Joana Domingues. “Existe uma ideia preconcebida de que o cinema português é aborrecido e elitista”

Joana Domingues. “Existe uma ideia preconcebida de que o cinema português é aborrecido e elitista”


Aos 33 anos, a produtora foi eleita membro da direção da Academia de Cinema Europeu (EFA), que já foi liderada por nomes como Ingmar Bergman.


Nasceu em Lisboa a 22 de fevereiro de 1988, mas cresceu no Alentejo. Que idade tinha quando ocorreu esta mudança? Adaptou-se com facilidade?

Quando me mudei tinha cinco anos, pelo que na verdade não senti a mudança. Esses primeiros anos de crescimento no Alentejo foram muito positivos por todo o contacto com a natureza, espaço e liberdade que tive.

Viveu numa aldeia cujo nome é Comenda e fica no concelho de Gavião, em Portalegre. Há algo que a tenha marcado especificamente pela positiva e, por outro lado, pela negativa?

Além da minha família, lembro-me sobretudo dos professores, especialmente dos de Português, Artes e História. Como estive sempre em turmas muito pequenas havia uma proximidade muito grande e um tempo para não só darem as suas aulas como trazerem-nos atividades que eram essenciais para que pudéssemos ter noção do mundo. Negativamente, e acho que isto é um sentimento que muitas pessoas têm ao crescer numa aldeia, sentimo-nos sempre um bocadinho presas, parece que é tudo demasiado longe, demasiado impossível. Acredito que hoje em dia as coisas tenham melhorado um pouco nesse sentido, embora exista ainda muito a fazer no acesso à cultura, por exemplo.

Por isso é que se refugiou na escrita e nos livros, assim como nos clubes de jornalismo e teatro? 

Existia uma óbvia dificuldade no acesso à cultura. A leitura permitiu-me ultrapassar essas barreiras e, felizmente, tive uma família que sempre me estimulou a ler. Escrever era algo de que também gostava, sobretudo, para me distrair já que o tempo na altura parecia passar tremendamente devagar. É muito interessante como a nossa noção de tempo evolui. Aos 15 anos um dia durava mil anos, agora, aos 33, passa num segundo! Essa vontade de preencher o tempo ajudou-me a ter contacto com o jornalismo e com o teatro. Ambos os clubes permitiram-me ultrapassar a minha timidez e perceber que tenho uma voz. Acho o papel das escolas verdadeiramente fundamental: um bom professor pode mudar completamente a nossa vida e tive a sorte de ter vários. 

Sentia que o seu sonho residia realmente em fazer entrevistas, reportagens, dar voz a quem não a tem ou parecia-lhe que o Jornalismo era uma opção menos arriscada do que um curso de Literatura, por exemplo? 

Quanto aos planos para o futuro: sabia que queria ganhar mundo, conhecer pessoas e deixar de ler histórias e passar a vivê-las por isso, sim, queria ao máximo assegurar a minha formação e tinha a certeza de que teria de ser em algo ligado às Humanidades. A Literatura passou-me pela cabeça a dada altura, o Jornalismo também, mas tinha um respeito tão grande pela profissão de jornalista que não sabia se seria digna dela. Passou-me pela cabeça seguir Ciência Política e Relações Internacionais, mas nunca foi algo que me entusiasmasse plenamente. Nesse sentido, acho que ainda hoje é exigido aos jovens que escolham muito cedo aquilo que querem ser no futuro. Parece que é tudo definitivo e depois acabamos por perceber que podemos mudar ao longo do caminho e que isso é que acaba por se tornar interessante.

Ingressou na licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, mas nunca o frequentou. Que motivo a levou a escolher o curso de Ciências da Comunicação e da Cultura na Universidade Lusófona? 

Acabei por nunca frequentar essa licenciatura, pois quando fui colocada fiquei instantaneamente tão deprimida que tanto eu como a minha família percebemos que depois de tanto esforço não poderia ir fazer algo que não fosse o que me realizasse. Tive muita sorte pelo facto da minha mãe e avós terem tido a sensibilidade para entender isso. Escolhi a licenciatura da Lusófona precisamente pela associação à cultura, pelos professores e cadeiras que tinha e não me arrependo nada. O curso tinha uma componente prática muito grande que nos colocava em contacto com jornalistas, editores, operadores de imagem e a componente teórica era também muito interessante. 

