Nasceu a 3 de novembro de 1948, em Vila Nova de Oliveirinha, concelho de Tábua, e foi trabalhar para Lisboa com apenas 11 anos. Um primo recebeu-o no restaurante Granada, no Conde Barão. Fez a 4.ª classe na terra, antes de ir para a capital, mas depois fez um mestrado na escola da vida, tornando-se o rosto do mítico Gambrinus, onde trabalhou durante 54 anos e um mês. Dos 16 aos 70 anos assistiu a muitas transformações da sociedade portuguesa e tem episódios na memória que dariam para uma série televisiva de muitos episódios. Não fala de nomes, tirando os óbvios, além daqueles que ambos conhecíamos ou conhecemos. Assistiu a desafios de duelos entre personagens que não se podiam ver – chegaram a marcar o encontro de pancadaria para Monsanto –, viu muitos homens e mulheres traírem-se mutuamente, mas ele, José Brito Fernandes, Brito para os clientes amigos, e os seus colegas nunca denunciaram nada. “Tratávamos as pessoas sempre com a discrição exigida. ‘Como está, passou bem?”, sem nunca perguntarem se a mulher ou o marido estavam bem. Mas essas são histórias que José Brito guardará para sempre para si.
Como foi deixar os pais e ir para uma cidade grande?
Foi complicado, mas naquele tempo… Lá era difícil. Estava habituado a ajudar na agricultura, a ceifar erva para os bois, ajudar os meus pais. Somos três irmãos. Tenho um gémeo e uma irmã.
O gémeo veio consigo?
Não, só veio três anos depois. Vim para o Granada, depois fui para o Central da Ajuda.
O que fazia no Granada?
Era groom. Ia buscar o tabaco, guardava os casacos, aquelas coisas…
Como era viver aos 11 anos longe da família? Chorava muito?
Nos primeiros meses foi complicado mas vim para casa de uma tia e ela ajudou-me bastante. Foi a minha segunda mãe. Vim para cá, ficava lá em casa, comia, lavava-me a roupa… Tratava de mim como se fosse um filho mas mesmo assim era complicado porque deixei os meus pais, os meus irmãos, deixei tudo lá. Só lá voltei um ano depois.
Só os via de ano a ano?
Antigamente era muito mais complicado ir à terra. Eram horas e horas de viagem e não havia dinheiro para ir.
Lembra-se de qual foi o seu primeiro ordenado?
No meu primeiro trabalho só recebia gorjetas. Ia buscar tabaco, guardava os casacos, mudava os cinzeiros aos clientes, enchia as garrafas de vinho para o pessoal, para os empregados, lavava-as e enchia-as.
Trabalhava para um primo seu.
Sim. Depois saí dali e fui para outra casa dele na Ajuda, o Central da Ajuda. Ele tinha mais que um restaurante. Aí já ganhava acho que 400 escudos. Dois euros (risos). Era pouco. Ele também explorava ali os bares da rotunda da Encarnação [perto do Parque das Nações] e precisou de um funcionário. E lá fui eu trabalhar. Já para o balcão.
Com que idade?
14, talvez. Mas aquilo era complicado porque eu morava na Ajuda. Entretanto saí da casa da minha tia e fui para a Ajuda. Era um quartinho com três beliches. Morávamos lá três empregados. Um no rés-do-chão, outro no meio e outro em cima. Ir para a Encarnação não era fácil. Às vezes adormecia e tinha que ir de táxi. Gastava o dinheiro todo que ganhava e não chegava. Depois lá pedi ao meu primo que me transferisse outra vez para a Ajuda. Vim para a Ajuda outra vez, para o balcão e para a copa. Estive lá para aí uns meses.
Um dia adormeci e cheguei tarde. Pedi desculpa e ele disse que não havia problema nenhum. Disse que em vez de 12 horas passava a fazer 14/16 horas. Eu disse: “Está bem”. Mas havia um rapaz, meu amigo, que também trabalhou lá e que foi para Alcântara para o Sobe e Desce, e perguntou-me se eu queria ir. E eu disse: ‘Não sei, quanto é que eles pagam?’. Disse que eram 800 escudos. Disse ao meu primo: ‘Desculpe lá mas eu vou-me embora, arranjei uma casa que me paga mais dinheiro’. Ele disse que não me podia pagar mais, aquelas conversas. E fui embora e saí do quarto também.
A minha tia, que era sogra dele, disse que então que voltava a dormir lá. E lá fui eu para o Sobe e Desce ganhar 800 escudos. Esse rapaz que me arranjou o trabalho para o Sobe e Desce, o Agostinho, depois foi para o Gambrinus e perguntou se eu queria ir. Disse que havia uma vaga no balcão, ele estava nas mesas. Pagavam ainda mais dinheiro. Fui lá ver, arranjei um quarto… Isto com 16 anos. Foi em 1965. Fui lá falar com o meu patrão, o senhor Armindo, que me disse: “Se quiser vir para aqui dou-lhe 1200 escudos”. 1200 escudos com as gorjetas. Aceitei e fui. Mas lá também se fazia uma série de horas. Era duro.
Quantas horas fazia?
A seguir ao dia da folga 16 horas.
Porquê?
Por exemplo: saía às 5h da manhã e aquilo fechava às 3h30. Fazer contas, arrumar aquilo, tirar os estrados… Dava 4h30, 5h. No dia seguinte estava de folga e ao outro dia tinha que ir às 9h da manhã. Das 9h às 5h da manhã. Saía para aí umas duas horas de tarde e era assim, tinha que ser assim.
