Joan Didion. O sentido da vida é uma questão de gramática

Joan Didion. O sentido da vida é uma questão de gramática


Se o eixo do mundo fosse uma vírgula, ela saberia exactamente onde a colocar. Ninguém como ela influenciou tanto o estilo que se pratica nos títulos de referência em todo o mundo e, no entanto, o mais importante do que nos revelou sobre a nossa época continua sufocado debaixo de velhas e novas ilusões.


Precisamos sempre de alguém com a ousadia de recomeçar, fazer o que já foi feito tantas vezes no passado como se o fizesse pela primeira vez, alguém que prove ser capaz de firmar de novo os ancestrais protocolos da narração, recuperar as funções vitais do acto de narrar, seduzindo-nos ao ponto de sermos convencidos de que se tratou de uma invenção pessoal. Esse modo de contar com o vigor distintivo de um estilo dispondo o tempo como um fio, e de nos convencer que a prosa é o elemento essencial da razão, da forma como suportamos e encaramos a vida, recorrendo a encadeamentos sensíveis. E que é na destilação de cada argumento, desde o ritmo, àquele regime descritivo que elabora um estado de semi-consciência, em que somos sujeitos a um efeito de hipnose enquanto as nossas percepções da realidade são afiadas, que a prosa se impõe e às suas leis, produzindo a própria sensação da vida ao fazer a reportagem desses aspectos mais ou menos circunstanciais que nos dão o relevo ou o grão da existência. De súbito, dá-se no leitor uma impressão de reconhecimento, sente-se integrado na própria fibra com que o universo é tecido, e, a partir daí, mesmo a forma como as frases soam ao ser pronunciadas parece tornar o mundo coeso, dando a sensação de que o pensamento é um lenço de seda cobrindo as formas de uma realidade tantas vezes insuportável. Mas se esse lenço é o oposto do lençol que se usa para cobrir os móveis de uma casa quando esta fica a velar a ausência dos proprietários por uma longa temporada, isso acontece porque o que se pretende não é esconder, antes revelar por meio dessa imagem geral e articulada o caos que cobre. 

Tom Wolfe, no prefácio à sua célebre e imensamente influente antologia “The New Journalism”, publicada em 1973, dá um passo vigoroso no sentido de reconhecer não só os efeitos da narração, mas liga aquele movimento criativo que tomou conta das páginas dos jornais, como uma segunda e frenética fase no percurso do realismo, afirmando que os romancistas nas duas décadas anteriores haviam procedido a um erro de cálculo desastroso quanto à natureza desta técnica narrativa. “A sua perspectiva quanto a esta questão ficou bastante bem resumida pelo editor da Partisan Review, William Phillips: ‘na verdade, o realismo é apenas mais um dispositivo formal, e não um método permanente de lidar com a experiência’”. Wolfe dizia suspeitar precisamente do contrário, defendendo que a introdução do realismo na literatura foi como a introdução da electricidade no que toca ao desenvolvimento da tecnologia das máquinas. “Não se tratou apenas de mais um dispositivo formal. Elevou o estado da arte a uma nova magnitude. O impacto que o realismo teve nas emoções foi algo que nunca antes se havia alcançado.”

Joan Didion foi a única mulher integrada por Tom Wolfe e E.W. Johnson na antologia, e talvez o efeito de sedução da sua escrita jornalística (por oposição à sua ficção, bem menos influente ou até relevante), esse efeito que fez com que ela tenha acabado por se tornar a figura mais debatida, admirada e imitada (com a excepção talvez de Truman Capote), com um estatuto icónico sem paralelo entre um grupo de autores onde encontramos ainda nomes como Norman Mailer, Gay Talese, Hunter S. Thompson e o seu marido John Gregory Dunne, não é algo fácil de exlicar. Para além da estupenda concisão que se tornou a marca de água da sua prosa, produzindo em sequência frases absolutamente memoráveis, mais ainda do que a ferocidade da sua ironia, ou do tom cáustico e muitas vezes lamentoso que imprimia nas suas reportagens, a especialidade de Didion está na forma como conduzia uma espécie de “autópsia social”, lidando com a própria época como se se tratasse de um defunto, revendo as suas possessões, os protagonistas e as personagens secundárias como presenças num enterro, desmontando os trunfos e as conjecturas geralmente aceites e que formam esses nódulos mais salientes na narrativa da vida pública, e expondo, assim, os elementos de uma farsa. Mas para o fazer, Didion teve de adquirir uma forma de mestria discretíssima, capaz de uma selecção que é tudo menos natural, e que se deve a um instinto quase sobrenatural para destacar certos gestos, hábitos, modos de vestir ou de falar, de decorar um quarto ou um salão, de comer, certas atitudes face aos inferiores, aos superiores ou aos pares, certas expressões ou tons, modos de olhar, detalhes simbólicos que ela extraía como pérolas, e nos quais confiava, não apenas para nos orientar quanto ao estatuto social das figuras em causa, mas para aplicar o bisturi e abrir a pele da época, elaborando um exame cujas conclusões se tornavam de algum modo irrecusáveis precisamente pela graça intuitiva com que aplicava as suas incisões num corpo que resistia a gritar, convencido também ele de que estava mais morto do que vivo.