No segundo ano de curso, foi eleita vice-presidente da Académica Lusófona ficando com o departamento de Marketing e Comunicação a seu cargo. No mesmo ano, começou a colaborar com o extinto Portallisboa. Acredita que as atividades extracurriculares e estágios que fez enriqueceram-na e, assim, ficou com uma “bagagem maior” para enfrentar os desafios do mundo profissional?

Sem dúvida. Acho que uma licenciatura é muito mais do que aquilo que aprendemos nas aulas. O networking que criamos é essencial tanto nessa época, como no futuro. Na Académica Lusófona aprendi a gerir um orçamento, a contratar equipas, a organizar diversos tipos de evento, contactar com marcas, estabelecer parcerias, lidar com entidades mais institucionais e, sobretudo, a ouvir pessoas de outras áreas já que a equipa integrava estudantes de diversos cursos e acabávamos por ter um contacto alargado com outras realidades, tudo coisas que hoje utilizo no meu trabalho como produtora. O Portallisboa surgiu precisamente no mesmo ano e permitiu-me começar a aplicar, na vida real, aquilo que estava a aprender nas aulas. Sempre tive um problema com o excesso de tempo livre por isso tentei – e tento sempre – estar o mais ocupada possível. Sem dúvida que todas as atividades e estágios que fiz no passado me ajudaram nos meus desafios profissionais.

A sua paixão sempre foi a escrita mas, curiosamente, quando terminou o curso, em 2009, estagiou em televisão na área da economia e finanças. Posteriormente, colaborou, como jornalista e produtora para empresas que produziam para a RTP, RTP2, RTP3, RTP INTERNACIONAL, EconómicoTV, entre outros. Foi durante estas experiências que percebeu que o jornalismo era algo que fazia bem e de que gostava, mas era a vertente da produção que a fascinava?

Foi uma total surpresa descobrir que gostava de jornalismo televisivo e começar por trabalhar em Economia, dado que a cadeira de Jornalismo Económico, confesso, foi das que gostei menos na faculdade! Queria muito começar logo a estagiar, não queria ficar parada e ainda bem que o fiz porque num curto espaço de tempo pude começar a colocar em prática o que tinha aprendido. Acho que quase todos os jornalistas acabam por ter de fazer um pouco de produção, especialmente quando somos jornalistas de programas que implicam não só a realização de reportagens, como a presença de convidados em estúdio. A falta de meios, infelizmente, faz com que tenhamos de ser mais criativos e acumulemos algumas funções. Fui muito feliz no jornalismo, principalmente, quando pude trabalhar temas mais ligados à arte e a questões sociais como as migrações, mas, a dada altura, depois de já estar a fazer coordenação de conteúdos e de os meus colegas e chefes me dizerem que tinha instintos de produtora… Lá me rendi às evidências e aceitei que é na produção que me sinto completamente realizada com todos os problemas e chatices que traz e em que cada ano profissional acaba por valer por sete. Para mim, não há nada mais gratificante do que ajudar a criar algo e a tornar a visão de alguém realidade ou criar um espaço ou formato em que temas que são relevantes possam ser discutidos. Fazer televisão tirou-me muitas horas de sono, mas foram anos muito felizes.

Entrou neste ofício quando começou a ser desvalorizado. Pensa que tal a levou a optar pela sétima arte ainda com mais segurança?

Por norma considero-me uma pessoa muito ponderada que não toma nenhuma decisão sem pesar todos os prós e contras, mas esta pergunta deixa-me a pensar que talvez não seja bem assim. Porque se a profissão de jornalista tem vindo a ser, infelizmente, desvalorizada ao longo dos anos, o cinema não é, certamente, o caminho mais seguro. Acredito que as escolhas que fiz, o percurso que tive, as pessoas que conheci e o gosto que já tinha por cinema me levaram a optar por esse caminho, mas não foi de todo uma transição muito ponderada. Foi algo que foi acontecendo e ainda bem que assim foi porque hoje sinto-me muito realizada a fazer o que faço.