Como era trabalhar no Gambrinus com 16 anos?
Era totalmente diferente. Tínhamos que andar aprumados. De vez em quando o patrão até dava assim uns toquezinhos nos pés, nas canelas. Um dia disse-lhe: “Você nunca mais me toca”. Tinha o feitio de dar assim uns toques.
Porquê?
Qualquer coisa que estivéssemos a fazer mal… pimba. Mas ajudou-me muito. Toda esta gente me ajudou a andar para a frente. Hoje não aceitam isso, ninguém aceita ser puxado e ouvir ‘estás a fazer mal’. Fica tudo chateado. Tem que ser com uma certa diplomacia. Mas naquele tempo era assim.
O que fazia no Gambrinus nessa altura?
Era empregado de balcão. Quando chegava de manhã punha a montra do marisco, pesava a praça – eu e todos – fazia salada de frutas, aquelas bolinhas de manteiga, limpava os talheres, os pratos, arrumava a reposição, as garrafas que faltavam, era preciso conferir.
Que tipo de clientela havia nessa altura?
Já era boa, muito boa. Era luxo. O senhor Virgílio Santos, que era uma pessoa importante. O general Spínola ia lá beber Williamine geladinho, montes de gente mesmo. Nunca lá vi Salazar mas Américo Tomás foi lá na parte final. Já estava um bocado corcunda. Havia aqueles banqueiros e comerciantes, era tudo.
Nessa altura também havia uma distinção entre a barra [balcão] e as salas?
Havia porque a barra era sempre um sítio, talvez, mais popular. Aquilo acumulava-se de gente que era uma coisa maluca. À quinta era tourada, às sextas era ópera e ao sábado quase não se podia entrar ali. Era montes e montes de gente a comerem de pé até. Era gente mais popular mas de boa qualidade. Mesmo de muito boa qualidade. Filhos de alentejanos, aqueles senhores que tinham lá as herdades no Alentejo. Os filhos iam lá beber cerveja e comer sandes e pregos.
Antes do 25 de Abril já havia várias fações políticas ali dentro.
Já. Mas nunca me apercebi. Não percebia nada disso.
Mas percebia que havia, digamos, os patrões e os empregados.
Sim, isso percebia-se. Mas os filhos dos empregados, dos patrões das classes mais favorecidas… Era frequentado por uma gente espetacular. E continua a ser, creio eu. Hoje talvez seja um pouquinho diferente mas o segredo era basicamente a qualidade de serviço e a qualidade da mercadoria que se dava. Os clientes sentiam-se quase como em casa. Era um bom ambiente. E hoje acho que continua a ser. Não tenho lá ido.
Dá-se o 25 de Abril. O que muda no Gambrinus? Como foi esse dia?
Saí no dia 24 de abril às 4h da manhã, morava na rua do Quelhas, já era casado. E não dei por nada. A minha mulher trabalhava na Josefa de Óbidos, levantou-se de manhã e foi para a escola. Chegou lá e estava fechada, voltou para trás. Chegou a casa e disse-me que havia uma revolução. ‘Há uma revolução?’, perguntei. ‘Há’, disse-me. Não dei por nada, não vi nada, não sabia de nada. Meti-me num táxi e fui para o Gambrinus.
Eram para aí umas 11h e tal e estava fechado mas estava lá o pessoal dentro. O patrão, o senhor Hermínio, disse que íamos almoçar, o pessoal almoçou. Nunca mais me esqueci: fanecas fritas com feijão frade. Comemos as fanecas e ele disse que se alguém quisesse levar pão, carne ou peixe para casa, podia. Acho que ninguém levou. Saímos e aquilo continuou fechado. No dia seguinte abriu. No dia 1 de Maio fechou porque eles punham lá “1.º de Maio”, escrito a vermelho. E a gente pensava: ‘Vai haver para aqui pancadaria’. Pensava eu.
Historicamente o Gambrinus fecha a 1 de Maio.
Fechou nesse dia a primeira vez. E a partir daí fechou sempre. É o único dia que fecha. Está aberto a 24 e 25 de Dezembro. Fechou no dia 1 de Maio de 1974 e nunca mais abriu nesse dia. No dia 25 de Abril de 75 abriu. Era uma confusão que nem lhe digo nada. Houve uma manifestação na Alameda e na Almirante Reis com gente que veio do Alentejo e da província. Eles, homens, chegavam lá para comer a sandes, o prego. E o meu patrão disse: ‘Não leves o preço, leva metade do preço aos homens para não arranjar confusão’. O preço do prego era para aí quatro escudos e fizemos a dois escudos. Pediam copos de vinho. Não houve problema nenhum.
Nunca houve tensão política? A tropa entrar por ali dentro?
Não, nada. Foi lá uma vez a tropa à procura de um sujeito da PIDE e obrigou-nos a abrir o alçapão da cerveja. E eles foram lá ver, não estava lá ninguém. De vez em quando entravam mas foi só dessa vez que abriram o alçapão da cerveja. Aquilo tem uma porta de ferro.
É natural que tenham perdido muitos clientes, muitos foram para o Brasil…
Sim, muita gente. Trabalhávamos muito mal na altura. Mas houve o bom senso. O Gambrinus tinha 74 funcionários. Nunca teve um delegado sindical. Houve o bom senso dos empregados. Passou a fechar às 23h. O patrão fez uma reunião com os empregados na sala, fechou à tarde, e disse que não podiam pagar o ordenado que o “Governo” exigia, em 75, no Verão Quente. Eu e mais uns quantos até dissemos ‘não há problema nenhum.
