Os megaprocessos e a dificuldade de ter sobre eles uma leitura concordante: riscos de legitimação


A experiência pessoal permitiu-me refletir sobre a maneira – positiva e negativa – com que magistrados, advogados, políticos, comentadores, jornalistas e a opinião pública em geral, olham para os processos criminais mais destacados


Trabalho numa agência europeia que, grosso modo, existe para facilitar a cooperação judicial internacional em matéria penal e para ajudar a coordenar as investigações criminais coincidentes, ou conexas, que se desenvolvem em vários países simultaneamente.

O facto de hoje a minha função consistir, no essencial, na execução de peças autónomas, mas necessárias à concretização de um objeto mais amplo, como é o corpo de uma investigação criminal a realizar fora do meu alcance direto, pois a cargo de uma outra autoridade nacional ou estrangeira, fez-me refletir melhor sobre o olhar que todos – os processualmente envolvidos e os observadores externos – têm sobre a atividade judiciária penal.

Ao executar essas destacadas, mas relevantes, peças, procuro privilegiar, como é devido, a sua conformação com o todo em que se devem encaixar, concentrando-me, no entanto, sobretudo, em que elas resultem, por si próprias, adequadas ao fim imediato a que se destinam.

O objetivo do meu trabalho consuma-se, pois, na realização de cada uma delas, não dependendo de mim as leituras jurídicas, ou outras, que, depois, quando encaixadas no processo, tais peças poderão admitir a final.

Mais distante, portanto, uma preocupação demasiado prospetiva relativamente ao uso e ao destino final que lhes dará quem mas encomendou.

O meu trabalho está, assim, objetivamente, bem delimitado.

E, no entanto, habituado como estava anteriormente a procurar controlar o destino final dos processos em que intervinha, não posso, ainda assim, deixar de olhar apreciativamente para o que julgo poder vir a ser o corpo e a alma do processo que, com a peça que produzi, irá ser, depois, desenvolvido, completado e concluído por outros.

Tal olhar, meio interno, meio externo, leva-me, inevitavelmente, a fazer juízos sobre o caso que, não raro – e a experiência ajuda bastante a limitar o alcance de tais congeminações –, estão aquém, ou além, dos propósitos de quem o lidera verdadeiramente.

Essa experiência pessoal permitiu-me, pois, refletir sobre a maneira – positiva e negativa – como magistrados, advogados, políticos, comentadores, jornalistas e a opinião pública em geral, olham, presentemente, para os processos criminais mais em evidência, mesmo, ou sobretudo, quando neles não intervêm diretamente.

Hoje-em-dia, são muitos e diversificados, de facto, os olhares que incidem sobre o andamento de tais processos, designadamente sobre os que, por qualquer razão, interessam, não apenas aos que neles estão diretamente envolvidos, mas afetam, também, a toda a comunidade.

Ora, tais olhares de fora – fatalmente distintos dos daqueles que neles participam – condicionam, naturalmente, também, os dos que estão no processo e podem, eventualmente, por isso, desvirtuar a projeção que estes fazem dos seus objetivos e, mesmo, influir no sentido exato das operações e dos resultados que lhes devem dar corpo.

Essa é uma consequência direta e inevitável da atual mediatização e publicitação dos casos e do incremento do protagonismo, querido ou consentido, dos que neles intervêm em qualquer posição processual.

Por tal razão – mais ou menos, como na física quântica – muitos de tais casos veem modificados os seus contornos aparentes, quando não, por raro que seja, a sua substância essencial.

E essa mudança permite, depois, novas e ainda mais diversas grelhas de leitura e compreensão: de um objeto inicialmente jurídico, um processo pode passar a ser lido, sobretudo, como um objeto basicamente político.

Sendo o mesmo objeto, passou a ser também um outro e, nessa perspetiva, muda, também, o seu sentido último, ou o sentido que alguns dos seus leitores mais alheados, ou menos profissionais, lhe atribuem.