Há sete anos, o Bruno Gascon desafiou-a para ser produtora da curta-metragem “Boy”. Já o conhecia? 

Conheço-o há 11 anos. Colaborámos juntos em vários documentários e programas especificamente dedicados a temáticas sociais que, atualmente, marcam muito a sua cinematografia. Foi ele a pessoa que me puxou para o cinema e que me desafiou a produzir as curtas dele. O Bruno vinha de um curso de realização na SAE Amsterdão e tinha uma grande vontade de fazer cinema. Como estudou fora não conhecia ninguém do meio cinematográfico português, logo tinha a noção de que seria mais difícil entrar nessa área. A dada altura chegou o momento em que ele disse “não vou esperar, gostava de tentar fazer isto” e tive a sorte de me chamar para ser a sua produtora. 

Trabalhar com ele revelou-se natural logo nos primeiros dias ou foram-se adaptando um ao outro progressivamente? 

Foi muito fácil trabalhar com o Bruno. A coisa mais importante que ele me ensinou foi a ter muita atenção aos detalhes e que o cinema tem um tempo muito próprio. Em televisão, habitualmente, o tempo não existe, é tudo para ontem: por muito que se planeie existe uma dose muito grande de improviso porque há prazos muito curtos de produção. Ao transitar para a produção em cinema aprendi que cada projeto necessita de tempo: para a escrita, pré-produção, para rodagem e pós-produção. O Boy foi uma experiência muito interessante para os dois porque permitiu-nos perceber que queríamos voltar a colaborar em cinema.

Logo no ano seguinte, produziu a curta-metragem Vazio. Foi aí que tanto a Joana como o Bruno abandonaram os vossos trabalhos e dedicaram-se totalmente ao cinema. Teve medo de tomar esse passo e foi extremamente cautelosa ou sentiu que a sua vida mudaria para melhor e, por isso, não havia motivos para ter receio?

Na verdade só abandonámos os nossos trabalhos depois da estreia do Vazio no Short Film Corner de Cannes. Ao irmos ao festival e conhecermos pessoas de outros países que trabalham em cinema, tivemos a noção de que se queríamos mesmo fazer isto teríamos de nos dedicar a tempo inteiro. Foi um bocado uma loucura porque despedimo-nos os dois no mesmo dia. Não me recordo de um medo avassalador, mas receio sim. Quando sabemos aquilo que queremos tomar estas decisões torna-se mais fácil, mas podia ter corrido muito mal. O Bruno já tinha escrito o argumento da Carga e eu já tinha feito o projeto. Sabíamos que seria impossível fazer o filme pelas vias normais de financiamento para cinema, porque por norma não estão tão acessíveis a pessoas com um currículo tão recente nessa área, por isso precisávamos de tempo para ir bater a muitas portas. Acabou por ser uma boa aposta. Sem estarmos focados nisto 24 horas por dia, sete dias por semana era impossível termos conseguido fazer essa primeira longa-metragem com o elenco que tivemos e termos encontrado os investidores, mentores e parceiros que tanto nos ajudaram. 

É sócia e gerente da Caracol Studios. De onde é que surgiu o nome? É curioso porque, quando deparamos com o mesmo, podemos pensar que o escolheram por simbolizar o vosso percurso no cinema. No entanto, têm feito exatamente o oposto dos caracóis: trazem a público trabalhos com muita frequência e são reconhecidos.

O nome surgiu numa conversa entre os quatro sócios da empresa. Tínhamos várias opções em cima da mesa, mas o nome Caracol destacou-se precisamente pela ideia do “devagar se vai ao longe”. É muito a nossa filosofia. Queremos perder tempo com cada projeto: as nossas rodagens são longas, os períodos de pré-produção e de pós-produção também são muito extensos, assim como o tempo que perdemos a pensar o marketing e a comunicação de cada filme. Visto de fora pode até parecer rápido, mas não é. O reconhecimento vem precisamente do resultado que se obtém quando dedicamos tempo a algo.