Didion morreu no passado dia 23 de dezembro, no seu apartamento em Manhattan, na sequência de complicações da doença de Parkinson. Fechou a porta sem deixar estalar o trinco, aos 87 anos, num dia em que a azafama tinha a maioria das pessoas a ultimar os preparativos para a data mais importante do calendário Ocidental, ensaiando assim uma saída à francesa. De resto, além da duradoura impressão que a sua escrita produzia, tinha uma beleza que misturava na essência do novo mundo um travo daquele mais antigo, uma beleza fácil de deslumbrar como de desaparecer de um momento para o outro, uma mistura de Audrey Hepburn com um esquivo fauno que rouba uma tangerina e se escapa, deixando um estranho vazio na paisagem, um desequilíbrio, um perfume e uma sensação de se ter perdido mais qualquer coisa.

Isso não impediu que o seu obituário tenha assumido destaque nas páginas de jornais de todo o mundo, sendo a sua obra ensaística, e livros de memórias como “O Ano do Pensamento Mágico” ou “Noites Azuis” (recentemente editados por cá pela Cultura Editora), além de artigos de crítica, e mesmo os romances, uma das que mais tem foi suscitando ao longo dos anos reflexões empenhadas, toda uma bibliografia passiva que fez dela um mito ainda em vida. Curiosamente, naquele que foi de longe o texto mais penetrante dos que saíram nas horas e dias que se seguiram à sua morte, publicado na revista “The Atlantic”, Megan Garber chama-lhe o “bardo do nosso desencantamento”, e eleva a sua intervenção crítica a uma forma de antropologia exercida sobre os mitos da tão profana cultura norte-americana.

Neste ponto, estamos ainda ao nível das parangonas, mas é já na substância do texto que Garber nos vem dizer como Didion se distinguiu por ter sido uma contadora de histórias que rejeitava a mitologia. Diz-nos que ela não tinha paciência para a insípida feira que eleva egos a alturas divinas no mercado americano: não oferecia andas, nem prodigalizava elogios ou essas condecorações salvíficas nos seus textos. “Em lugar disso, o tema que mais vezes explorava era a entropia. E o segundo mais comum nos seus textos era o luto e a perda. Ela observava o mundo como ele era, ao mesmo tempo que chorava o mundo como este poderia ter sido.”

Garber recorda-nos a primeira frase do segundo volume de reportagens e ensaios de Didion, “The White Album”, uma das mais vezes citadas de toda a sua obra: “Nós contamos histórias de forma a suportarmos a existência.” Mas a jornalista da “The Atlantic” lembra que normalmente esta frase fica por aí, extirpada do contexto, como tantas outras citações arrancadas de ensaios como “On Self-Respect”, “Goodbye to All That” ou “On Keeping a Notebook”, os quais se vêem vulgarizados por essa forma de reciclagem feita por meio de sublinhados constrangedores, como selos que são apropriados para o tráfico da sabedoria instantânea e motivacional das redes. E então devolve-a à sequência original: “Nós interpretamos o que vemos, selecionamos as mais funcionais entre as tantas opções ao nosso dispor”, escreve Didion. “Vivemos, sobretudo se somos escritores, inteiramente devotados à imposição de uma linha narrativa sobre imagens desconexas, sujeitos às ‘ideias’ com as quais aprendemos a congelar a mutante fantasmagoria que é a nossa experiência real.”

O que esta passagem nos mostra, é que mesmo se se servia da sua própria vida como eixo para tantos dos seus escritos, essa exploração de elementos auto-biográficos era demasiado cruel para que se suponha que o fizesse de modo fabricar de si mesma a imagem de uma figura predestinada, ou até trágica. Com toda a força reveladora das emoções que muitas vezes seguravam os elementos da sua narrativa, ela não estava interessada em fazer de si a razão central de uma intriga apenas como envolvência para se colocar como o centro de mais outra representação redutora. Em certo sentido, para avaliar esse órgãos internos que seguram as funções da intimidade que nos liga à vida, Didion não hesitava em entregar o corpo à ciência em que estava investida.