Em vez de fecharmos às 23h, passamos a fechar à 1h ou mais tarde, mas que dê para a gente apanhar os transportes e a gente não recebe horas extraordinárias, não queremos nada’. Queríamos era que aquilo estivesse aberto. E foi assim que aconteceu. Ainda hoje é assim. Quem recebia horas eram os indivíduos da cozinha. O pessoal da sala e do balcão não recebia horas extraordinárias…
Também recebiam as gorjetas.
Exatamente. E a cozinha não recebia. Foi um exemplo, uma coisa que é pouco comum.
Os 74 concordaram.
Toda a gente concordou. Claro que foi logo estabelecido que estávamos a trabalhar, a ganhar as gorjetas e os que estavam na cozinha ganhavam horas extraordinárias a partir de x horas. Tudo bem, e aconteceu. Nunca houve quezílias nenhumas, nem de políticas nem nada disso.
Nessa altura já tinha feito a tropa.
Já, sim.
E quando vai para a tropa continua a trabalhar no Gambrinus?
Continuo.
Estava na tropa onde?
Em Leiria. Depois fui para a Póvoa de Varzim e enquanto estava lá trabalhei no casino e em A Ver-o-Mar na casa dos frangos. Quando estava aí não trabalhava no Gambrinus. Em Leiria não trabalhava em lado nenhum. Era recruta e eles não deixavam. Mas quando estava a tirar a especialidade na Póvoa, ao fim de semana e à noite ia trabalhar. Na casa dos frangos e no casino. No casino era só aos fins de semana. Depois vim aqui para os Sapadores nos caminhos de ferro e ia para o Gambrinus trabalhar. A seguir fui para Alverca do Ribatejo e aí vinha trabalhar todas as noites e aos fins de semana. O meu patrão ia-me lá levar a Alverca, lá combinei com o homem da porta de armas se me deixava entrar às 4h ou 5h da manhã.
Não era oficial.
Não, era pela porta do cavalo.
E não teve receio de ir para a guerra?
Tive, tive receio de ir para a guerra mas até aí tive sorte. Ia lá um senhor que era coronel da preparação física da região militar norte, sobrinho do diretor da censura, que era o coronel Francisco Nazareth. Ele sabia que eu ia para a tropa, eu disse-lhe o que queria ser. E ele mandou-me para Leiria, mandou-me para a Póvoa tirar o curso de cabo cozinheiro, depois mandou-me para a Força Aérea… tive sorte. O meu irmão gémeo foi para a polícia militar e também não foi mobilizado.
Entretanto começa a tirar cursos.
Sim, andei na escola hoteleira a tirar o curso de chefe de bar. Depois tirei o curso de escanção e o de chefe de mesas. Andei oito anos na escola.
Aprendeu muito?
Aprendi, aprende-se sempre. Depois tirei inglês e francês também.
Pediram no Gambrinus que aprendesse?
Pois, um indivíduo não pode estar à frente de uma secção sem ter bagagem para estar à frente dela. Já viu o que é chegar ali um indivíduo e eu não falar inglês e ele falar? O chefe não sabe e o empregado sabe? O cliente pedir uma explicação sobre um prato ou um vinho e eu não saber e o meu colega saber? Tem que se preparar para isso.
Foi o senhor Brito que teve a iniciativa de ir aprender inglês ou alguém lhe disse para ir?
Não, fui eu. Fui eu porque não me sentia bem se não estivesse preparado para ser chefe de uma seccção.
Nunca quis seguir só a profissão de escanção?
Não. É importante pela sabedoria. Um indivíduo ali, no sítio onde eu estava, também tem de saber de vinhos. Se não estivesse preparado para isso…
Mas havia restaurantes que só tinham escanção.
Mas no Gambrinus também há um na sala. E havia outro ao balcão que era eu, e que acumulava as funções de escanção e chefe de bar.
Nunca teve a tentação de ser só escanção?
Não. Fui convidado várias vezes mas nunca. E era a instabilidade que o país tinha. Um indivíduo vai ficando.
Mais tarde ganha o segundo prémio…
Ganho aqui o primeiro prémio do concurso nacional de escanções, em 81/82. Fui medalha de ouro cá e depois vou representar Portugal à Bélgica no concurso mundial. Aí ganhei a medalha de prata.
O que acha dos vinhos portugueses em relação aos de antigamente?
Agora está melhor. Mas há uma coisa que não defendo muito, que é o grau alcoólico exagerado dos vinhos. Há vinhos com 15 graus. É uma loucura. Um indivíduo bebe dois copos de vinho e fica transtornado.
Quais são os seus vinhos de eleição?
Gosto muito de vinhos do Dão, casta touriga. Se bem que o Alentejo tem vinhos excelentes e o Douro também, não podemos ignorar isso.
E não recebeu convites para ir trabalhar para outros sítios?
Recebi, vários.
De outros países?
Não. Hotéis e restaurantes de cá. Vários. Estrangeiros não. Mas acontece que havia uma instabilidade no país. Restaurantes que abriam e outros que fechavam. O hotel Alfa. Abriu, fechou e voltou a abrir. Convidaram-me para ir para lá.
Na altura havia o Avis, o Tágide, o Tavares…
Eram os restaurantes de luxo. O Gambrinus pagava bem e a horas. Pagou sempre. Mesmo na hora da crise sempre pagou. Era mais seguro estar ali do que num banco. Havia restaurantes que abriam e fechavam. O Tavares abriu e fechou. A Tágide a mesma coisa, o Avis acabou por desaparecer… E o Gambrinus manteve-se sempre.