Produziram “Carga”, filmado em 2017 e estreado em 2018, que contou com investimento privado, da RTP e Apoio à Finalização e Apoio à Distribuição do ICA. Os privados que vos auxiliaram estavam de algum modo ligados ao cinema ou à cultura no geral? 

Os nossos investidores privados tinham diversas nacionalidades e vinham de áreas de investimento que não tinham nada a ver com o cinema e, graças a isso, aprendemos muitas coisas que nos ajudaram a evoluir. Carga foi um projeto muito bonito porque, a dada altura, tínhamos um número enorme de pessoas e marcas ao nosso lado completamente comprometidas em tentar tornar realidade um filme que tantas outras pessoas da área do cinema nos diziam ser impossível. Antes de encontrarmos todos esses parceiros disseram-nos muitos nãos em todo o processo, não foi nada fácil e muitas vezes foi muito ingrato porque queriam alterar o elenco e/ou a história, perguntavam ao Bruno se não preferia realizar uma comédia porque seria mais fácil financiar, queriam que a protagonista se apaixonasse por um dos traficantes, diziam-nos que era impossível tornar este filme realidade, ou que por ser uma primeira obra não sabíamos o que estávamos a fazer, enfim… Chamaram-me muitas vezes ingénua por acreditar que o que é correto é que exista espaço para todos e que se alguém quer contar uma história e se trabalhar para isso tem todo o direito a fazê-lo. O Bruno Gascon tinha uma visão muito clara do que queria fazer e mantivemo-nos fiéis à mesma. Com estes investidores privados e em especial com o Tim Vieira aprendemos a nunca desistir, a ouvir outras ideias e opiniões mesmo que sejam contrárias à nossa, a procurarmos soluções alternativas e, sobretudo, a manter uma mente aberta. 

E como é que obtiveram o voto de confiança da estação pública?

Foi muito importante também o apoio da RTP e foi incrível percebermos que eles entendiam perfeitamente o que queríamos fazer e estavam do nosso lado. Acredito que o facto de eu e o Bruno estarmos tão dedicados ao projeto fez toda a diferença: quando acreditamos muito numa coisa e trabalhamos tanto para tornar isso realidade, acabamos por contagiar as pessoas à nossa volta. A aprendizagem desse filme serviu-me para a vida. Hoje em dia reúno com todas as pessoas que procuram a Caracol e sigo o exemplo de todos aqueles que um dia me abriram a porta sem me conhecerem de lado nenhum: oiço e tenho uma mente aberta. Nunca sabemos quem vai aparecer.

Mencionou que o facto de terem tido a distribuição da obra a vosso cargo contribuiu para que entendessem “o mercado de distribuição e exibição em Portugal e a importância de uma estratégia de marketing e comunicação para cada filme”. Sente que erraram em alguma estratégia específica, por exemplo? 

Não existe melhor forma de entendermos um negócio do que tentarmos fazê-lo nós mesmos. O Carga foi distribuído pela Caracol em Portugal e, a meu ver, teve muito bons resultados para uma primeira obra com um tema tão desafiante como o do tráfico de seres humanos. Ao trabalharmos a distribuição do filme percebi, logo à partida, que existem vários desafios, nomeadamente o facto de não termos um número equilibrado de salas de cinema no país (o Alentejo é um grande exemplo disso) e de o espaço para o cinema português continuar a ser pouco, o que nos leva a duas questões: se os filmes não estiverem acessíveis como é que podemos esperar que o público consuma cinema português? Por outro lado: se os exibidores sentem que não há procura pelo cinema português como é que lhe podem garantir espaço? Entendo os dois lados, mas acredito piamente que uma das soluções para aproximar o cinema português do público e vice-versa passa por um trabalho conjunto entre produtores, distribuidores e exibidores em que o marketing e a comunicação de cada filme sejam devidamente pensados e em que exista um maior investimento e tempo, lá está, para pensar essa estratégia e para que os filmes portugueses estejam nas salas o tempo suficiente para poderem ser vistos. Assim, a própria comunicação pode fazer efeito e o boca-a-boca funcionar. Isto tem de ser feito não apenas para um filme, mas para todos e constantemente para criar hábitos junto do público. O Carga resultou na distribuição nacional porque trabalhámos de perto com os exibidores e acredito que isso fez toda a diferença. 

