Não sou daqui…


Nunca me consegui libertar deste sentimento, talvez estúpido, de que quem nasce numa cidade grande nunca poderá ir à terra


Por Paulo Romão, designer gráfico

Há muitos anos, quando as pernas ainda tinham força suficiente para me levar bem longe na minha bicicleta, combinei um passeio com uns amigos. Fomos longe. A Vinhais. Perto de Bragança e demasiado longe do Porto, de onde partimos. Saímos de madrugada e, sem avaliar bem o desafio que tínhamos pela frente, deparamo-nos com a impossibilidade de chegar ao destino ainda de dia. Começava a anoitecer e estávamos um pouco perdidos pelas serranias transmontanas, em época pré-GPS, dependentes apenas do mapa e da nossa (des)orientação.

Foi nessa altura que avistamos ao longe um homem que caminhava ao longo da estrada, deserta, carregando as suas ferramentas agrícolas. Aproximamo-nos dele e depois de umas bem educadas “boas tardes”, fizemos-lhe a pergunta mais estúpida possível.

– O senhor é daqui?

Pois de onde havia o senhor de ser, caminhando ao anoitecer numa estrada deserta, no meio de nenhures! Obtivemos uma resposta inesperada:

– Não, rapazes. Não sou daqui.

E apontando para uma casinha lá mais ao fundo, numa encosta da serra, disse:

– Sou dali.

Muitas vezes recordo este momento. Nessas alturas penso que gostaria de ter um sítio que me

permitisse dizer que sou dali. Não que não goste de ser daqui. Adoro ser daqui. Do Porto. Um dos melhores sítios do mundo para se viver. Mas não consigo deixar de sentir falta de ter uma outra “terra”. Terra no sentido de terra dos avós, ou terra dos pais. Terra onde se vai nas férias, passar o Natal e a Páscoa, ou buscar azeite e fruta a saber a fruta. Terra que nos dê acesso a outras histórias, de outros tempos e de outras gentes, contadas na primeira pessoa. Terra que nos permita viver a outro ritmo, nem que seja só por alguns dias. Com tempo e vontade de ouvir os seus silêncios e de sentir os seus aromas… a terra.

Quando estava na faculdade ficava cheio de inveja dos meus colegas que iam à “terra” nos fins de semana, ou nas férias. Que traziam as coisas, os cheiros e as histórias lá da terra. Falei algumas vezes com eles acerca disso. Alguns não compreendiam o meu sentimento. Porque para eles o sentimento dominante era outro. Era a saudade de estarem longe da terra, da família. Percebia-os bem. Mas nunca me consegui libertar deste sentimento, talvez estúpido, de que quem nasce numa cidade grande nunca poderá ir à “terra”.

Claro que podemos ir a muitas terras bonitas, que o mundo é muito grande. Mas não podemos ir à “nossa terra”.

Diziam-me, então, que a minha terra era esta cidade. E era. E é. E eu amo-a. Por ela e por quem cá vive comigo e partilha a minha vida. Mas se alguém me perguntar, na minha cidade… você é daqui? Nunca vou poder dizer, não, não sou daqui… sou dali.

E isso não é mau. É muito bom. Mas é um bocadinho, só um bocadinho… triste.

Não sou daqui…


Nunca me consegui libertar deste sentimento, talvez estúpido, de que quem nasce numa cidade grande nunca poderá ir à terra


Por Paulo Romão, designer gráfico

Há muitos anos, quando as pernas ainda tinham força suficiente para me levar bem longe na minha bicicleta, combinei um passeio com uns amigos. Fomos longe. A Vinhais. Perto de Bragança e demasiado longe do Porto, de onde partimos. Saímos de madrugada e, sem avaliar bem o desafio que tínhamos pela frente, deparamo-nos com a impossibilidade de chegar ao destino ainda de dia. Começava a anoitecer e estávamos um pouco perdidos pelas serranias transmontanas, em época pré-GPS, dependentes apenas do mapa e da nossa (des)orientação.

Foi nessa altura que avistamos ao longe um homem que caminhava ao longo da estrada, deserta, carregando as suas ferramentas agrícolas. Aproximamo-nos dele e depois de umas bem educadas “boas tardes”, fizemos-lhe a pergunta mais estúpida possível.

– O senhor é daqui?

Pois de onde havia o senhor de ser, caminhando ao anoitecer numa estrada deserta, no meio de nenhures! Obtivemos uma resposta inesperada:

– Não, rapazes. Não sou daqui.

E apontando para uma casinha lá mais ao fundo, numa encosta da serra, disse:

– Sou dali.

Muitas vezes recordo este momento. Nessas alturas penso que gostaria de ter um sítio que me

permitisse dizer que sou dali. Não que não goste de ser daqui. Adoro ser daqui. Do Porto. Um dos melhores sítios do mundo para se viver. Mas não consigo deixar de sentir falta de ter uma outra “terra”. Terra no sentido de terra dos avós, ou terra dos pais. Terra onde se vai nas férias, passar o Natal e a Páscoa, ou buscar azeite e fruta a saber a fruta. Terra que nos dê acesso a outras histórias, de outros tempos e de outras gentes, contadas na primeira pessoa. Terra que nos permita viver a outro ritmo, nem que seja só por alguns dias. Com tempo e vontade de ouvir os seus silêncios e de sentir os seus aromas… a terra.

Quando estava na faculdade ficava cheio de inveja dos meus colegas que iam à “terra” nos fins de semana, ou nas férias. Que traziam as coisas, os cheiros e as histórias lá da terra. Falei algumas vezes com eles acerca disso. Alguns não compreendiam o meu sentimento. Porque para eles o sentimento dominante era outro. Era a saudade de estarem longe da terra, da família. Percebia-os bem. Mas nunca me consegui libertar deste sentimento, talvez estúpido, de que quem nasce numa cidade grande nunca poderá ir à “terra”.

Claro que podemos ir a muitas terras bonitas, que o mundo é muito grande. Mas não podemos ir à “nossa terra”.

Diziam-me, então, que a minha terra era esta cidade. E era. E é. E eu amo-a. Por ela e por quem cá vive comigo e partilha a minha vida. Mas se alguém me perguntar, na minha cidade… você é daqui? Nunca vou poder dizer, não, não sou daqui… sou dali.

E isso não é mau. É muito bom. Mas é um bocadinho, só um bocadinho… triste.