Os rostos, os nomes e os exemplos daqueles que perdemos em 2021

Os rostos, os nomes e os exemplos daqueles que perdemos em 2021


Lembramos algumas das personalidades da vida pública portuguesa desaparecidas em 2021, e que passam agora a povoar a nossa memória, exigindo que saibamos honrar o seu legado e exemplo.


O problema que a morte nos coloca é obrigação de se inventar o amanhã a partir de uma ausência, a partir desse vazio que ameaça alastrar quando alguém com que contávamos não poderá já comparecer. Esse amanhã que parece dizer respeito ao futuro, na verdade guia-se pelas regras do passado, estando sujeito aos balanços da memória. Ora, como nos disse Teixeira de Pascoaes, “a Memória é outro mundo, com outras criaturas”. É sempre perturbador ver perfilados aqueles que desapareceram, como se abríssemos um anuário escolar, em que os rostos e nomes já não encaram o futuro, mas se encerram numa estranha turma que se despede unida por esse estranho sortilégio de terem desnascido no mesmo ano. E se a memória não pede autorização para se pôr a trabalhar, há esta consequência de se morrer num país que todo ele faz sombra sobre o mar. “Já me disseram que a gente que nasce e vive ao pé do mar é mais pura”, escreve Herberto Helder no conto “Os Comboios que Vão para Antuérpia”. E prossegue: “Penso que o mar dá uma qualidade especial à fantasia, ao desejo e à confiança. É uma propriedade misteriosa do espírito, e por ela se aprende a nada esperar, a não desesperar de nada. Talvez seja isso a inocência. Talvez só no mar nos seja concedido morrer verdadeiramente, morrer como nenhum homem pode.”

É uma hipótese benévola esta, mas também é certo que o mar em certos períodos chegue a ser sentido como uma fronteira desoladora, que não se cala, incitando-nos ao mesmo tempo que nos encerra, fazendo-nos sentir trancados diante de uma distância que constantemente nos desafia. Assim, vai-se apurando no sangue essa maldição proferida entredentes, em que nos condenamos uns aos outros, em que o ressentimento de uns não deixa que outros escapem a uma mediania pantanosa. “Porque o problema não é salvar Portugal, mas salvarmo-nos de Portugal”, como disse certa vez Jorge de Sena, que também escreveu esta dolorosa súplica: “Diz-me assim devagar coisa nenhuma/ o que à morte se diria, se ela ouvisse,/ ou se diria aos mortos se voltassem.”

Mas então, que fazer com o mar? Com este acosso leve e constante como uma assombração. E neste lugar que nos pode ser tão difícil, como lidar com a matemática impenetrável da morte? Em grande medida, ao sentirmo-nos sitiados pela doença, a vida começou a sofrer de um efeito circular, de um sufoco marcado por esse traiçoeiro deus da doença, num momento degradado em que tem vindo a cumprir um vaticínio de Agustina Bessa-Luís: “As pessoas vão dedicar-se à doença como não se dedicam a um amigo ou a um familiar”. Logo na primeira manhã do ano, desaparecia a andorinha e a voz de Lisboa, Carlos do Carmo. Vítima de um aneurisma na aorta, a morte do fadista aos 81 anos foi um mau prenúncio quando todos esperavam um virar de página. O embaixador da candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade, finalmente assim classificado pela Unesco em 2011, foi o primeiro português a ser distinguido com o Grammy Latino de Carreira. O “Velho Cantor”, foi "o representante máximo do chamado fado novo", e subiu aos palcos do Olympia de Paris, da Ópera de Frankfurt, do Canecão do Rio de Janeiro, do Royal Albert Hall de Londres, e aos palcos de centenas de salas espalhadas por todas cidades do mundo que acolhem as comunidades portuguesas.

Quatro dias depois, morria de complicações provocadas por um enfisema pulmonar João Cutileiro, o escultor que refutou alegremente a autoimagem de um país que vive numa bulha entre complexos e ilusões de grandeza, fazendo-o descer à terra, e ao desejo, para deixar de tossir o pó da História e regressar à vida. Se Carmo Carlos do Carmo, era dos que cosiam com nasceres do sol e tanta noite esse perfil sentimental que toma o lugar da nossa razão, desaparecia aos 83 anos o artista que tratou com a pedra umas tréguas para o país, esse que vivia (vive ainda) artificialmente a sua grandeza, uma ilusão que se impõe como negativo da realidade que vai escondendo dos outros e de si mesmo, entre a tentação maníaca e um romantismo desesperado. Entre tantos outras obras que irritaram o beatério e causaram polémica, deixou-nos o maior dos manguitos, com esse monumento ao 25 de Abril, mais conhecido como o pirilau do Cutileiro, o qual, localizado no topo do Parque Eduardo VII, na capital, permanece ali como uma obscenidade ao mesmo tempo atrevida e tocante, um gesto nu em memória das décadas de tormento e repressão a que foi sujeito um povo.

