Os megaprocessos e a dificuldade de ter sobre eles uma leitura concordante: riscos de legitimação (II)


O risco é o da derrocada da lógica da narrativa acusatória e, por tal razão, das circunstâncias concretas que nortearam cada crime.


Há já uns anos, Paolo Flores D’Arcais, filósofo e editor da Micromega, revista italiana dedicada à análise filosófica, política, económica e cultural afirmou mais ou menos isto: «fazer cumprir a legalidade pode não ser por si só um ato revolucionário, mas ajuda já a promover a justiça social».

Tal frase foi enunciada no rescaldo eufórico da célebre «operação mãos limpas», que a magistratura italiana conduziu com sucesso contra corrupção generalizada do regime.

Essa operação judicial decapitou, para além disto, os estados maiores do chamado «pentapartido», coligação centrista que, explícita ou implicitamente, vinha governando, desde há muito, a Itália.

A referida reflexão e os resultados imediatamente obtidos por tais magistrados fizeram-me, na altura, acreditar que uma ação decidida e abrangente da Justiça – uma ação que punisse os infratores e desvendasse os mecanismos políticos e económicos do poder que os toleravam – seria capaz de proporcionar uma regeneração das instituições democráticas.

Admitia eu, e admitiam muitos outros, que o funcionamento da Justiça, na perseguição da criminalidade económica e financeira grave e no desvendamento dos mecanismos que a consentiam e promoviam, poderia, por si só, mobilizar a opinião dos cidadãos e pôr em crise a lógica da corrupção institucional.

Os anos que, em Itália, se seguiram não confirmaram tal otimismo: a ação da Justiça, por si, nada alterou, de facto.

Rapidamente se sucederam os governos de Berlusconi e todas as peripécias políticas e judiciais que eles comportaram e, mais tarde – o que pareceria impensável em anos anteriores – as forças da extrema direita acabaram mesmo por voltar a participar no governo da Itália.

Vêm estas memórias à baila a propósito do texto que, na semana passada, aqui deixei escrito e que mereceu uma crítica construtiva de alguns colegas, que o acusaram, porventura com razão, de hermetismo.

Ele pretendia, tão só, alertar para a ideia enganadora de que a Justiça pode, através de iniciativas puramente judiciais e de megaprocessos amplamente compreensivos e, por isso, hiper-complexos, fazer julgar os que abusam do regime democrático e, em simultâneo, expor os alicerces fragilizados e cada vez mais comprometidos em que ele assenta.

Quando se delineia uma tal estratégia processual – procurando expor toda a difícil lógica do sistema que leva à prática de factos que a lei qualifica como crimes – pode, na realidade, revelar-se uma perspetiva mais clara das circunstâncias que propiciam a resolução criminosa dos agentes que se investigam ou se acusam.

Na realidade, porém, pouco se contribui para uma mais eficaz e mais simples ação punitiva da Justiça, que é o objetivo que, sobretudo, deve motivar os magistrados.

E isso acontece por duas ordens de razões: uma, interna e inerente ao funcionamento da própria Justiça, a outra, externa e relativa à projeção pública da sua legitimidade político-funcional.

No que se refere à primeira ordem de razões – a que respeita à gestão do objeto do processo – a experiência demonstrou já, sobejamente, como é difícil manter intacta e coerente em juízo toda uma narrativa longa que sirva de tronco único e de fio condutor comum de possivelmente conexas, mas destacáveis, ações criminais dos acusados.

Quando uma pequena fissura se revela – nem que só aparentemente – em tal narrativa global e compreensiva, avultam os riscos de não se conseguir, depois, esclarecer e fundamentar, em juízo, a coerência dos propósitos e das ações criminais parcelares que se pretendem fazer punir em conjunto.

O risco é o da derrocada da lógica da narrativa acusatória e, por tal razão, das circunstâncias concretas que nortearam cada crime.

No que se refere à segunda ordem de razões – a projeção pública da legitimidade da ação da justiça – é hoje evidente, também, que todo o tipo de interesses e os mecanismos que os protegem na política e nos media, se mobilizam, de imediato, para desacreditar, política e socialmente, a ação judicial sempre que esta os possa, mesmo que indiretamente, afetar.