A gente casa-se, tem filhos, tem renda de casa para pagar e está à espera de uma estabilidade para andar para a frente. Essa estabilidade o Gambrinus dá. Sempre a deu ao pessoal. Fui aliciado várias vezes, até naquele restaurante Espelho D’água em Belém. Aquilo era para mim, para um rapaz que já morreu, o Esteves, e para um senhor que é o Fernando Jorge Correia, da Primorosa de Alvalade. Ele queria muito que fôssemos abrir aquilo.
E não foram porquê?
Depois acho que aumentou a renda para o dobro e nós também tivemos medo. Íamos meter-nos ali e depois aquilo não dava. E acabámos por não ir. Mas tive pena.
Também foi convidado pelo Gigi, pelo Miguel Anadia…
Estivemos para abrir um restaurante. Eles queriam abrir um restaurante aqui nas Amoreiras e o Gigi quando estava na Flor da Várzea disse-me se eu queria ir para lá como sócio. Mas, lá está, estava cómodo no Gambrinus. E depois havia outra coisa que eram os clientes. Eu entendo que aquilo para mim era quase como uma família. Necessitei de ser operado e o médico que foi lá ao balcão é que me disse ‘vais lá que eu opero-te’. Era uma gente especial. E hoje ainda é, acho eu. Mas naquele tempo um indivíduo sentia-se em casa.
Havia uma proximidade com os clientes.
Havia mesmo, muito grande.
Teve sorte com o que o livrou da guerra, com o que o operou… Que histórias mais engraçadas tem com clientes?
Graças a Deus nunca tive grandes problemas mas, de facto, eram pessoas que a gente podia contar… tenho um médico que chorou a contar-me a vida de uma filha. Ainda está aí, é um médico de grande gabarito. E eu também chorei, os dois a falar um com o outro.
Apesar de no Gambrinus os empregados não terem muito tempo para os clientes, foi uma espécie de padre para muitos…
Fui eu e eles também. Havia uma proximidade e uma abertura franca para falarmos de tudo, problemas que tínhamos.
Mas havia pessoas que iam lá desabafar.
Sim, havia.
Das figuras todas que frequentaram o Gambrinus – já sei que serviu o Jean-Paul Sartre – que outros nomes estrangeiros se lembra?
O Olof Palme também ia lá. Ficava na sala. O dr. Mário Soares ia para as salas e a filha e o filho é que eram clientes do balcão. O príncipe do Japão também lá foi. Já nos anos 40, na Segunda Guerra Mundial, aquilo era frequentado por altas patentes do exército alemão e da espionagem SS. As altas patentes frequentavam o Gambrinus.
E também lá deviam estar os americanos.
Com certeza. Aquilo já era um local privilegiado para essa gente. O Gambrinus teve a sorte de ter uns patrões – senhor Sobral, senhor Armindo, senhor Fernando, já desapareceram os três – que eram três indivíduos que sabiam de restauração como ninguém.
Quando disse que se lembra do Jean-Paul Sartre foi alguém que lhe disse quem era?
Sim, eu não sabia.
Há pratos típicos que se tornaram clássicos. Quais são os mais emblemáticos?
Empadão de perdiz, eisbein [joelho de porco], bacalhau… isso é tudo obra do senhor Sobral, que era o mais antigo. O Gambrinus é fundado por um indivíduo chamado Schwitalla, que é alemão e que tem uma filha que casa com esse tal senhor Sobral, galego. Depois o sogro morreu e o senhor Sobral ficou com o Gambrinus mas com dificuldades financeiras, e entraram três sócios. Era o senhor Jaime, o senhor Fernando e o senhor Armindo. O senhor Jaime não trabalhava lá. Resolveram fazer obras em 64. Já era boa a casa mas começa a trabalhar naquele conceito de restaurante de luxo.
Para as pessoas que nunca foram ao Gambrinus, tinha um empregado que arrumava os carros nas traseiras…
Ainda tem.
Havia esse requinte que não havia em Lisboa.
Tem uma garagem e também tem o parque das Forças Armadas, onde era o palácio da Independência. O Gambrinus paga a esse parque para colocar os carros dos clientes.
De onde vêm as tostas com a manteiga, o pão torrado…
Isso nasce com o 25 de Abril e nasce no balcão. Havia uns clientes assíduos no balcão do Gambrinus. Umas seis ou sete pessoas que iam lá todos os dias. Começaram por pedir uma torradinha de pão de centeio com manteiga. E começa aí. Começa um, depois começa outro, depois vão para a sala e também querem e espalhou-se o pão de centeio torrado com manteiga.
Obra dos clientes.
Os clientes é que começam. A seguir ao 25 de Abril havia pouca gente e os clientes pediam a torradinha e começa a espalhar-se.
O balcão, a barra, tinha praticamente lugares fixos. O cineasta Fernando Lopes…
Balcão 11, último junto à porta de Santo Antão.
O Carlinhos Feio ficava mais junto…
Às torneiras. Deitava a mão às torneiras (risos).
O saudoso Carlinhos Feio tem os recordes todos de bebidas no Gambrinus. 16 garrafas de Quinta da Aveleda…
(Risos) Não sei se foram 16 mas ele bebia… Cinco garrafas era normal. A Quinta da Aveleda era da família dele. Naquelas noites de passagem de ano que ele estava na sala pequena, esteve do meio dia até às 3h da manhã a beber. Ele bebia, bebia, bebia… Fumava umas cigarrilhas, Robert Birds. Ia lá também um sujeito que era o Hanz, um alemão, que também bebia. Cinco garrafas de vinho como quem bebe água. Mas o Carlinhos também bebia bem.