Já em 2019, filmaram “Sombra”. O filme foi selecionado para o Raindance Film Festival. Apesar de o fruto do vosso trabalho já ter sido apreciado nacional e internacionalmente variadas vezes, assim como premiado, sentiu que este era mais um patamar que subiam rumo aos vossos objetivos?

Sombra é um filme muito especial: o Bruno Gascon já o disse muitas vezes e eu concordo com ele. As pessoas que conhecemos em todo o processo, o facto de ser inspirado em factos reais e podermos ter o privilégio de conhecer os intervenientes, o elenco e equipa que reunimos, a forma como fomos recebidos em Viana do Castelo e como todos os parceiros se juntaram por acreditarem tanto no projeto é algo que, só por si, é tremendamente gratificante. O filme teve uma belíssima aceitação internacional, mas a nível nacional acredito que poderia ter chegado ainda mais longe, no entanto, estamos num contexto muito complicado devido precisamente à covid-19. A cada filme sentimos sempre que subimos mais um patamar rumo aos nossos objetivos: contar histórias com a maior verdade possível e que possam fazer a diferença. Já ouvi dizer muitas vezes que as pessoas não querem saber do cinema português ou que não vale a pena falar dos temas que abordamos: eu digo sempre que estão errados porque as pessoas querem saber, mas é preciso que a informação lhes chegue. Existe um estigma relativamente ao cinema português e uma dificuldade do mesmo em conseguir comunicar, seja porque não existem muitos espaços de promoção de cultura, seja porque nem todos os filmes conseguem ter acesso a essas janelas de divulgação. E isso tem de mudar. 

Esquizofrenia e solidão em “Boy”, depressão e suicídio em “Vazio”, tráfico de seres humanos em “Carga”, desaparecimento de crianças e jovens em risco em “Sombra”: decidiram desde o primeiro momento que trabalhariam temas controversos e de cariz social ou estes foram surgindo espontaneamente? 

Os temas são sempre escolhidos pelo Bruno Gascon que tem todo o meu apoio dado o meu passado como jornalista. 

Acha que o facto de ter sido jornalista, numa primeira fase da sua presença no mundo laboral, ajudou-a a ter facilidade e sensibilidade em/para explorar temáticas como estas?

Existem muitas formas de mostrar a realidade: o jornalismo pode fazê-lo e a ficção também. Tenho muito orgulho do papel que os nossos filmes têm tido na sensibilização para as causas que abordam. Não quero com isto dizer que vamos exclusivamente explorar estas temáticas, mas são sem dúvida as que acho mais gratificantes e que me motivam mais enquanto produtora. 

No início deste ano a Caracol Studios filmou “Evadidos”, “o novo filme de Bruno Gascon que fala de temas como o direito à liberdade, sendo que planeiam finalizar o projeto em 2022. Pode revelar alguma informação adicional sobre o projeto ou ainda tem de ser mantido “no segredo dos deuses”?

Neste novo filme, o Bruno criou uma distopia realista onde nos vai colocar a todos a pensar para onde caminhamos no presente. Fiquei muito entusiasmada quando li o argumento pela primeira vez porque acho que falar sobre liberdade e direitos humanos faz cada vez mais sentido. Filmámos em Barcelos, uma vez mais com o apoio de um número incontável de parceiros que, mesmo durante a loucura que é este mundo após o surgimento da covid-19, quiseram a apoiar-nos. O filme é protagonizado pelo ator Tomás Alves e conta com um elenco maravilhoso. Para já não posso revelar mais nada.

Para além do “Sombra”, nos outros filmes também conversaram com pessoas que viveram as situações em causa para estarem mais inteirados dos temas e fazerem uma pesquisa profunda? 

O Bruno, sem ter sido jornalista, incorporou no seu método muitas das ferramentas que os jornalistas utilizam. Ele trouxe-me o cinema e eu acredito que lhe transmiti essa vertente. 

