Hugo Van Der Ding. A morte, às vezes, dá vontade de rir

Hugo Van Der Ding. A morte, às vezes, dá vontade de rir


Como a vida está cheia de mortos, Hugo Van Der Ding descobriu-lhes uma utilidade e desatou a escrever pequenas biografias sobre praticamente toda a gente que existiu. E de repente a gente descobre que a morte é tão boa para rir como outra coisa qualquer


Quando um livro nos vem parar às mãos e não sabemos o que fazer com ele, o melhor é lê-lo. Decisão óbvia noutros tempos. Tempos em que havia mais tempo e menos livros. Agora vêm-me parar às mãos muitos e muitos livros e tenho de os empilhar até ter tempo para os ler todos, mas tenho muitas dúvidas de que a vida que me sobra sirva para isso. Neste caso concreto, se tivesse feito entretanto algo de jeito, ainda que não precise de ser algo de muito, muito jeito, que o autor não se fez por demais esquisito, talvez a morte me servisse para alguma coisa. Para Hugo Van Der Ding, a morte de muita gente serviu-lhe para escrever um livro e, pelos vistos, ignorância total minha, que não sou muito ouvinte de rádio, desculpem-me os colegas do éter, para fazer programas todas as manhãs na Antena 3, na rubrica Vamos Todos Morrer. Pois vamos. Nem era preciso que o Hugo me recordasse isso. Mas depois pegou nos programas e passou-os a livro, deixando os tiques da palavra dita e acrescentando-lhes outros da palavra escrita. E publicou na Objectiva – Vamos Todos Morrer – Biografias breves para gente que já lá está. Esqueçam os que procuram saber onde é esse “lá”. É aquela parte hitchcokiana do livro.

Há que dizer que os vícios da  oralidade são menos visíveis do que os da escrita, se é que percebem onde quero chegar. Por alguma razão, palavras leva-as o vento e letras não. Por isso, em Vamos Todos Morrer (livro e não programa) há certas notas repetitivas que podem irritar quem lê mas não devem irritar quem lê a pensar que as ouve. Acho que é assim. Mas se não atingirem a profundidade deste raciocínio feito aqui ao correr da pena o melhor é mesmo lerem o livro, embora a minha curiosidade, agora, esteja mais virada para o programa.

O Hugo (vou tratá-lo assim porque é mais novo do que eu e porque também trato toda a gente pelo nome) descobriu um filão infinito: mortos. Se há algo que não falta nesta vida são mortos. Então desatou a enfileirá-los e deu-lhes as vidas que eles tiveram, desde o Aristides Sousa Mendes à Rainha-Mãe, neste caso mãe da rainha. De Inglaterra, claro está, que nós não temos rainha apesar de termos uma espécie. É evidente que isto dito assim podia ser escrito por alguém que leu apenas o índice, mas não consegui ficar-me pelo índice, confesso, e li-o todo. De uma vez, quero dizer. Assim como um vício. Como roer as unhas: quando dei por ela já estava no sabugo, melhor dizendo, na página 382. Até hoje, confesso, que o nome de Van Der Ding não me fazia soar campainhas. Mas parece que ele é Hugo Sousa Tavares e só se tornou holandês para falar e escrever, está muito bem, é lá com ele, quero é falar do livro.

O autor de Vamos Todos Morrer é um tipo culto. Aliás, só um tipo culto tem sentido de humor. Os outros são só engraçadinhos. Ou palhaços. Pobres.  Tem uma opinião da qual partilho: o livro é dele, ele escreve o que quer nele, se quem lê não gosta, que ponha de lado e vá escrever livros. Mais direto do que isto é difícil. E ainda bem. Eu gostei. Depois vai por aí fora a fazer pequenas biografias, sendo que muitas delas são grandes biografias porque aqui a noção de pequeno e de grande se mede pela qualidade e não pela quantidade. Em pouco espaço, escreve vidas inteiras. Que acabam em mortes como todas as vidas. Há algumas particularmente bem caçadas, como se dizia no meu tempo de miúdo, e outras subitamente sérias. Se não mesmo tristes. E profundas. Há finais que me obrigaram a parar de ler desenfreadamente e não saltar logo para a vida seguinte. Ou será morte seguinte? Seja como for, obrigaram-me a pensar. O que é bom. Acho eu. Pelo menos, fez-me escrever isto tudo. 

O Hugo esfrega a prosa com um toque blasé, muito ao estilo Tom Sharpe, e dá-se ao luxo de uma arrogância – que tem ou não tem, já disse que não o conheço pessoalmente – perfeitamente encaixável nos Cadernos do Major Thompson, de Pierre Daninos. Em princípio não gosta de pobres, nem de remediados nem de classe média. Adopta a atitude: são pobres? Façam-se ricos! Ou: os pobres são estúpidos porque além de terem pouco dinheiro gastam-no em coisas de má qualidade. Mas isto é um parece. A qualquer momento solta uma enormidade e conclui com um seco: “Brinco”. E nós ficamos sem saber se ele está mesmo a brincar ou se está a mangar connosco, o que faz com que Estamos Todos Mortos tenha ainda mais graça. 

Raramente encontro um livro que me faça sorrir, quanto mais rir. Os que me fizeram rir já os li todos e agora toda a gente escreve livros muito tristes sobre vidas muito tristes e mortes infelicíssimas. O Hugo conseguiu fazer-me rir com a morte e a morte é um motivo tão bom para rir como qualquer outro. Eu pelo menos uso a minha como tema de piadas pelo meio de umas cervejas. Depois logo verei se tem graça ou não já lá estar. Duvido é que me deixem escrever sobre o assunto. Os mortos têm um clube muito pomposo e restrito. Não sai de lá uma notícia nem para o Correio da Manhã. Quando ele diz que a história de amor entre Pedro e Inês é um Romeu e Julieta das barracas não está a brincar. Pelo menos não escreveu à frente: “Brinco”. E fazer humor com Pedro e Inês não precisa de ser uma desgraça. Ou uma tragédia. Estou como o outro: o Hugo escreve epitáfios magníficos; estou desejando ler o meu.