Garber diz-nos que ela interrogava as suas próprias percepções com o estoicismo de um cientista. E voltamos atrás e aos propósitos do realismo na formulação de narrativas, sendo Didion aqui identificada como uma “modernista deslocada”, e que aprendeu o ofício em parte batendo à máquina as histórias de Hemingway, “tentando treinar os tendões a absorverem os ritmos e as arritmias dele”. No fundo, Hemingway foi o principal discípulo de Dickens no século XX, o escritor que se empenhou mais afincadamente em formular esses princípios básicos que sustentam a corrente eléctrica de uma narração de modo a produzir ficções que atinjam o leitor com o próprio bafo da realidade. E nesta técnica de aprendizagem feita com os nervos, Didion nem estava isolada entre os seus pares, já que também Hunter S. Thompson usava “O Grande Gatsby” (esse triunfo que Fitzgerald obteve e que o seu amigo Hemingway tanto invejou quando foi publicado) para produzir na máquina de escrever aquele encadeamento cheio de vida das palavras umas atrás das outras, como insectos esmagados contra o vidro de um automóvel desportivo a levantar a sensação de aventura de entre o pó dos caminhos há pouco menos de um século.

Mas um aspecto em que Didion se distinguia, e que a coloca no pólo oposto ao jornalismo Gonzo de Thompson, é a sua abordagem, ainda que corrosiva e iconoclasta, não trocar uma mitologia por outra. Não ir fazer os furos no pneu da grande ficção do seu tempo para se lançar depois numa viagem extravagante em direcção a uma qualquer fantasia debochada. A sua inteligência serve-se de uma atenção muito particular aos detalhes, um humor que sabe ir e voltar daquela ironia tantas vezes devastadora, não perdendo nunca de vista o seu objectivo de transmitir as experiências de um tempo e de um lugar, ser fiel aos fenómenos, e articular as suas impressões numa atmosfera densa de significado. E conseguiu-o colocando-se dificuldades, não se rendendo a uma personagem, persistindo na sua relação inquisitiva com o mundo, e tecendo a sua teia musical entre deliberadas repetições, afinando o sentido, o pulso do leitor, numa exposição ponderada dos factos, decidida e capaz de suster um longo argumento. Essa força sensível parece, além do mais, transmissível, como se, ao lê-la, nos fizesse sentir à sua altura, enobrecidos, capazes de perceber e integrar na nossa própria consciência o seu testemunho.

De algum modo, talvez isto se explique com essa confiança que só os mais tímidos chegam a adquirir, esses seres introvertidos e que sentem ter tudo a provar, primeiro que tudo a si mesmos. É com um grande custo que vão conseguindo obter certos ganhos, através de investidas redobradas, do esforço insano na tentativa de destrinçar as forças que operam nos bastidores de cada cena. Ela mesma reconheceu a importância que tiveram os anos que passou a escrever na “Vogue”, tendo passado um longo período a aprender a técnica de enriquecer as imagens com legendas que a treinaram naquela soberba concisão a que se manteve fiel até ao fim. Mas esses anos foram também importantes para fazer a dotar de um tão mordaz talento para decifrar os códigos sociais que estão inscritos no vestuário das elites. Assim, várias autores que se debruçaram sobre a obra de Didion admitem que teria sido um desastre se em vez de ter-se formado na redacção daquela revista de moda, tivesse tido mais cedo uma oportunidade de escrever nas páginas de revistas como a “The New Yorker” ou a “The New York Review of Books”, com a qual mais tarde manteria uma longa e marcante colaboração.

Como só acontece com os grandes, a escrita de Didion recorda-nos uma e outra vez que esta é uma tarefa que ocupa o espírito de forma total, e que até é capaz de somar em si percepções a cada passagem, revisão, forçando também o leitor a dedicar-se-lhe com um gozo e uma obsessão comparável. Presente-se o prazer de formular cada frase. Quase se dá por ela com o lápis entre os dedos e a boca, ponderando essa canção surda, esse registo tão discreto quanto sedutor. “Ela expandiu as possibilidades do que a linguagem pode fazer, e não apenas no sentido das técnicas-da-ficção-aplicadas-à-não-ficção no sentido que é usual reconhecer no registo do New Journalism”, frisa Megan Garber. “As suas palavras alojam-se, apunhalam e deixam cicatrizes. Dão-nos comichão, magoam. O seu trabalho reconhece o poder que têm as histórias para moldar a realidade, e, por isso, a sua sensibilidade eram também francamente pós-modernas. Na precisão clínica da sua prosa, ela capturava a intimidade celular da narrativa, o domínio que esta podia ganhar sobre os tecidos moles do coração humano. Mas ela também instruiu os leitores para que resistissem à ‘imposição da linha narrativa’. Ela duvidava de si mesma, e queria que também nós duvidássemos dela. Quando falava das histórias que contamos a nós próprios para conseguirmos viver, não estava a oferecer-nos um nebuloso pronunciamento. Estava a emitir uma acusação de um crime potencialmente grave.”