É habitual dizer-se que “Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança”, da autoria de Aurélio da Paz dos Reis, realizado em 1896, é o primeiro filme português. Nestes mais de 100 anos, o cinema nacional cresceu a olhos vistos. Na sua opinião, devia ter havido um “salto” ainda maior desde o início e a atualidade ou o problema reside no facto de que muitos portugueses não dão o devido valor àquilo que é produzido cá?

Têm sido dados passos importantes, mas há muito a ser feito. Na minha visão, além de financiamento, falta sobretudo aproximação ao público. Não me serve de nada conseguir financiar um filme se ele não chegar às pessoas. Não é esse o meu objetivo. Têm vindo a aumentar as iniciativas de promoção do nosso cinema, os festivais e os cineclubes têm vindo a fazer um trabalho incrível, mas continua a não ser suficiente porque temos décadas de distanciamento do público. Existe uma ideia preconcebida de que o cinema português é aborrecido e elitista e isso não é inteiramente verdade. Quando me dizem isso costumo perguntar qual o último filme que viram e por norma não me sabem responder. Existe um julgamento ainda sem se ter dado a oportunidade de conhecer o que existe e o que está a ser feito. Mas não podemos culpar exclusivamente o público já que muitas vezes esse julgamento, infelizmente, começa dentro da própria área. Acredito que é redutor limitarmo-nos a rótulos e a julgamentos preconcebidos até porque na diversidade existe sempre uma maior riqueza para o país e para todos. Nos últimos anos sinto que têm surgido cada vez mais realizadores e produtores, que se arrisca cada vez mais ao nível da produção, mas que além da falta de financiamento continua sobretudo a faltar isso: sensibilização do público para o cinema português e uma forte aposta estratégica na comunicação e marketing de cada filme. Falta também repensar a distribuição e a exibição. Vou dar um exemplo: ao nível de aproximação do público à ficção portuguesa que me parece muito bem conseguido e que é o da RTP que tem apoiado inúmeros filmes e séries portuguesas. O resultado está à vista: maior diversidade de conteúdos, mais realizadores e produtores a filmarem e isso leva a que se criem hábitos no espetador e alguns dos conteúdos disponibilizados obtenham imenso sucesso. A aposta na RTP Play, única plataforma de streaming portuguesa totalmente gratuita, permite que esses mesmos conteúdos possam estar constantemente acessíveis e cheguem a públicos diversificados. Acho que a distribuição, a exibição e mesmo nós produtores temos de nos focar em conseguir essa mesma aproximação ao nível do cinema. Acredito que as pessoas iriam mais vezes ver filmes produzidos em Portugal se tivessem conhecimento da existência dos mesmos e se estivessem acessíveis. As janelas de exibição de um filme português são muito pequenas quando comparadas com um filme americano, por exemplo, obviamente estamos a falar de targets e budgets diferentes, mas se não fizermos esse investimento de valorização do nosso cinema será sempre muito difícil chegarmos às pessoas. Depois existem outras questões que têm de ser repensadas, como a da distribuição geográfica das salas de cinema pelo país – de que já falei anteriormente – e que limita o acesso do público às mesmas porque ninguém quer ter que conduzir duas horas para ver um filme. Acho também essencial que se reforce e incentive o acesso das escolas ao cinema nacional. Promoção e acessibilidade parecem-me palavras-chave.

Existem filmes que a tenham marcado profundamente e inspirado para fazer mais e melhor? Quais são as suas personalidades de referência no mundo cinematográfico?

Existem vários filmes que me marcaram, assim de repente: I, Daniel Blake (Ken Loach), Arrival (Denis Villeneuve), Requiem for a Dream (Darren Aronofsky), Son of Saul (László Nemes), Dogman (Matteo Garrone), Cold War (Pawel Pawlikowski), o Pianista (Roman Polanski), Laranja Mecânica (Stanley Kubrick), A Grande Beleza (Paolo Sorrentino)… É difícil escolher apenas um filme porque tenho um gosto muito diversificado e faço questão de tentar ver tudo. Se o filme for bom retiro sempre alguma coisa dele. Gosto de ver cinema. Ponto. A nível do mundo cinematográfico existem várias pessoas que são uma referência para mim, mas acredito que devemos estar sempre abertos ao que nos rodeia porque nunca sabemos onde vamos encontrar a nossa próxima referência ou onde vamos retirar algo que poderá ter relevância para a nossa aprendizagem pessoal ou profissional. 

