Clássico. O lento espalhar do fel…

Clássico. O lento espalhar do fel…


O quádruplo confronto entre Benfica e FC Porto nos anos de 1938 e 1939 serviram para o cimentar de uma rivalidade que ultrapassou as raias da doença.


(continuação da edição de ontem)

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O Campeonato de Portugal, por deliberação do congresso da Federação Portuguesa de Futebol, passara a designar-se Taça de Portugal. Pela primeira vez disputava-se sob este novo nome. No ano anterior (1938), e embate entre Benfica e FC Porto fora tremendo para os quartos-de-final do Campeonato de Portugal. Depois da derrota por 2-4 no Ameal, os encarnados viraram as coisas a seu favor com uma estrepitosa goleada de 7-0 que meteu uma série de cenas pouco edificantes à mistura, com expulsões de parte a parte por agressões absolutamente inevitáveis e indesculpáveis. Por isso, não havia que esperar um ambiente amigável, desta vez no majestoso Campo do Lima, no dia 11 de Junho de 1939. Com uma linha avançada de luxo – Lopes Carneiro, Santos, Costuras, Pinga e Carlos Nunes –, os portistas atiraram-se para o ataque de forma desvairada. E o massacre previsível começou a ser construído muito cedo por um golo de Lopes Carneiro logo aos 6 minutos. A voz de comando de Francisco Ferreira fez-se sentir entre os encarnados. Resistir! Durante alguns minutos equilibraram o jogo e conseguiram dar a ideia de que este poderia equilibrar-se. Simples momento de erro puro. Costuras marcou o 2-0 aos 16 minutos. Num repente de revolta, Alexandre Brito, a passe de Espírito Santo, dribla Soares do Reis e reduz para 1-2. Estão decorridos 22 minutos e os jogadores de ambos os lados batem-se galhardamente. Quando o árbitro Palma Santos mandou toda a gente baixar às cabinas, ao intervalo, as expectativas estavam em aberto.

O segundo tempo dos portistas foi destrutivo. Quatro golos sem resposta – Pinga, logo no início do segundo tempo, Carlos Nunes, aos 62 minutos, Costuras, aos 69, e de novo Carlos Nunes, aos 81. O resultado de 6-1 não deixava grandes possibilidades ao Benfica na segunda mão. Mas a história viria a revelar o contrário. Por entre raios e coriscos.

A desistência No dia 18 de Junho de 1939, num Campo das Amoreiras cheio como um abade, às 17h37 minutos teve início um dos mais tristes clássicos de todos os tempos. Sabendo que tinham de ganhar por seis golos ou mais, o público encarnado uivava como lobos enfurecidos enquanto, em campo, os jogadores disputavam os lances rijamente como se cada um estivesse no limite das suas vidas. Há velocidade e dureza. Soares dos Reis atrasa propositadamente as reposições de bola. Os ânimos exaltam-se. O árbitro, António Palhinha, de Setúbal, repreende o guarda-redes nortenho que parece estar-se perfeitamente nas tintas para o ralhete. É um jogo de tempo e contra o tempo. O primeiro golo do Benfica demora a chegar (Espírito Santo aos 26 minutos) e as esperanças encarnadas esmorecem com o esgotar da primeira parte e resultado tão curto.

O segundo tempo será terrível. Logo aos 55 minutos, Valadas dispõe de um penálti muito contestado pelos adeptos nortenhos. Remata com força, Soares dos Reis repele, mas na recarga o 2-0 confirma-se. O povo ulula nas bancadas e volta a acreditar no milagre, ainda por cima quando, cinco e dez minutos depois, Feliciano Barbosa colocam o placar em 4-0.

Ainda há tempo suficiente para jogar. E tempo que chegue para se marcarem os dois golos decisivos.

O FC Porto defende-se como pode e os lances vão-se tornando cada vez mais rijos. Aos 68 minutos, Rogério de Sousa faz 5-0; aos 71, é Valadas a fazer o 6-0. Espetacularmente, o Benfica dera a volta à goleada do Lima. Uma festa vermelha percorria o estádio como se fosse uma ventania.

Mas o pior estava para acontecer. Aos 75 minutos, uma entrada violenta de Reboredo acendera a fogueira do ódio. Depois de já ter repreendido vários jogadores portistas, o árbitro dá ordem de expulsão a Reboredo. Todos os jogadores do FC Porto o rodeiam, protestando com veemência. Há empurrões de um lado e do outro. António Santos também acaba expulso. Reduzidos a nove homens, os do Porto, humilhados e ofendidos, abandonam o jogo sob um silvo contínuo de assobios. O jogo não irá continuar.

A ordem veio do camarote onde estavam sentados os dirigentes portistas. A consternação e a indignação dividiam-se em partes iguais. O capitão Maia Loureiro, responsável pela Federação Portuguesa de Futebol assumiu o seu papel de litigante. Procurou que os jogadores do FC Porto regressassem ao campo de forma a que o último quarto de hora se jogasse. Nada a fazer. A decisão estava tomada e não teria volta a dar. O repórter de O Seculo que cobria os acontecimentos também tomava partido: “Atitude absolutamente injustificável. O jogo estava duro mas não atingira pontos de violência”. O Benfica apurava-se para a final da Taça de Portugal, a primeira a realizar-se com esta designação. A festa encarnada não se prolongaria. No jogo decisivo, a Académica de Coimbra arrebatou o troféu vencendo por 4-3. O troféu que traz inscritos todos os nomes dos vencedores, tanto do Campeonato de Portugal como da Taça de Portugal.