No final do mês, num só dia, morreram três actores portugueses: António Cordeiro, José Mascarenhas e Licínio França. Foi a um sábado, o de 30 de janeiro. Vítimas de doença prolongada cada um deles, incapacitados e afastados dos palcos, fizeram da mesma data um fim partilhado três actores que, de tão diferentes modos, serviram a aparição desses rostos na multidão, dessas existências fulgurantes contra o pano de fundo de um tempo muito fácil de esquecer.

No dia 3 de fevereiro morria, aos 99 anos, vítima de covid-19, a actriz Adelaide João. Tendo recebido em 2007 o prémio Sophia pela carreira, foi recordada pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, como “uma figura eminentemente reconhecível, com uma franqueza e um desembaraço que a tornavam uma actriz cómica por excelência, mas também à vontade em registos mais graves.”

Também vítima da mesma doença, morreu nesse mês, aos 80 anos, Marcelino da Mata, o militar mais condecorado de sempre do Exército. Armado cavaleiro da ‘Antiga e Muito Nobre Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito’, em 1969, após ter subido sucessivamente de patente, de soldado a major, foi um dos fundadores e principais operacionais dos Comandos, e, no 25 de Abril, foi proibido de voltar à sua terra-natal e viu-se obrigado ao exílio até ao contra-golpe do 25 de Novembro. Também a sua morte foi marcada pela polémica, isto depois de Mamadou Ba o ter acusado de ser “um criminoso de guerra”. Nesse mesmo dia 11, morre aos 100 anos Joel Pina, o homem que, com a viola baixo, fez de chão para Amália, e, assim, impôs definitivamente a viola baixo como parte do acompanhamento tradicional da canção de Lisboa. Com uma carreira de oito décadas, Joel Pina tocou com muitos, deixando um legado que se mistura com a própria memória do Fado.

No dia 16, partiu a actriz Carmen Dolores, aos 96 anos, a “voz linda” que trocou a rádio pelos palcos de teatro. Retirada desde 2005, em julho de 2018, a actriz foi condecorada pelo Presidente da República com as insígnias de Grande-Oficial da Ordem do Mérito, no âmbito de uma homenagem no Teatro da Trindade, que incluiu a estreia da peça "Carmen", inspirada nas suas memórias, e o baptismo da sala principal com o seu nome.

A 3 de março, morreu aos 87 anos Maria José Valério, a cançonetista que deu voz à marcha Viva o Sporting. Voz incontornável da cultura popular e da música portuguesa, a diva do Sporting Clube de Portugal, que vestia de verde da ponta dos pés à ponta dos cabelos, literalmente, foi uma das cinco pessoas infectadas com o novo coronavírus na sequência de um surto na Casa do Artista e que tiveram de ser hospitalizadas.

A 7 de abril, morre com apenas 66 anos o ex-ministro socialista Jorge Coelho, político de quem Marcelo destacou o “espírito combativo”, mas que ficará para a História como por esse “gesto singular de assumir, em plenitude, a responsabilidade pela tragédia de Entre-os-Rios e a capacidade rara de antecipar o sentir do cidadão comum”. O chefe de Estado referia-se à queda da ponte de Entre-os-Rios, que provocou a morte de 59 pessoas, tendo o então ministro de Estado do Equipamento Social pedido a demissão com o argumento de que “a culpa não pode morrer solteira” e “têm que se tirar as consequências políticas”. Uma atitude ainda mais enaltecida pelo fraco exemplo, às vezes até indecoroso e patético, de tantos outros responsáveis políticos, sendo impossível, neste ano, deixar de apontar o contraste face a Eduardo Cabrita, ex-ministro da Administração Interna, que se agarrou ao posto muito para lá da hora em que se tornara evidente que estava morto politicamente, ficando ali em decomposição, tornando-se motivo de embaraço nacional. 

