos do desejo”, com vista a desculpabilizar a passividade desse número cada vez maior de pessoas sem histórias e felizes de o serem (Baudrillard). “Abruptamente entrou/ no solene salão da lírica.// Lá estão os poetas/ a escutar música/ à volta do morto.// Que maneira de me comportar!/ Alguns apontam o meu gorro/ outros as minhas botas./ A única coisa que me resta é dar/ um tiro ao lustre.”

Se a larga maioria dos poemas são bastante breves, a selecção oferece uma função contemplativa do mundo, e temos amiúde paisagens que misturam a ruína e a desolação a fortuitos vislumbres de uma beleza inesperada, uma espécie de resgate que nos envolve num tempo já consumido e exausto, quando parecia impossível retomar a antiga melodia das coisas. Bo Carpelan descreve a visão que alcança “No Terraço de Agosto”: “A mesa começa a ficar velha, sustem-se instável/ sobre as torpes patas. As dobradiças cedem,/ as superfícies envernizadas gretam, a mesa/ range quando alguém lhe bate./ Também a tarde é velha, cheira a folhas velhas,/ amieiros, matas de framboesas silvestres. É difícil/ encontrar no verdor que começa a petrificar-se/ uma flor, ainda que debilmente luminosa,/ que aromatize, esquecida como o quarto de verão de uma estirpe morta –/ um aroma a roupa velha, noz moscada ou serrim/ sob o embrulho corroído pela humidade nas casas abandonadas./ Algo imóvel, cego, penetra em mim através do pensamento:/ já sereno com o entardecer de Agosto,/ já inquieto ataque de imagens como se um estranho/ me obrigasse a folhear rapidamente um álbum de fotografias (…)”.

É um pouco esta a sensação, a de se ser obrigado a folhear esse álbum de fotografias onde somos envolvidos por um grupo de pessoas e uma rara paisagem, e é assim, por meio deste exercício que varia o olhar e a sua intensidade, como se espreitássemos por cima de tantos ombros, que a poesia nos vai possibilitando uma fuga de nós mesmos, desses reflexos de auto-comprazimento, desse cárcere que se forma através de um quotidiano definido por desejos capturados. Assim, através de um questionamento sério das nossas motivações, entramos nesse efeito de responsabilização, e é Paavo Haavikko, de quem já citámos alguns versos, um dos autores que mais se destacam aqui, falando-nos de “uma geração servida aos monstros”, e da “ditadura da Salvação Pública”, neste em que procura privatizar a culpa para fragilizar o elo que ainda segura a comunidade, essa que poderia descortinar e reforçar-se nas suas posições contra a intriga desse “terrível e melado sonho [que] condimenta o tédio geral”. “Temo que tenhas elegido um lugar ao lado da exploração./ Tem isso umas quantas circunstâncias atenuantes./ Quando estás dentro és uma flor dentro de um fruto./ Estás dentro da sua máscara, e em acção./ O interior parece áspero e os buracos dos olhos são diminutos./ Podem existir no exterior atiradores de pedras./ Compreendo-te. Quando escuto na fila de presos/ como por diferentes caminhos chegamos à mesma linha./ Uma compreensão comum une-nos, que os governantes/ têm em verdade muito pouco espaço para mover-se./ O poder é um edifício. Quando pedimos espaço para nos movimentarmos,/ eles chamam-lhe deslocamento lateral calculado./ Um desvio de um milímetro aqui em baixo/ significa um metro ali em cima./ O edifício é tão alto./ E eles não o tornam fácil.”

Trata-se de um registo exigente, de um compromisso com a subtileza, trata-se de produzir esse desvio milimétrico na nossa percepção, o suficiente para, mais à frente, deslocar as coisas um metro ou mais. Trata-se também de questionar o alcance das nossas acções e gestos, das palavras. Trata-se sobretudo de nos devolver a um gosto pelo mundo, pelo real, contra essa intriga “baseada na apreensão ávida e multiplicada dos seus signos”, esses simulacros que dissolvem a nossa capacidade de espanto contra a vida quotidiana, onde tudo é outro lugar do consumo. É contra esta quotidianidade em que nos vemos enclausurados que aqui somos advertidos, e, assim Haavikko serve-se da história para ilustrar a moldura penal em que vamos vivendo: “Quando foi construída a Bastilha, uma muralha no coração da Europa,/ Disseram que não duraria muito tempo./ Quando foi derrubada, disseram já não existe./ Não. Como tinha existido, não precisavam dela./ Agora o povo vigia-se a si mesmo, por sua conta. Gratuitamente.”