No balcão havia mais lugares marcados?
Antes do 25 de Abril havia. O dr Jorge Monteiro e a esposa, o dr. Carlos Alberto Travassos que era da Botesga e também já faleceu, o senhor Fernando Lopes… Mas depois começou-se a acabar um bocado com isso. O que é que acontecia? O balcão estava todo reservado e havia pessoas que chegavam para o balcão e não podiam porque estava reservado. Teve que se acabar com isso. Mas durante muito tempo foi assim, todos os dias. Ninguém se podia sentar ali porque estava reservado mas depois chegou-se à conclusão que não podíamos.
Fernando Lopes teve o seu lugar até ao fim.
Esse teve. E havia pessoas até que estavam ali sentadas e, quando ele chegava, iam para outro lugar para ele se sentar ali. É verdade.
Depois do 25 de Abril e até há bem poucos anos tinham uma grande clientela do PCP.
Tinha, sim senhor. Já antes do 25 de Abril. Era o engenheiro Calhau, o senhor Abel de Castro, o Xana, era uma série deles. Ficavam ali ao pé da montra do marisco. À sexta-feira reuniam-se ali. Bebiam. Mas sempre impecáveis. Nunca arranjaram confusões com ninguém.
Bebiam mais do que comiam?
Bebiam muito vinho tinto. Comiam umas sandezinhas mas basicamente eram garrafas de vinho tinto. Até lá ter estado, muitos iam lá e bebiam tranquilamente junto à entrada que dá para as Portas de Santo Antão.
Mesmo antes do 25 de Abril nunca viu ninguém da PIDE a prendê-los?
Não. Mas soube que um que era o Xana, o dr. Sacadura, que trabalhava na Direção Geral de Turismo, foi preso pela PIDE. Estava preso quando foi o 25 de Abril. E o engenheiro Calhau também foi preso, era tenente ou capitão das Forças Armadas. Foi preso com umas armas dentro do carro aqui na Duarte Pacheco. Esse, para mim, é o indivíduo que conheço, de esquerda, com um nível… não altera o tom de voz, explica as coisas, não sei se ainda é vivo. Era uma coisa bestial, dava gosto falar com ele.
Passaram ali também grandes figuras do meio da restauração como Joaquim Machaz, Gigi…
Também. Esses iam lá muita vez.
Apesar de terem restaurantes…
Adoravam estar ali. O Joaquim Machaz era muito engraçado. Uma vez uma criança estava a chorar muito e ele disse, aos empregados, que devia ser proibido bebés frequentarem restaurantes. Nós a olhar para ele e a dizer que não podíamos fazer nada. O Gigi chegava lá à tarde e dizia: “Bells buba”. Era o whisky que bebia! Depois inventou a do ‘volareee’ quando entrava, já sabíamos que ia haver festa.
E episódios curiosos lá dentro?
Recordo-me de um indivíduo, acho que era José João Zoio, que era toureiro, de direita. E, na casa de banho, insurgiu-se lá com um de esquerda e pegaram-se lá dentro. Ainda estou mesmo a ver: o meu colega a abrir a porta da casa de banho e a agarrá-lo pela gola e a sacá-lo cá para fora. Já foi há uns anos bons.
Cenas de pancadaria?
Ali não, só coisas muito pontuais como a que contei. Dessa lembro-me. Lembro-me também de uma vez um indivíduo, eu era miúdo, me ter empurrado um dos cinzeiros que tínhamos ao balcão da Air France. Eu estava a limpar copos mas consegui apanhar o cinzeiro.
O meu patrão, o senhor Fernando, chegou lá e disse: ‘Olhe que o senhor não pode fazer o que fez’ – o cliente estava um bocado atravessado – ‘agradeço-lhe que não volte cá mais neste estado’. E o que é que ele fez? Deu uma cabeçada no meu patrão.
O meu patrão viu sangue na cara, agarrou-o, deu-lhe um soco, o gajo caiu no chão e abriu a cabeça, desmaiou. Isto já lá fora. Desapertaram-lhe os sapatos, cinto, foi para o hospital. O meu patrão foi para a esquadra e estava a ver que se o gajo morre o meu patrão estava lixado. O gajo assinou, no hospital, que não queria nada porque foi ele que provocou aquela situação. E o meu patrão ficou liberto daquilo. Cenas em que um indivíduo estraga a vida por uma coisa de nada.
Mas há mais histórias.
Lembro-me que os forcados, para evitarmos que eles se pegassem – normalmente são gente que gosta de porrada – e iam lá à quinta-feira. Por exemplo, os de Vila Franca ou da Chamusca, a gente punha um grupo num lado ao fundo do balcão e outro ao pé da porta. Ficavam separados. E lá nunca se portaram mal porque nós jogávamos com eles. O Salvação Barreto, que também era um indivíduo que arranjava confusões em todo o lado, partia aí as discotecas todas, e ia lá ao Gambrinus e nunca se portou mal.
Porquê?
Tinham um certo respeito por nós. Ele, o Lapa, o Zé Pedro Faro… tudo do grupo do Salvação Barreto. Tinham respeito. Nós também moldávamos as coisas para correrem mais ou menos. Basicamente o sítio onde se portava bem era no Gambrinus.
Trabalhou vários natais?
Todos.
24 e 25?
Sempre.
Durante 54 anos?