Julião Sarmento, o mais internacional dos artistas portugueses, morreu a 4 de maio, aos 72 anos, na sequência de um cancro com o qual se debatia há meses. Muitos nem sabiam que estava doente, e a notícia causou bastante perturbação tendo sido uma figura tão influente e congregadora no meio artístico. A sua obra desdobrou-se sem limites, num despudor tremendamente confiante, em combinações e encadeamentos associativos, estendendo-se da pintura e do desenho, da fotografia e dos múltiplos, do filme e do vídeo à escultura, passando pela performance. Bebia continuamente do prazer que a arte lhe dava, e o espaço revelava-se nutritivo, vivificante. Foi uma das mais irreparáveis perdas que sofremos este ano.

No dia 13, foi Maria João Abreu quem desapareceu. E embora fosse o quadro mais provável, depois de ter sofrido dois aneurismas, a notícia da morte da actriz, aos 57 anos, não deixou de provocar choque e emocionar o país. Toda a gente gostava dela, e tendo sido arrancada à vida no auge da sua carreira, a sua morte foi sentida por muitos como a perde de um familiar, isto porque a sua presença chegava a ser consoladora nessa forma de ficção (a telenovela) que não passa muitas vezes de um animal de companhia.

A 10 de junho, com apenas 59 anos, vítima de doença súbita, morria Neno (Adelino Barros), o antigo internacional português Neno, que foi guarda-redes no Benfica e no Vitória de Guimarães. Estimado pela sua atitude carismática e afável, ficou conhecido como "o guarda-redes cantor" ou "o Julio Iglesias da baliza", tendo chegado a partilhar o palco com o músico espanhol, acabando por lançar um álbum, em 1996, “Neno Neno Neno”.

A 11 de julho, o país despedia-se do cartoonista Vasco de Castro, “um dos maiores desenhadores de humor do século XX”, na opinião de Mário Beja Santos, que afiou o bico ao lápis na crítica social, revelando um génio rebelde, excêntrico e subversivo, tendo retratado de forma mordaz os principais rostos da cultura e política portuguesas ao longo de mais de 60 anos, e mantido colaboração não apenas com a imprensa nacional mas com diários como o “Le Monde” e o “Le Figaro”, tendo estado exilado em França no período do Maio de 68.

A 25 do mesmo mês, morre Otelo Saraiva de Carvalho, aos 84 anos. Uma das figuras mais controversas da política portuguesa, voltou a deixar tudo de pantanas ao provocar um aceso debate em relação à memória e ao legado que deixava. O herói da história de uns e o vilão da história de outros, Saraiva Carvalho encabeçou revoluções e ataques terroristas, e se ninguém lhe tira a glória de ter sido o principal orquestrador do 25 de Abril, a liderança do COPCON durante o período do PREC e a sua ligação às FP-25, responsáveis por mais de uma dezena de mortes em vários atentados e assaltos, levou-o a passar cinco anos na choldra, depois de ser condenado a uma pena de 15 anos, acabando por beneficiar de uma amnistia no final da década de 1980. Depois do 25 de Abril ainda se candidatou por duas vezes às presidenciais, e se, em 1976, nas primeiras eleições em democracia, ficou em segundo lugar com 16,46% dos votos, apenas atrás de Ramalho Eanes, em 1980, ano da reeleição de Eanes, obteve apenas 1,49% dos votos, ficando em terceiro lugar.

A 1 de julho, deixa-nos, aos 92 anos, António Coimbra de Matos, um dos mais prestigiados psicanalistas portugueses. Com seis décadas no combate para salvar a alma da gangrena da depressão, foi um general que apontava sempre na direcção do futuro, lembrando-nos que sem desejo ou projecto ficamos frágeis e mais propensos a quebrar. A 29 de julho, morre com 86 anos Pedro Tamen, poeta com uma obra extensa e respeitável e um tradutor estupendo, que entre tantos títulos imprescindíveis, assumiu a monumental tarefa de trazer para a nossa língua as cerca de três mil páginas de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, tendo sido uma das figuras mais influentes da nossa cultura na segunda metade do século XX menos como autor do que como promotor de uma série de projectos culturais, tendo sido administrador da Gulbenkian, editor da revista “O Tempo e o Modo”, um dos criadores do Centro Cultural de Cinema ou como director da editora Moraes, onde fundou e dirigiu a colecção Círculo de Poesia, um catálogo absolutamente marcante no nosso espaço literário.