Garber reflecte também sobre o preponderante elemento autobiográfico da obra de Didion, vincando como o uso do “eu” lhe está tão associado. Mas neste ponto coloca-se no papel de advogada da defesa, reconhecendo como, neste caso, a influência da sua abordagem abriu as comportas a uma série de imitadores desejosos de embarcarem nuns botes salva-vidas e enfrentarem as grandes tempestades do romantismo, as cruzadas da montagem e remontagem desse cabide para pendurar nele essas fantasias em relação à identidade, que parecem ser armas de uma ideologia libertadora, mas que, na verdade, apenas nos constrangem num regime pavoroso em que se procura aplicar um moralismo aberrante aos códigos sociais, e que sinaliza uma forma de se fazer da política mais outra arena para o registo narcísico. E aqui a arte tem sido um testemunho que nos puxa precisamente para o lado oposto.

Eliot disse: “A evolução de artista é um auto-sacrifício constante, uma extinção constante da personalidade.” Joyce afirmou: “A personalidade do artista (…) refina-se por fim até deixar de existir, torna-se impessoal, por assim dizer.” Didion, por seu lado, confundiu de tal modo a sua personalidade com o seu estilo que podia desaparecer nele, sabendo como a atenção envolvendo um detalhe ao ponto de o tornar de tal modo saliente gera um efeito em que se refaz o eixo do mundo. Não é preciso extinguir a personalidade, desde que esta se desloque incessantemente de um motivo para outro, tecendo esse fio das inquietações pessoais num enredo mais profundo. E ele sabia deter-se em subtilezas sem se deixar consumir por elas. Sem fundar um movimento ou uma facção sempre que obtinha alguma revelação. Mas, nesta época da consciência infeliz, em que, como escreveu Paul Nizan, “cada um encontra no fundo do seu despertar todas as desordens do tempo não sei quantas vezes reduzidas à escala medíocre de uma inquietação privada”, aquilo a que hoje se chama não-ficção está a meter água por todos os lados com os excessos desses narradores que se servem da primeira pessoa para exercícios de egolatria, fazendo-se valer de todos os pretextos de modo a se autorizarem um grau de indulgência absurdo. Essa arbitrariedade que vai a reboque do sentimento, esses ensaios ou até os romances que caem na categoria da auto-ficção vão lançando coordenadas e servindo-se de todas as referências apenas para baralhar, apontando um horizonte durante um bocado para logo o abandonar por aqueloutro num impulso, atendendo a caprichos. Uma escrita empenhada apenas em simular na piscina (quando não na banheira) as ondas do que se passa na sua interioridade, deixando à volta esse género de destroços apodrecidos que não permitem restituir nada a uma função original.

Didion, pelo contrário, mantém o mapa aberto e faz o leitor ter em consideração cada etapa do percurso, assumindo uma postura analítica, servindo-se das armas dos introvertidos, de forma a combater os estereótipos e as representações mais enfáticas e grosseiras, sem ceder, por outro lado, a essa forma de misantropia que passa por adorar a si mesmo. A par do cinismo e de outras correntes degeneradas do niilismo que caracteriza a nossa época, existe essa forma de optimismo que Megan Garber no diz ser o mais renovável dos recursos na vida americana, o qual pode esmagar as pessoas com a mesma facilidade como lhes serve de impulso. “Com o olhar de um antropólogo e a imaginação de um artista, Didion documentou desilusões e desencantamentos – sonhos tanto os temporários como os já mortos. Ela nomeou os seus próprios remorsos e chorou nos cruzamentos os caminhos que não seguiu. Examinou o seu luto, e também o luto e as perdas dos outros. Escreveu sobre a Califórnia, onde nasceu e onde mais tarde viveu durante muitos anos, escreveu sobre esse lugar umas vezes poeirento e outras tantas delirante, com a sua escrita a evocar um mundo onde quase tudo, sonhos, carros, casas e pessoas podem ser descartados.” E se Didion se viu canonizada pelo seu impecável estilo, na verdade aquilo que ela conseguiu foi rever a gramática de uma nação que serviu ao mundo as suas fantasias e o seu ideário, fabricando a ilusão de que é sempre possível começar de novo, escondendo do público todo esse cemitério de vidas abandonadas, todos os fracassos em nome do sonho, e o próprio efeito de desagregação da sociedade.