Durante 54 anos.
Que tipo de pessoas viam na noite de Natal?
Atenção, na véspera de Natal fechávamos às 16h. Mas havia muitas encomendas para fora: perus, lombos assados, marisco… Era um dia em que se trabalhava muito mesmo. Depois eu tinha que ir de manhã para arranjar as coisas, tinha tudo já pronto, embrulhado, para os clientes, quando lá chegassem, levarem. E ao meio dia ia fardar-me e trabalhava até às 16h. Saíamos a essa hora e às 17h, 17h30 vínhamos embora, jantar com as famílias. No dia de Natal, às 11h, lá estávamos.
Nunca passou o dia 25 com a família nestes 54 anos.
Não, nunca. Passei agora.
Porque se reformou…
(Risos)
Como foi passar o Natal em casa?
Foi bom. Quer dizer, por acaso não foi muito bom porque que passei sozinho com a minha mulher devido à pandemia.
Já passou no ano passado, ou não?
No ano passado passei bem. Eram para aí umas 18 pessoas lá em casa.
Foi estranho para si?
Foi. Um indivíduo habitua-se a trabalhar e depois estranha. Eu chorei quando saí do Gambrinus, não tenho vergonha de dizer. Chorei lá a despedir-me dos meus colegas e dos clientes. Houve clientes que foram lá jantar de propósito para se despedirem de mim.
Pouca gente sabia.
Pouca gente sabia que eu me vinha embora porque fiz questão de não divulgar muito. Não me interessava. Cada vez que falava com os clientes vinham-me as lágrimas aos olhos e não quis parecer uma Maria Madalena. Mas houve muita gente que soube e que foi lá. E telefonavam-me.
Havia muito a convivência entre ricos e pessoas menos ricas. Havia diferença de tratamentos?
Não. No Gambrinus tanto é bem tratado um cliente que come um croquete como um cliente que come caviar, lagosta e champanhe. É igual.
Quem vos incutiu esse tratamento?
Os três grandes senhores da restauração, o senhor Sobral, o senhor Fernando e o senhor Armindo.
Sempre vos disseram isso?
Sempre. Eram os nossos professores.
Quando é que deixaram de vender a metade do preço?
A metade do preço foi só no 25 de Abril de 1975. Depois disso não aconteceu mais. É evidente que se aparecesse lá alguém que víssemos que tinha um ar muito humilde, para não arranjar confusão, tínhamos liberdade para fazer isso.
Nunca teve ninguém a dizer que serviam melhor uns que outros?
Não, nunca. Tínhamos a mentalidade de que os clientes tinham que ser todos bem servidos independentemente do que desejassem comer ou do poder económico que tinham. E engana-se quem não fizer isso. O indivíduo que fizer discriminações porque alguém é rico ou menos rico, está enganado. Então vai tratar um cliente de forma diferente? Não pode ser.
Esse era também um dos segredos do Gambrinus.
Sim, era.
Assenta na qualidade dos produtos e serviço…
E no ambiente. Nunca vi, nunca me lembro de aparecer lá um indivíduo a arranjar confusões lá dentro pelo que quer que fosse.
Mas sabiam de pessoas que não gostavam de outras. Punham-nas na mesma sala?
Não, isso não. Afastavam-se, tem que ser.
Lembra-se de ódios de estimação?
Se sabíamos que fulano não gostava de beltrano tínhamos que os sentar em sítios separados. Mesmo ao balcão, se aparecesse um cliente que a gente soubesse que se incompatibilizou com outro, não o sentávamos lado a lado.
Há nomes? O Fernando Lopes dava-se bem com os colegas todos?
Dava mas às vezes, pronto, chateava-se lá com uns colegas. Procurávamos sentá-lo longe de colegas com quem não se dava muito bem.
E na política havia esse cuidado?
Também. Não posso dar nomes mas há pessoas de direita e de esquerda que procurávamos que não estivessem muito próximas.
Como geriam isso?
Sabíamos. Por exemplo, no balcão: chega um indivíduo de direita e procuramos metê-lo para um lado. Se chegasse um de esquerda, metíamo-lo no outro. Nem que se pedisse a um cliente para dar um jeitinho. Tínhamos que afastar, só revelava inteligência (risos).
Não houve casos históricos que se possam contar?
O Vasco Lourenço ia lá muita vez. Um dia houve um indivíduo que esteve lá, que era também de esquerda, mas mais à esquerda, e falaram-se. Naquele Verão Quente o rumo do país podia ter ido mais para a esquerda e Vasco Lourenço disse-lhe do balcão: ‘Com a minha concordância não vai com certeza’. E o gajo calou-se.
Em 76?
75, 76. Ia lá muito o Melo Antunes. E a gente também procurava não o pôr ao pé de indivíduos de direita. E ele também era inteligente e perguntava onde se podia sentar. Iam lá indivíduos de direita que podiam arranjar confusão. E nós procurávamos saber onde estava o indivíduo que o podia importunar.
Começou a trabalhar com 11 anos. O que acha de agora os miúdos não poderem começar a trabalhar com 16 anos?
Acho mal porque um indivíduo com 16 anos já sabe muito bem o que faz, anda para aí na galderice, nas noites… É difícil segurar um filho com 16 anos em casa. Se ele tiver trabalho, ocupa-se. Se não dá para a escola anda a aprender a vida de ‘gandim’? Não dá.
Não se arrepende de ter começado a trabalhar aos 11 anos?
Não, não senhor.
Mas as suas filhas são formadas.