A 3 de setembro morre, aos 96 anos, a escritora Isabel da Nóbrega. Tendo sido influenciada pelo nouveau roman, como assinalou Joana Emídio Marques, foi “uma figura indissociável da afirmação feminina como força indisciplinadora na literatura portuguesa”, tendo assinado duas obras que tiveram um papel significativo na renovação da ficção portuguesa na década que antecedeu o 25 de Abril – o romance Viver Com os Outros (1964) e o livro de contos Solo para Gravador (1973).

A 10 de setembro morre Jorge Sampaio, aos 81 anos. O antigo Presidente da República foi unanimemente elogiado por todos os sectores, e ninguém sintetizou melhor do que a jornalista Helena Teixeira da Silva a impressão de confiança que deixou este político que primeiro foi sempre um homem entre homens, alguém que nunca desistiu do peso do seu coração. “Foi o Presidente da República mais vezes discretamente corajoso, o ex-chefe do Estado mais generoso e mais reservadamente interventivo, a personalidade política com saúde mais frágil e porventura também a mais culta. Homem de família, afectivo e afável, exigente e austero, Jorge Sampaio entregou-se à vida como um ‘prisioneiro da grande ansiedade por um futuro melhor’, como de si próprio disse em entrevista à RTP em 1992.” A 18 de setembro morreu José-Augusto França, aos 98 anos, o homem que nunca na vida se aborreceu. Foi o que disse numa entrevista: “Aborreço-me com a vida, na vida não! Quando há interesses – ou oiço música ou vejo filmes, ou leio, escrevo… – uma pessoa não se aborrece.” Nascido em 1922, José-Augusto França gabava-se de ter sido contemporâneo de Proust por um dia. Andou entre Lisboa e Paris, donde trouxe as bases para fundar os estudos em História da Arte. Com mais de sete décadas de actividade, cerca de 100 livros publicados, numa intervenção que fez dele uma figura central na divulgação e crítica de arte, considerava-se “um ateu de cultura católica” e não tinha pressa nem angústia de morrer. “O céu pode esperar” era a sua divisa.

A 4 de outubro, morre, aos 92 anos, Fernando Echevarría, o mais metafísico dos poetas portugueses. Autor de uma obra vastíssima, parecia bêbedo de um insaciável ritmo, mas os seus versos eram de uma lucidez e de uma sobriedade espantosas. Tinha passado os últimos dias internado, e já há alguns anos havia sofrido um ataque cardíaco, de que recuperou para se ligar com um renovado fervor ao seu ofício poético, tendo publicado, em 2013, “Categorias e Outras Paisagens”, um livro com quase 500 poemas inéditos. A sua obra era, ao mesmo tempo, um rio e uma destilaria, e estando sempre a retomar os autores clássicos, importava-lhe atingir esse ponto dominado pela “atenção de ver como o silêncio/ isola cada ruído na sua eternidade”. Dois dias depois, morre o padre Vítor Feytor Pinto, aos 89 anos. Responsável pela paróquia de Campo Grande, no Patriarcado de Lisboa, coordenou também, durante vários anos, a Pastoral da Saúde em Portugal. O coordenador nacional da Pastoral da Saúde, padre José Manuel Pereira de Almeida, considerou que Feytor Pinto "foi sempre um inovador para o seu tempo" e "rasgou horizontes", ao fazer a transformação "da pastoral do doente para a pastoral da Saúde".

A 19 do mesmo mês, desaparecia, aos 77 anos, Armanda Passos, a pintora “de sonhos acordados”. Natural do Peso da Régua, viveu e trabalhou sempre no Porto, tendo falecido na sequência de uma doença que a afectava há meses. A sua obra suscitou o interesse dos críticos da especialidade, mas também de escritores de várias sensibilidades, artistas e até historiadores. Eduardo Prado Coelho manifestou o seu fascínio pelo trabalho de Armanda Passos, pelas mulheres que surgem na sua pintura, e interrogava-se: “…De onde vêm estas mulheres? Ninguém sabe. A que tempo pertencem? Ao princípio do mundo, mas declinando ao longo dos séculos e países, num contraponto permanente entre o traço europeu e o traço muçulmano. Por vezes parecem presas de um poder obscuro, alienadas desde os séculos mais longínquos, encarceradas na obtusidade dos saberes cativos.” Ao desdobrar este tipo de questões, ensaiando hipotéticas respostas, Prado Coelho ainda escreveu: Elas também “parecem deter uma sageza insolente e alheia às razões do nosso tempo e à masculinidade que rege o funcionamento do universo”.