Quanto maior e mais complexo for, de resto, o objeto do processo, mais e maiores essas modificações – tanto as dos olhares, como, consequentemente, as que resultam na sua própria substância – ocorrerão.

Isso sucede, especialmente, nos processos que se iniciam sem que haja uma delimitação exata do seu objeto e que tendem, por isso, a procurar encontrar uma explicação mais abrangente para os comportamentos dos investigados, indagação que transcende, assim, o quadro explícito dos factos a que os investigadores conseguiam aceder desde o início.

Essa mudança, pelo menos, da fisionomia externa dos processos sucede, quase sempre, à revelia da vontade consciente dos que neles trabalham, mas, nem por isso, ela deixa de ser relevante e de produzir efeitos, mesmo que não desejados.

A complexidade do sistema político-económico em que vivemos – em que ressalta a realização de fins públicos, através da concomitante e, por vezes, contraditória concretização de interesses privados – ajuda muito, também, a que isso ocorra.

Daí, aliás, a mais recente tentação dos investigadores de procurar em tais processos uma linha de coerência lógica e cabal para os comportamentos e os factos a investigar.

Independentemente da racionalidade de algumas doutrinas processuais penais que advogam o contrário, é, todavia, mais fácil e, quase sempre, mais proveitoso, trabalhar na construção de peças simples cujos contornos possam ser abarcados, mais objetivamente, tanto pelos que conduzem o processo nas suas diversas fases, como por aqueles que, de fora, o observam com interesse cidadão.

Mesmo que saibamos que os olhares de uns e de outros nunca coincidirão totalmente, é mais provável, nestes casos, que eles se aproximem, permitindo, deste modo, uma compreensão e leitura internas e externas mais concordantes dos processos.

Tal concordância de leituras dará, forçosamente, maior legitimidade à ação dos que intervieram na sua delimitação, consecução e decisão.

Sem cair em simplismos ingénuos, vencer a tentação de olhar para o objeto e objetivos do processo, para além dos que eles, desde logo, nos dão a ver, parece ser, por isso, uma aprendizagem a fazer de novo.  

  

 

Os megaprocessos e a dificuldade de ter sobre eles uma leitura concordante: riscos de legitimação


A experiência pessoal permitiu-me refletir sobre a maneira – positiva e negativa – com que magistrados, advogados, políticos, comentadores, jornalistas e a opinião pública em geral, olham para os processos criminais mais destacados


Trabalho numa agência europeia que, grosso modo, existe para facilitar a cooperação judicial internacional em matéria penal e para ajudar a coordenar as investigações criminais coincidentes, ou conexas, que se desenvolvem em vários países simultaneamente.

O facto de hoje a minha função consistir, no essencial, na execução de peças autónomas, mas necessárias à concretização de um objeto mais amplo, como é o corpo de uma investigação criminal a realizar fora do meu alcance direto, pois a cargo de uma outra autoridade nacional ou estrangeira, fez-me refletir melhor sobre o olhar que todos – os processualmente envolvidos e os observadores externos – têm sobre a atividade judiciária penal.

Ao executar essas destacadas, mas relevantes, peças, procuro privilegiar, como é devido, a sua conformação com o todo em que se devem encaixar, concentrando-me, no entanto, sobretudo, em que elas resultem, por si próprias, adequadas ao fim imediato a que se destinam.

O objetivo do meu trabalho consuma-se, pois, na realização de cada uma delas, não dependendo de mim as leituras jurídicas, ou outras, que, depois, quando encaixadas no processo, tais peças poderão admitir a final.

Mais distante, portanto, uma preocupação demasiado prospetiva relativamente ao uso e ao destino final que lhes dará quem mas encomendou.

O meu trabalho está, assim, objetivamente, bem delimitado.

E, no entanto, habituado como estava anteriormente a procurar controlar o destino final dos processos em que intervinha, não posso, ainda assim, deixar de olhar apreciativamente para o que julgo poder vir a ser o corpo e a alma do processo que, com a peça que produzi, irá ser, depois, desenvolvido, completado e concluído por outros.

