O caso do vice-almirante, agora de novo empossado


O homem voltou a ser relembrado pela menor eficácia do processo e ele próprio fez questão de se fazer lembrar, desdobrando-se em entrevistas de posicionamento público, político e mediático com dois desfechos possíveis.


Finalmente resolveram a vida ao Vice-Almirante Gouveia e Melo, mas. Há quase sempre um mas, embora a memória curta nacional tenda a fazer prescrever num ápice os acontecimentos, as circunstâncias e o sentido da responsabilidade dos protagonistas.

O novo Chefe do Estado Maior da Armada assume funções depois de ganhar visibilidade nacional pela prestação à frente da equipa de missão do plano de vacinação contra a covid 19, num contexto em que à disponibilidade de vacinas em quantidade se somou ao esforço integrado de organização no território para a sua administração. Correu bem, mas poderia ainda ter corrido melhor, se tivessem acedido às vontades e disponibilidades de autarcas no terreno, bloqueados pela visão da liderança da task-force. Foi muito bom, mas não foi um mar de rosa, sendo que o pilar central do esforço foram mesmo os profissionais de saúde presentes na primeira linha da administração das vacinas.

Projetado para uma dimensão de estrela galáctica, quiçá por contraste com a envolvente geral dos protagonistas públicos e políticos, o Vice-Almirante foi merecedor do reconhecimento generalizado, assumindo uma notoriedade e popularidade que ensombrou o destaque outrora assumido pelo Presidente da República.

Na República dos egos, essa ousadia paga-se caro, tanto mais quando ainda se somam questões familiares mal resolvidas do tempo de Salazar, em que o novo protagonista não teve intervenção direta. Pagou-se no nível da condecoração presidencial atribuída e na frustração do anterior processo de nomeação para o cargo agora assumido, em finais de setembro, num bailado em que se confunde alguma incompetência na gestão do processo com as tradicionais diatribes da personalidade do endeusado presidencial, conhecidas desde tempos imemoriais do seu percurso de vida. Por razões da querela familiar pré-histórica, de uma certa inveja do estrelado atingido pelo Vice-Almirante ou por receios estruturais sobre a acumulação de poderes que existe no ramo em causa, por exemplo, em matéria de serviços de informação, a verdade é que deixaram o Vice-Almirante a marinar estes meses, num tempo em que o processo de vacinação perdeu algum fulgor, apesar das garantias da existência de vacinas para administrar a 3.ª dose a todos os elegíveis. A verdade é que o bicho voltou a ganhar vantagem, também porque se desmantelou a capacidade instalada no terreno. O homem voltou a ser relembrado pela menor eficácia do processo e ele próprio fez questão de se fazer lembrar, desdobrando-se em entrevistas de posicionamento público, político e mediático com dois desfechos possíveis: a nomeação para o cargo militar que estava a ser obstaculizada por Belém ou a emergência como protagonista civil da política alternativa partidária ao atual poder em funções que não atava nem desatava a carreira militar. Nessa ânsia de desmultiplicação mediática e de posicionamento no mercado político-partidário foram ultrapassadas linhas vermelhas de retórica apenas desculpadas pela relevância do elefante no centro da loja de porcelana. Imagine-se que o Vice-Almirante se eximia dos encargos militares e aparecia pelas mãos de Rui Rio como o seu Ministro da Defesa Nacional ou da Saúde em caso de vitória do PSD? Era um importante elemento de desequilíbrio numa contenda em que haverá pouco tempo para a configuração ou a reconfiguração do pensamento e atitude do eleitorado. Por razões estratégicas de circunstância, ao poder executivo e presidencial, este avesso a Rui Rio, convinha resolver a situação militar do militar e evitar mais danos. Nem Rio ficou com o trunfo, apesar das incursões e assédios, nem o protagonista continuou com margem para exercitar a verve em entrevistas generalistas, mais ao jeito de um civil. Fica agora, de novo, confinando à circunstância militar e ao desafio de se manter à tona da água das dinâmicas internas e dos grupos que existem no ramo. Porventura, o desafio será maior do que o da aposição de organização e sentido ao plano de vacinação contra a covid19, dada a existência de negacionistas no ramo em relação à sua personalidade, inteligência e forma de estar.

Por ora, a pendência foi resolvida, mas o crédito gerado pela prestação no processo de vacinação e a evidência mediática do entretanto deixaram bem claro os avisos à navegação do espaço público da República: o homem tem ambição e tem noção de que, pelo patamar de referência do atual titular do cargo presidencial, tudo é possível a quem atinge um determinado patamar de notoriedade. A República tende a ser igualitária, quiçá excessivamente permissiva na aplicação dos critérios de ponderação e de crivo democrático que estão nas mãos dos cidadãos. Depois da participação efémera, pelo voto, resta a crítica inconsequente, seja em público ou nas redes sociais, mas em democracia pode não ser só assim. Participar pode ser muito mais e a todo o tempo.

Por agora, está empossado, não assumiu posição partidária e tem pela frente uma parte relevante dos ramos militares, da afirmação da soberania e da defesa da economia nacional pela fiscalização da área da plataforma continental marítima de Portugal, mas como o próprio definiu enformado pelas suas crenças, “o futuro a Deus pertence”.

NOTAS FINAIS

A NAVEGAÇÃO DAS VACINAS. Num país em que o essencial é controlado pelos poderes e pelos interesses instalados, a pandemia introduziu um nível de incerteza sem precedentes, que se projetou na comunicação e minou a confiança no processo. Primeiro, a vacina resolvia o problema e criava a imunidade de grupo que erradicava a pandemia. Depois, a conclusão do processo das tomas da vacina conferia a defesa total face ao risco. As variantes e a incerteza estiveram sempre no rodapé das verdades absolutas, do que as pessoas queriam ouvir e os responsáveis gostavam de dizer. E não foi assim, porque há variantes não controláveis. As meias-verdades nunca deram bons resultados. Em todo o caso, as vacinas foram e continuam a ser a melhor defesa face ao risco. Pena que na guerra que não acabou, se ache bem limpar armas com a suspensão do processo de vacinação no Natal e Ano Novo. Em tempo de guerra não se limpam armas. Por muito esgotados que estejam os recursos.

A NAVEGAÇÃO COM IRRITAÇÃO. Os portugueses estão irritados. Há um mal-estar que fervilha, com maior ou menor expressão quotidiana, com quem está, com o que está e com as perspetivas. A irritação já teve expressões eleitorais nas autárquicas, em que, mesmo os autarcas que trabalharam bem as respostas à pandemia, foram penalizados eleitoralmente. A irritação pode voltar a ter expressão nas legislativas de 2022. É poucochinho um país mover-se ao ritmo das irritações, no quadro pandémico. Em todo o caso, votos de um Ano Novo com melhores vivências individuais e comunitárias.

 

Escreve à segunda-feira