A 18 de novembro, morria o poeta António Osório, aos 88 anos. Nascido em Setúbal, em 1933, além de poeta foi advogado, tendo-se licenciado em 1956, na Faculdade de Direito da Universidade Clássica. Entre outros cargos na Ordem dos Advogados, foi Bastonário (1984-1986) e uma década mais tarde dirigiu a biblioteca desta instituição (1995-2002). Com a sua estreia algo tardia como poeta, em 1972, com “A Raiz Afectuosa”, iniciou uma demanda em busca da felicidade que se extrai das coisas, pequenas e concretas, dessa relação mais transitiva, na articulação de impressões breves e desarmantes, num encadeamento em que a palavra exacta renova o pacto entre a linguagem e o mundo, o que prende de novo nos versos a frescura e até o perfume do que se nos impõe como autêntico. Marcada por uma sobriedade quase ascética, e dando um grande papel à natureza e aos afectos, a sua obra significou, nos anos 70, o regresso da linguagem poética a uma depuração e a um decoro expressivo que sinalizaram o cansaço face às ousadias delirantes que haviam dominado a década anterior.

A 19 de novembro morre António Serra Lopes, um dos maiores advogados da sua geração, foi casado com a também advogada e primeira mulher bastonária da Ordem dos Advogados, Maria de Jesus Serra Lopes. Ao longo da carreira, foi também Consultor Português (investimento estrangeiro em Portugal) e advogado e director jurídico do Grupo CUF.

A 8 de dezembro, morreu José Eduardo Pinto da Costa, aos 87 anos. Era um dos mais reconhecidos médicos legistas portugueses, um homem admirado pelo seu fino humor e pela perspicácia na forma como toda a vida se deixou intrigar pela morte como balanço para admirar mais plenamente a vida. Orgulhava-se de ao longo da sua carreira ter efetuado cerca de trinta mil autópsias. Saberia que a sua lhe estava já endereçada, e terá aprendido a libertar-se de qualquer receio, usando para isso de um registo inquisitivo, deixando-se envolver pelos seus mistérios. Lidando diariamente com a morte, soube a diferença que esta faz e muitas vezes a indiferença com que parece atingir os homens, e terá repudiado um tempo em que se morre como calha.

Após dois anos e uma semana de saber que tinha leucemia, a 9 de dezembro, Luís Costa, conhecido por DJ Magazino, sucumbiu à doença. Nascido em Setúbal, em 1977, foi nessa cidade onde, aos 17 anos, começou a carreira de DJ, sem saber que viria depois a tornar-se num dos mais importantes e internacionais disc jockeys portugueses de eletrónica e um dos sócios da editora discográfica e promotora de festas Bloop Records. A 15 de dezembro morre Rogério Samora, aos 63 anos, depois de meses em coma e na sequência de uma paragem cardiorrespiratória que sofreu nas filmagens de uma telenovela. O actor que nunca deixou de sofrer a humilhação de lhe exigirem que fosse sempre menos do que podia ter sido, deixou uma impressão indelével com vários papéis no cinema e especialmente ao interpretar Tomás da Palma Bravo, na adaptação de Fernando Lopes do romance “O Delfim”, de Cardoso Pires, ao cinema.

No dia a seguir ao Natal, morreu o editor e fundador da Bedeteca de Lisboa João Paulo Cotrim. Havia sobrevividos nos últimos meses a um cancro e até, recentemente, à infecção por covid-19, tendo acabado por sucumbir a uma bactéria hospitalar. Era a alma por detrás da editora Abysmo, e, consultando o seu extensíssimo currículo, apesar de ter morrido com apenas 56 anos, parece ter vivido duas ou três vidas: foi guionista, jornalista, poeta, ficámos-lhe a dever um trabalho imenso sobre banda desenhada, trabalhou no Expresso, no Independente, na RTP, na TSF e na SIC, foi director, durante quatro edições, do Salão de Lisboa de Ilustração e Banda desenhada e responsável pelos catálogos da mostra de Ilustração Portuguesa.

É difícil percorrer uma lista de nomes como esta e não se ficar desolado. Pior ainda é o perigo de se servir uma espécie de empadão em que se fez farelo de tantas vidas, sem suster grande coisa do fôlego daqueles que nos deixaram, antes ficando presos à obscura respiração de figuras paradas. A memória exige-nos um esforço para se cultivar esse talento inconcebível dos mortos, esses lugares que faltam, os projectos gizados e que não puderam ser levados a termo, mas que respeitam por cima do ombro das ruínas destes dias, animando-nos a prosseguir com “o inexplicável ardor de quem se inicia na eternidade” (Herberto).