São formadas e graças a Deus nunca me deram dores de cabeça. Uma é advogada em Las Vegas e a outra é advogada aqui na Abreu Advogados. A de Las Vegas já foi advogada em Macau, depois foi para Las Vegas, fez lá o curso na universidade da Califórnia para ser advogada na América.
E a noite na passagem de ano no Gambrinus?
Era muito violenta também. Muito trabalho mesmo. Aquilo tem dois tipos de reservas. Tem uma das 19h às 22h e outra das 22h às 2h da manhã. Antigamente fechava às 3h30, agora acho que fecha um pouco mais cedo. Menos ao sábado e ao domingo. Na altura de acabarem as pessoas das 22h e chegarem as próximas, aquilo era uma confusão, era muita gente lá dentro.
Mas não havia música.
Não. À meia-noite dava-se umas badaladas no sino, desligava-se o quadro da luz, havia velas nas mesas, passas para os clientes comerem nos pacotinhos. Há também espumante e champanhe.
Tem ideia qual foi a maior conta que alguém gastou no Gambrinus?
A maior conta que alguém gastou no Gambrinus foi no campeonato da Europa, uns espanhóis no balcão. Na sala não sei. Mas no balcão já nem sei se era em euros se escudos.
2004 era euros.
Uns oito espanhóis gastaram sete mil euros, mais ou menos. Penso que foi à volta disso, mas não tenho a certeza. Isto ao balcão, na sala não sei.
O que consumiram?
Ui, comeram marisco e vinhos, ostras, presunto, sei lá… E devem ter bebido vinhos caros. Mas foi uma conta astronómica, foi.
Está reformado há quase dois anos. Porquê que nunca mais quis voltar ao Gambrinus?
Sentia demasiado o Gambrinus. E quando saí digo ‘venho aqui e vou ver coisas que se calhar não gosto ou gosto, não sei’. Penso que se lá for não sou feliz como era quando lá estive.
Tem a ver com a mudança da farda?
Não sei se têm avental de peito, o nosso era. É também isso.
Acha que o Gambrinus se modernizou demais?
Acho que sim. Nas indumentárias do pessoal da barra, acho que sim.
O Gambrinus ao longo destes anos tem tentado aproximar-se dos outros?
Sim, acho que sim. Há coisas que sim. Mas eu não sou ninguém, não estava lá para criticar, estava lá para trabalhar e para servir os clientes como deve ser, o melhor que sabia e podia. Mas havia coisas com as quais já discordava. Mas eu não estava lá para discordar.
Como por exemplo?
Essa das fardas é uma delas. Andar ali com o avental, aquilo provoca um calor, um desconforto. São modernices. Penso que aquela farda que tínhamos de casaco e gravata era mais apropriada à casa.
Um clássico.
Um clássico. Agora põem ali um indivíduo com uma gravata e um avental, anda ali parece uma barra espanhola. Não tem nada a ver com barra espanhola muito embora sirva muitas coisas. Tem alguma aproximação mas não é aquelas barras que eles têm em Espanha. Há casas aí muito mais modestas com aquela indumentária, com aquele avental. Se for ali ao Casulo, tem lá um avental igual ao nosso.
Acha que o Gambrinus devia ser um clássico? É isso que as pessoas querem do Gambrinus?
Na minha opinião, sim. Os outros há em todo o lado. O Gambrinus prima pela mercadoria boa, serviço bom mas porque tem excelentes clientes. Se não tivesse… O êxito daquilo é ter uma clientela única.
Há coisas que são a cara do Gambrinus. Por exemplo, o crepe Suzette.
Isso é uma coisa que devem manter.
O que é?
É um soufflé quente, depois flamejado com um pouco de conhaque que provoca uma chama.
Feito à frente do cliente.
Feito à frente do cliente, na mesa. Depois leva manteiga, sumo de laranja, raspa de laranja, vários licores, nomeadamente Drambuie, Grand Marnier e Cointreau, leva a folha de crepe, açúcar, aquilo está ali a flamejar e fica uma espécie de uma sobremesa com um xarope porque o açúcar e os licores e o fogo vai condensando até ficar um molho grosso. Uma sobremesa quente mas de luxo.
Não se lembra quem a inventou ali no Gambrinus?
Não, isso é uma invenção de França de uma senhora que fez os crepes para uma rapariga humilde chamada Suzette e foi importado para cá. É uma sobremesa muito rica, muito boa.
A forma como vocês se chamavam uns aos outros, o célebre assobio…
Não é assobio, é um beijinho.
Exatamente. Sempre ouvi que teria sido o Manecas Mocelek a trazer cá para Portugal essa moda.
Não. Esse também lá ia mas não. É uma forma mais polida de chamar o colega ao lado. Assobiar é mais grosseiro. Quando fui para o Gambrinus já existia e já existia no Embaixador… Por onde eles andaram, os tais profissionais patrões, já esse chamamento era feito por eles assim. E trouxeram para ali.
Nunca nenhum cliente fez nenhum reparo?
Já (risos). Faziam um bocado de chacota com a gente. ‘Então estão a mandar uns beijinhos uns aos outros?’ (risos)
Imagine que está a fazer o filme da sua vida no Gambrinus. Que imagens faltam nesta conversa que tivemos aqui? O Gambrinus é uma casa onde estive 54 anos e um mês e até sonho com aquilo às vezes.
Sonha como?
Sonho que andava a trabalhar, sonho com os meus patrões às vezes a falar com eles. Não é todos os dias mas sonho. Gostava que o Gambrinus nunca descambasse daquilo que tem sido até hoje.