Ora, um objeto processual complexo e excessivamente compreensivo favorece e autoriza, mais facilmente, leituras tendenciosas e desconformes com o seu real significado e intento.

Porque atinge a lógica defeituosa do sistema, um tal objeto processual consente, pois, imediatamente, uma leitura subversiva dos propósitos judiciais.

Tal estratégia conduz a uma deslegitimação da ação da Justiça e deixa, por isso, de dizer, necessariamente, apenas respeito aos acusados e seus defensores.

Ela convoca, desde logo, todos os que sentem os seus interesses – e os do regime em que prosperam – beliscados.

Nesse sentido, até os próprios acusados são, por vezes, pressionados e arrastados para uma intervenção e uma estratégia processual alheias e que só servem, verdadeiramente, os que, de fora, se sentem intimidados pela ação reveladora da Justiça.

É por este conjunto de razões que afirmei ser mais fácil e mais produtivo, do ponto de vista processual, e, portanto, dos objetivos exclusivos da Justiça, identificar os atos concretos que a lei qualifica claramente como crimes e submeter, isoladamente, a julgamento tais condutas.

Por outro lado, desta forma, isolando as condutas criminais, sem necessariamente ter de as submeter à lógica do contraditório sistema jurídico-económico que gere a vida económica e política atual, se evitam, um pouco que seja, as melífluas leituras externas, que uma narrativa abrangente e, por isso, sempre discutível, não raro permite.

Uma, duas, ou três condenações em tempo por crimes bem identificados pelos cidadãos deles contemporâneos, fariam, assim, muito mais sentido, tanto do ponto de vista processual-judiciário, como do ponto de vista da sociedade.

Pela sua fácil apreensão, exemplaridade indiscutível e estabilidade na ordem jurídica, elas contribuiriam, além disso, para uma maior legitimação democrática da Justiça no contexto dos poderes constitucionais.

Os megaprocessos e a dificuldade de ter sobre eles uma leitura concordante: riscos de legitimação (II)


O risco é o da derrocada da lógica da narrativa acusatória e, por tal razão, das circunstâncias concretas que nortearam cada crime.


Há já uns anos, Paolo Flores D’Arcais, filósofo e editor da Micromega, revista italiana dedicada à análise filosófica, política, económica e cultural afirmou mais ou menos isto: «fazer cumprir a legalidade pode não ser por si só um ato revolucionário, mas ajuda já a promover a justiça social».

Tal frase foi enunciada no rescaldo eufórico da célebre «operação mãos limpas», que a magistratura italiana conduziu com sucesso contra corrupção generalizada do regime.

Essa operação judicial decapitou, para além disto, os estados maiores do chamado «pentapartido», coligação centrista que, explícita ou implicitamente, vinha governando, desde há muito, a Itália.

A referida reflexão e os resultados imediatamente obtidos por tais magistrados fizeram-me, na altura, acreditar que uma ação decidida e abrangente da Justiça – uma ação que punisse os infratores e desvendasse os mecanismos políticos e económicos do poder que os toleravam – seria capaz de proporcionar uma regeneração das instituições democráticas.

Admitia eu, e admitiam muitos outros, que o funcionamento da Justiça, na perseguição da criminalidade económica e financeira grave e no desvendamento dos mecanismos que a consentiam e promoviam, poderia, por si só, mobilizar a opinião dos cidadãos e pôr em crise a lógica da corrupção institucional.

Os anos que, em Itália, se seguiram não confirmaram tal otimismo: a ação da Justiça, por si, nada alterou, de facto.

Rapidamente se sucederam os governos de Berlusconi e todas as peripécias políticas e judiciais que eles comportaram e, mais tarde – o que pareceria impensável em anos anteriores – as forças da extrema direita acabaram mesmo por voltar a participar no governo da Itália.

Vêm estas memórias à baila a propósito do texto que, na semana passada, aqui deixei escrito e que mereceu uma crítica construtiva de alguns colegas, que o acusaram, porventura com razão, de hermetismo.