Sente que o vosso trabalho é mais aplaudido no estrangeiro do que em Portugal? 

Pela universalidade dos temas dos filmes que a Caracol produz tem sido sempre muito mais fácil sermos bem recebidos e compreendidos a nível internacional. 

Os outros países têm uma noção da importância da cultura para o desenvolvimento humano diferente da nossa e, por isso, entendem mais rápida e facilmente a necessidade de fomentar o crescimento do cinema?

Existem menos rótulos. Quando um filme é visto é-o somente pela sua história, sem estigmas. Comparando Portugal com os outros países, lá fora existe um elevado investimento financeiro na cultura no geral o que leva a que exista maior diversidade e maior sensibilização do público. Acho que temos muito a aprender com os exemplos internacionais, mas têm sido dados passos muito importantes para fomentar o crescimento do cinema: o tax refund (Pic Portugal) é um deles.

As plataformas de streaming “roubaram” muitos espectadores às salas de cinema tradicionais. Contudo, pensa que este pode ser o início de uma nova era que até beneficiará mais o cinema português por permitir que este se aproxime mais das gerações mais jovens por meio do imediatismo do mundo digital? 

As plataformas de streaming têm possibilitado que o público consuma filmes e séries de outros países e tudo o que nos permita ganhar mundo é muito importante. Espanha é um bom exemplo da forma como a Netflix, por exemplo, influenciou positivamente a indústria cinematográfica e audiovisual e existem outros casos de sucesso pelo mundo. 

Quais são os maiores potenciais desta nova forma de ver filmes, séries, documentários e afins?

As plataformas têm um potencial imenso, desde logo pelo alcance global e pela capacidade financeira que têm. Num país como Portugal, com tantas fragilidades ao nível do investimento no cinema e audiovisual, acredito que a sua aposta na nossa produção é benéfica e pode contribuir para uma maior diversidade. Acredito na evolução e não acho que as plataformas roubem completamente o espaço aos cinemas até porque não é a mesma coisa ver um filme no cinema ou vê-lo em casa. Cinema será sempre cinema. No entanto, acho que a produção, a distribuição e a exibição vão ter de se reinventar tal e qual como fizeram ao longo dos tempos. É desafiante? É. Mas faz parte da evolução. Quando a televisão surgiu também se achou que a rádio iria desaparecer, no entanto continua a existir…

No comunicado enviado ao ICA, o Chairman da European Film Academy, Mike Downey, afirmou estar “verdadeiramente entusiasmado por ter uma produtora do calibre da Joana Domingues como novo membro do Board da EFA”. Esta conquista constituiu uma surpresa? Como é que se processou tudo até este momento?

Mais do que uma surpresa foi uma honra. Já era associada da European Film Academy e acompanhava de perto as atividades. Identifico-me muito com a forma inclusiva como promovem todo o cinema europeu. Quando a EFA abriu as candidaturas para as eleições candidatei-me e fiquei muito feliz com a notícia de que tinha sido eleita pelo peso histórico que a European Film Academy tem, pelo incrível trabalho que faz, porque isso me permitirá colaborar com pessoas cuja carreira já admirava e, sobretudo, pela oportunidade de representar Portugal e Espanha juntamente com o Antonio Saura. Nos últimos anos estes dois territórios foram sempre representados por membros da EFA que eram de Espanha, por isso sinto uma responsabilidade muito grande por poder dar voz a Portugal e acredito que coisas boas irão nascer do trabalho que vamos desenvolver em conjunto.

“Como produtora, como mulher e como portuguesa sinto uma alegria e uma responsabilidade enormes com esta eleição”, disse, acrescentando que “trabalhar de forma bastante próxima com os restantes elementos do Board da EFA de forma a garantir novas oportunidades de colaboração e desenvolvimento de novos projetos”. Tal como nos outros setores da sociedade, ainda existe desigualdade de género no mundo cinematográfico? 

