Uma multidão furiosa, ostentando panos e bandeiras cor de açafrão, símbolo do nacionalismo hindu, queimou efígies do Pai Natal, entre gritos de “parem a conversão” ou “morte à Igreja”, agitando bastões à porta da sede da paróquia de Varanasi, no estado indiano de Uttar Pradesh.
Não foi um caso isolado. Este foi um Natal de terror para os cristãos indianos, que compõem cerca de 2% da população. Sofreram ameaças, missas interrompidas, viram uma estátua em tamanho real de Jesus ser destruída, numa onda de ataques por grupos nacionalistas hindus, muito próximos do Partido do Povo Indiano (BJP, em hindi), do primeiro-ministro Narendra Modi. O Governo ainda aproveitou para bloquear fundos das Missionárias da Caridade, a organização fundada por Madre Teresa de Calcutá, avançou a Reuters.
“O Pai Natal não chega trazendo consigo quaisquer prendas, o seu único objetivo é converter hindus ao cristianismo”, acusou Ajju Chauchan, líder da juventude da Vishva Hindu Parishad (VHP), uma organização próxima das Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), uma milícia nacionalista hindu, onde Modi começou a sua carreira política.
“Não vai mais funcionar. Não será permitido que seja bem sucedida qualquer tentativa de conversão. Se não pararem com isto, então haverá agitação nas escolas missionárias”, ameaçou Chauchan, falando com o India Today enquanto queimava Pais Natais em Agra.
O pretexto usado nos ataques contra cristãos é semelhante ao utilizado contra muçulmanos, nomeadamente a lei contra a conversão forçada, aprovada o ano passado em Uttar Pradesh, que vários outros estados governados pelo BJP querem imitar, e que pune este crime com até dez anos de prisão.
Aliás, Chauchan já fizera manchetes na imprensa indiana, como instigador de campanhas contra a “jihad do amor”, uma teoria da conspiração que alega que muçulmanos tentam converter raparigas hindus casando com elas.
Na prática, casais inter-religiosos têm sido perseguidos e separados, frequentemente com auxílio da polícia, tendo havido pelo menos 189 condenações ao abrigo das leis contra a conversão, segundo o Print. Em seguida, a rapariga é casada à força com um hindu, numa campanha que Chauchan apelidou como “salve uma filha, traga para casa uma nora”.
Violência patrocinada pelo Estado “As pessoas ficam assustadas ao ver este género de comportamento”, lamentou Anoop Shramik, que filmou a queima de efígies do Pai Natal em Varanasi. “Isto ficou pior depois da lei anti-conversão ser aprovada”, considerou este ativista pelos direitos dos dalit, a casta dos “intocáveis”, que muitas vezes também são alvo da violência de turbas nacionalistas hindus, em declarações ao Wire.
“Isto nem sequer é uma Igreja, isto é um ashram, pessoas de todas as fés, castas e credos vêm aqui para rezar e encontrar paz”, acrescentou ao site indiano o padre Anand, da paróquia de Varanasi, o círculo eleitoral do primeiro-ministro.
Trata-se da mais santa cidade para os hindus, que fiéis acreditam ter sido o lar do deus Xiva, mas que em tempos foi um ponto de encontro de religiosos. Muitos peregrinos que vêm morrer em Varanasi, nas margens do rio Ganges, conscientes que assim escaparão do ciclo da reincarnação mais cedo, não dispensam passar pelo enorme templo hindu de Kashi Vishwanath, construído por um imperador muçulmano, Akbar o Grande, na mesma cidade onde Sidarta Gautama, o Buda, deu o seu primeiro sermão.
A sensação de coexistência pacífica há muito que desapareceu, notou Anand, ainda em choque com os ataques deste Natal. “Estas pessoas têm impunidade, e isso cria tensão. A situação em Uttar Pradesh é pior que em qualquer outro estado”, reforçou o padre. A escalada da violência tem sido associada à chegada ao executivo estadual de Yogi Adityanath, um monge hindu, considerado dos mais extremistas dirigentes do BJP, que desde 2017 governa um território com 200 milhões de habitantes.
“Todos os domingos são dias de terror e trauma para os cristãos, sobretudo os que pertencem a igrejas pequenas”, desabafou Anand, relatando que, quando há ataques contra minorias religiosas, os autos policiais acabam por ser contra as vítimas, por suposta conversão forçada. “A polícia está ao lado dos agressores. É violência patrocinada indiretamente pelo Estado”, denunciou o sacerdote cristão.
Ódio, pobreza, religião Não é só em Uttar Pradesh que minorias religiosas sentem a mão pesada das autoridades. Em Karnataka, um dos poucos bastiões do BJP no sul da Índia, desde outubro que foi anunciado a preparação de uma lei contra a conversão religiosa forçada, abrindo caminho a que se possa recusar subsídios a quem mudar de religião, exigindo que convertidos notifiquem as autoridades dois meses antes, de modo a que haja uma investigação.
Logo nesse mês, o pastor Somu Avaradhi deu com a sua igreja ocupada por uma multidão, a cantar hinos hindus e a insultá-lo. Quando chamou a polícia, a turba gritou aos agentes que Avaradhi tinha tentado converter um hindu, contou o próprio à BBC. Acabou detido durante 12 dias, sob acusação de ferir sentimentos religiosos, saindo sob fiança.
É a tal sensação de impunidade, num país onde os ataques contra cristãos estão em crescimento desde que o partido de Modi chegou ao Governo, em 2014. Este aumento chegou a ser de 60% só entre 2016 e 2019, segundo um relatório da Persecution Relief.
Semanas depois à invasão da igreja de Avaradhi, membros de grupos nacionalistas hindus saíram à rua na cidade de Kolar para queimar bíblias. “A conversão religiosa não é boa para a sociedade”, justificou o chefe de executivo Karnataka, Basavaraj Bommai, à NDTV. “Os pobres e vulneráveis não devem cair nisso”, acrescentou, numa aparente referência à tendência histórica dos intocáveis para se converter a outras religiões, para escapar à rígida hierarquia da sociedade hindu.
É uma lógica que explica parte do ódio que os nacionalistas hindus nutrem há muito pelas Missionárias da Caridade, da Madre Teresa de Calcutá, fundada em 1950, que gerem cozinhas comunitárias, escolas, colónias para leprosos e orfanatos. Este Natal, o Governo de Modi ofereceu à sua base mais extremista o que esta desejava, não renovando a permissão para que as freiras pudessem receber fundos do estrangeiro.
“Os seus 22 mil utentes e empregados foram deixados sem alimentos nem medicamentos”, alertou no Twitter Mamata Banerjee, feroz crítica de Modi e chefe do executivo de Bengala Ocidental, a sede da Missionárias da Caridade na Índia, denunciando que o Governo indiano chegou a congelar as contas das freiras. O vigário-geral da Arquidiocese de Calcutá, Dominic Gomes, juntou-se ao coro de críticas contra esta “cruel prenda de Natal para os mais pobres entre os pobres”.