Tal olhar, meio interno, meio externo, leva-me, inevitavelmente, a fazer juízos sobre o caso que, não raro – e a experiência ajuda bastante a limitar o alcance de tais congeminações –, estão aquém, ou além, dos propósitos de quem o lidera verdadeiramente.

Essa experiência pessoal permitiu-me, pois, refletir sobre a maneira – positiva e negativa – como magistrados, advogados, políticos, comentadores, jornalistas e a opinião pública em geral, olham, presentemente, para os processos criminais mais em evidência, mesmo, ou sobretudo, quando neles não intervêm diretamente.

Hoje-em-dia, são muitos e diversificados, de facto, os olhares que incidem sobre o andamento de tais processos, designadamente sobre os que, por qualquer razão, interessam, não apenas aos que neles estão diretamente envolvidos, mas afetam, também, a toda a comunidade.

Ora, tais olhares de fora – fatalmente distintos dos daqueles que neles participam – condicionam, naturalmente, também, os dos que estão no processo e podem, eventualmente, por isso, desvirtuar a projeção que estes fazem dos seus objetivos e, mesmo, influir no sentido exato das operações e dos resultados que lhes devem dar corpo.

Essa é uma consequência direta e inevitável da atual mediatização e publicitação dos casos e do incremento do protagonismo, querido ou consentido, dos que neles intervêm em qualquer posição processual.

Por tal razão – mais ou menos, como na física quântica – muitos de tais casos veem modificados os seus contornos aparentes, quando não, por raro que seja, a sua substância essencial.

E essa mudança permite, depois, novas e ainda mais diversas grelhas de leitura e compreensão: de um objeto inicialmente jurídico, um processo pode passar a ser lido, sobretudo, como um objeto basicamente político.

Sendo o mesmo objeto, passou a ser também um outro e, nessa perspetiva, muda, também, o seu sentido último, ou o sentido que alguns dos seus leitores mais alheados, ou menos profissionais, lhe atribuem.

Quanto maior e mais complexo for, de resto, o objeto do processo, mais e maiores essas modificações – tanto as dos olhares, como, consequentemente, as que resultam na sua própria substância – ocorrerão.

Isso sucede, especialmente, nos processos que se iniciam sem que haja uma delimitação exata do seu objeto e que tendem, por isso, a procurar encontrar uma explicação mais abrangente para os comportamentos dos investigados, indagação que transcende, assim, o quadro explícito dos factos a que os investigadores conseguiam aceder desde o início.

Essa mudança, pelo menos, da fisionomia externa dos processos sucede, quase sempre, à revelia da vontade consciente dos que neles trabalham, mas, nem por isso, ela deixa de ser relevante e de produzir efeitos, mesmo que não desejados.

A complexidade do sistema político-económico em que vivemos – em que ressalta a realização de fins públicos, através da concomitante e, por vezes, contraditória concretização de interesses privados – ajuda muito, também, a que isso ocorra.

Daí, aliás, a mais recente tentação dos investigadores de procurar em tais processos uma linha de coerência lógica e cabal para os comportamentos e os factos a investigar.

Independentemente da racionalidade de algumas doutrinas processuais penais que advogam o contrário, é, todavia, mais fácil e, quase sempre, mais proveitoso, trabalhar na construção de peças simples cujos contornos possam ser abarcados, mais objetivamente, tanto pelos que conduzem o processo nas suas diversas fases, como por aqueles que, de fora, o observam com interesse cidadão.

Mesmo que saibamos que os olhares de uns e de outros nunca coincidirão totalmente, é mais provável, nestes casos, que eles se aproximem, permitindo, deste modo, uma compreensão e leitura internas e externas mais concordantes dos processos.

Tal concordância de leituras dará, forçosamente, maior legitimidade à ação dos que intervieram na sua delimitação, consecução e decisão.

Sem cair em simplismos ingénuos, vencer a tentação de olhar para o objeto e objetivos do processo, para além dos que eles, desde logo, nos dão a ver, parece ser, por isso, uma aprendizagem a fazer de novo.