Existe, claro. Não é algo exclusivamente nacional, mas sim global e sinto que acontece de forma generalizada embora estejam a ser feitos esforços para que essa tendência se inverta. A European Film Academy tem feito muito trabalho no sentido de combater as desigualdades de género e a própria instituição é um bom exemplo nesse sentido, integrando diversas mulheres no seu board, sendo que, por exemplo, a sua atual presidente é uma mulher, a realizadora Agnieszka Holland. 

Alguma vez foi discriminada profissionalmente por ser do género feminino?

Como produtora e como jornalista nunca fui discriminada por ser mulher, mas conheço vários casos de pessoas que viveram situações muito complicadas e é por isso que acredito que é importante que exista igualdade de direitos e deveres para todos independentemente do género. É importante sobretudo perceber-se que não é o género que define se somos ou não competentes ou mais capacitados para determinada função, mas sim a eficácia e brio profissional que temos no desempenho da nossa atividade. 

A EFA foi fundada em 1988 pelo realizador Ingmar Bergman juntamente com outros 40 colegas. Wim Wenders (1996-2020) e Agnieszka Holland (atual presidente) foram os seus sucessores. Sente uma responsabilidade acrescida por pertencer a um órgão internacionalmente validado ou está ciente do valor que tem e acredita que, dando o seu melhor, representará Portugal e a Península Ibérica, com Antonio Saura, de modo a que os dois países sejam beneficiados?

Sinto uma tremenda responsabilidade e estou muito feliz por poder colaborar com esta instituição que tem desenvolvido um trabalho incrível ao longo dos anos. A EFA está muito direcionada obviamente para a divulgação e promoção do cinema europeu, interessa-me particularmente o trabalho que têm feito e querem continuar a fazer relativamente à criação de públicos. Quero aprender com eles e partilhar também a minha experiência. 

Que objetivos tem em mente? O que pensa fazer? Há algo que deseje alcançar em breve?

Tenho uma série de ideias que já lhes apresentei e conto reunir também com uma série de entidades portuguesas e espanholas para ouvir diferentes vozes e perspetivas. Aprendemos sempre muito quando contactamos com diferentes realidades e isso enriquece os projetos. Gostava também de conseguir que algumas das atividades da EFA passassem por Portugal e Espanha de forma mais frequente e que a cerimónia dos European Film Awards fosse realizada em Portugal brevemente. Acredito que seria vantajoso para o país a vários níveis. 

Está a trabalhar na fase de pré-produção da primeira longa-metragem de António Sequeira em co-produção com o Reino Unido,  que ainda na fase de guião foi selecionado ao Sundance Lab e ao Torino Film Lab. Já está habituada ao prestígio atribuído àquilo que faz ou ainda pensa na Joana pequenina e sonhadora que escrevia e lia que, muito provavelmente, não imaginava que chegaria até aqui?

Tenho tido a sabedoria de me rodear de pessoas que acreditam profundamente naquilo que fazem o que torna muito mais interessante e estimulante o meu trabalho. O sucesso não é um dado adquirido, é sempre fruto de trabalho de equipa e a sorte dá muito trabalho. Existem muitas noites sem dormir, muitos problemas, muitos obstáculos, mas o essencial é acreditares no que fazes caso contrário é impossível dedicares-te ao máximo. Claro que as pequenas vitórias são sempre muito saborosas, especialmente porque são obtidas com muito sacrifício. Mas o tempo para celebrar é sempre curto porque, lá está, há sempre muita coisa para fazer. Acredito que a capacidade de sonhar e de querer evoluir que tenho veio dessa Joana que cresceu no Alentejo.

Estão a desenvolver novos projetos com parceiros nacionais e internacionais. O que pode adiantar acerca dos mesmos?

Neste momento ainda estamos em negociações pelo que não posso adiantar muito mais. Interessa-nos trabalhar com parceiros com visões diferentes da nossa, pelo que estamos entusiasmados com os projetos que estamos a desenvolver para os próximos anos.