Mais histórias.
Nós somos como os padres, há muita coisa que sabemos mas não divulgamos, tal como os padres. Há coisas que sabemos mas não podemos divulgar, nem nomes nem nada disso. Ia lá um advogado que gastava muito dinheiro. E ia lá o filho, que também era advogado, mas era estagiário e deixava as contas para pagar. Estava um mês, dois, três… E dizíamos ao pai e o pai dizia: ‘Deixe estar que eu pago mas não lhe diga que paguei’. E pagava. Claro que depois quando o rapaz queria pagar tínhamos que dizer que o pai já tinha pago mas ele não queria talvez que o pai soubesse.
Alguém tinha que pagar a conta.
Mas ele depois queria pagar, mas quando a ia pagar, já o pai tinha pago porque nós dizíamos ao pai quando demorava muito tempo. E havia casos de pessoas que não tinham dinheiro naquele momento e dávamos-lhe um vale. Mas nunca fui enganado.
Um vale?
Dinheiro. Por exemplo, um rapaz que tinha o pai no Alentejo e estava a estudar em Lisboa. Acaba-se o dinheiro. Chegava ao Gambrinus e dizia ‘senhor Brito, preciso de um vale, empreste-me aí 100 ou 200’. Emprestava, ele levava e depois quando o pai mandava a mesada ele ia lá pagar.
Vocês é que emprestavam o dinheiro.
É verdade. Montes de casos desses. Estas histórias criam laços, os indivíduos sentem-se quase como família. E pessoas que por qualquer motivo estavam aflitas, iam lá e nós resolvíamos. Só se de todo não pudéssemos.
Há a célebre história do homem que morre a comer um prego.
Isso foi comigo. O indivíduo chegou lá, ele trabalhava na ginjinha ali ao lado. Era o senhor Manuel, uma pessoa forte. Chegou lá e disse-me: ‘Oh Brito, arranja-me aí um prego mas não quero um prego do lombo, quero do pojadouro’. E eu cheguei à cozinha e disse ao João. Ele arranjou o prego, veio o prego, começa a comer e aquilo é rijo.
O homem, talvez para não mandar o prego para trás, penso eu, começou a comer o prego, começa a engolir e engasga-se. Um amigo dele dá-lhe uma palmada nas costas mas não resolve. Bebeu um bocado de água e deitou a água pelo nariz, acho que foi pior. Vieram os bombeiros mas ele era muito gordo, não resultou.
Foi dos momentos mais trágicos.
Foi dois minutos. Pumba para o chão. Veio o INEM mas já não valeu de nada.
Foi a única pessoa que viu morrer ali dentro.
Foi, foi.
Viu alguém magoar-se?
Vi um indivíduo cair. Estava com os copos, caiu do banco para trás e bateu com a cabeça no chão. O homem bem gritava ‘ui’. Mas não ficou mal.
Havia clientes que chegavam a entrar de cadeira de rodas, saíam e deixavam-na lá. Como faziam nessas situações?
Sim, era uma figura que conhecíamos muito bem. Na fase final da vida chegava lá de cadeira de rodas, mas depois tínhamos de o levar ao táxi ao colo.
O Miguel Esteves Cardoso fez-lhe um grande elogio público.
Era um bom cliente. Fiz o casamento dele lá em baixo no Palácio da Cruz Vermelha. Não lhe levei nada por isso, era o que faltava. Ele depois divorciou-se da senhora Mirella. Ele era um grande cliente.
Como aprendeu a tratar do marisco e do resto?
Fui ensinado pelos meus patrões. E tive um grande professor, o senhor Domingos, que era galego e já faleceu, que foi também a pessoa que mais me ajudou no Gambrinus além de todos os empregados. Às vezes eu estava aborrecido com alguma coisa e ele dizia: ‘Ó Zezinho, deixa lá isso pá, partir uma perna é bem pior’. Ele tinha sempre uma palavra de conforto e ensinava as pessoas a trabalhar. Claro que quando fui para lá pouco sabia daquilo. E ele, de facto, ensinou-me. O marisco tem que ser muito bem tratado porque se não for… bom dia.
O que significa ser muito bem tratado?
Por exemplo: há lagostins. Tem que os escolher, saber os que deve cozer primeiro. Com as lagostas e a santola a mesma coisa. Os que estão no aquário têm que ser vigiados todos os dias.
Como?
Temos que ir lá ver como estão, se estão bem vivos, se já estão um pouco abananados. Se estiverem têm que se cozer, se não depois ficam moídos e estragam-se. Os lagostins picam-se uns aos outros, embora estejam atados. Com as lagostas a mesma coisa. E com as santolas. É por isso que têm os elásticos, se não mordem-se uns aos outros. E se dá uma picadela noutro sítio qualquer, morrem. E se não lhes fizerem isso, se não forem vigiados, corre-se o risco de ficarem todos moídos.
Podia ter-se reformado aos 65 anos mas não quis. Porquê aos 70?
Eles puseram alguém a gerir as salas, um dos patrões foi embora. E eu, já com 70 anos, disse que podia ficar mais um ano se quisessem. Disseram que não era necessário porque estava um rapaz para entrar para o meu lugar. E vim embora, fui para a terra.
Voltou. Não se deu lá bem?
Vou lá e venho. Vou para lá para a semana. Faço vinho, azeite, semeio batatas.
Um regresso às origens.
É um regresso às origens, ando lá distraído, venho cá todos os meses, tenho uma casinha em Sintra. Venho e vou todos os meses.