Ele pretendia, tão só, alertar para a ideia enganadora de que a Justiça pode, através de iniciativas puramente judiciais e de megaprocessos amplamente compreensivos e, por isso, hiper-complexos, fazer julgar os que abusam do regime democrático e, em simultâneo, expor os alicerces fragilizados e cada vez mais comprometidos em que ele assenta.

Quando se delineia uma tal estratégia processual – procurando expor toda a difícil lógica do sistema que leva à prática de factos que a lei qualifica como crimes – pode, na realidade, revelar-se uma perspetiva mais clara das circunstâncias que propiciam a resolução criminosa dos agentes que se investigam ou se acusam.

Na realidade, porém, pouco se contribui para uma mais eficaz e mais simples ação punitiva da Justiça, que é o objetivo que, sobretudo, deve motivar os magistrados.

E isso acontece por duas ordens de razões: uma, interna e inerente ao funcionamento da própria Justiça, a outra, externa e relativa à projeção pública da sua legitimidade político-funcional.

No que se refere à primeira ordem de razões – a que respeita à gestão do objeto do processo – a experiência demonstrou já, sobejamente, como é difícil manter intacta e coerente em juízo toda uma narrativa longa que sirva de tronco único e de fio condutor comum de possivelmente conexas, mas destacáveis, ações criminais dos acusados.

Quando uma pequena fissura se revela – nem que só aparentemente – em tal narrativa global e compreensiva, avultam os riscos de não se conseguir, depois, esclarecer e fundamentar, em juízo, a coerência dos propósitos e das ações criminais parcelares que se pretendem fazer punir em conjunto.

O risco é o da derrocada da lógica da narrativa acusatória e, por tal razão, das circunstâncias concretas que nortearam cada crime.

No que se refere à segunda ordem de razões – a projeção pública da legitimidade da ação da justiça – é hoje evidente, também, que todo o tipo de interesses e os mecanismos que os protegem na política e nos media, se mobilizam, de imediato, para desacreditar, política e socialmente, a ação judicial sempre que esta os possa, mesmo que indiretamente, afetar.

Ora, um objeto processual complexo e excessivamente compreensivo favorece e autoriza, mais facilmente, leituras tendenciosas e desconformes com o seu real significado e intento.

Porque atinge a lógica defeituosa do sistema, um tal objeto processual consente, pois, imediatamente, uma leitura subversiva dos propósitos judiciais.

Tal estratégia conduz a uma deslegitimação da ação da Justiça e deixa, por isso, de dizer, necessariamente, apenas respeito aos acusados e seus defensores.

Ela convoca, desde logo, todos os que sentem os seus interesses – e os do regime em que prosperam – beliscados.

Nesse sentido, até os próprios acusados são, por vezes, pressionados e arrastados para uma intervenção e uma estratégia processual alheias e que só servem, verdadeiramente, os que, de fora, se sentem intimidados pela ação reveladora da Justiça.

É por este conjunto de razões que afirmei ser mais fácil e mais produtivo, do ponto de vista processual, e, portanto, dos objetivos exclusivos da Justiça, identificar os atos concretos que a lei qualifica claramente como crimes e submeter, isoladamente, a julgamento tais condutas.

Por outro lado, desta forma, isolando as condutas criminais, sem necessariamente ter de as submeter à lógica do contraditório sistema jurídico-económico que gere a vida económica e política atual, se evitam, um pouco que seja, as melífluas leituras externas, que uma narrativa abrangente e, por isso, sempre discutível, não raro permite.

Uma, duas, ou três condenações em tempo por crimes bem identificados pelos cidadãos deles contemporâneos, fariam, assim, muito mais sentido, tanto do ponto de vista processual-judiciário, como do ponto de vista da sociedade.

Pela sua fácil apreensão, exemplaridade indiscutível e estabilidade na ordem jurídica, elas contribuiriam, além disso, para uma maior legitimação democrática da Justiça no contexto dos poderes constitucionais.