Chegados a esta altura do ano, impõe-se-nos uma época triunfal que se expressa por meio de listas, com veredictos que parecem assentar sobre um aturado esforço de mapear determinados sectores da cultura, encerrando a festa num balanço em que os destaques são propostos de forma impante e incontestável. Mas o que é evidente é que toda a actividade reflexiva e crítica é aqui abandonada em favor do regime publicitário, que, no fundo, é a verdadeira vocação de tantos dos que hoje assinam recensões nos jornais, e que mal podem esperar por nos vir com as suas listas, as suas preferências, nem se esforçando por esconder como estas se dirigem à ocupação do tempo de lazer, o qual se tornou hoje “o mais poderoso centro de atracção de toda a cultura, fazendo do entretenimento o seu centro de gravidade”, como nos diz António Guerreiro numa das crónicas reunidas no livro “Zonas de Baixa Pressão”. Sintomaticamente, essa que foi uma das obras mais relevantes publicadas este ano acabou ignorada e viu-se excluída destes acertos finais. Como assinalou em tempos Eduardo Prado Coelho, há uma estranha circunstância portuguesa que leva a que alguns dos mais importantes livros de ensaio e reflexão publicados entre nós sejam rodeados por uma espécie de silêncio, e ele admitia a hipótese mais favorável, que era isto resultar de uma resposta reverencial. Mas sabemos bem como funciona a lógica de compadrio entre aqueles que se organizam no nosso exíguo esquema mediático, e também sabemos como em torno de certas figuras se cria um perímetro de segurança, um silêncio que gere com frieza o seu respeito, desterra por meio de geladas desatenções, criando essa margem que é uma espécie de Sibéria para aqueles que são alvo da obstinação maníaca do ressentimento, que entre nós se organiza como um verdadeiro culto, cujos crentes se aliam com fins odiosos. O nosso mais destacado crítico da cultura foi há muito desterrado para essa Sibéria, o que é em parte a homenagem que são capazes de render os medíocres diante de figuras de excepção, cuja inteligência, mordacidade e o humor subtilmente corrosivo provoca tanto desconforto. Com as suas espantosas sínteses, Guerreiro tem sido capaz de estabelecer uma hierarquia de noções e conceitos, colocando a actualidade sobre a mesa como um paciente adormecido a éter, para operar nele e compreender quais as funções e os órgãos que prosseguem uma actividade normal e aqueles que entraram em falência. Este exame, que se aproxima cada vez mais da autópsia e do necrológio, gera um certo pavor e arrepio entre aqueles que integram as comissões de festas e se dedicam diariamente a esses ritos celebratórios quase sempre inanes, e, por comparação, faz de tantos dos nossos opinadores meros sucateiros que se orientam segundo uma lógica oportunista, valendo-se de lugares comuns, banalidades de base, preconceitos e torpezas de todo o tipo, incapazes de uma verdadeira intervenção crítica. No fundo, uma das suas principais virtudes está na capacidade de emboscar aspectos aparentemente anódinos nesse eixo das manifestações de superfície deste tempo e, através de um efeito de pressão nos pontos sensíveis, torturá-los, forçando-os a confessar o engodo e as cadeias de montagem e engrenagem em que participam, pondo a descoberto essa fábrica de ilusões que nos tem capturados. Mas voltando atrás, na tal crónica, este leitor-batedor que anda uns dias à frente para nos avisar sobre perigos que nos esperam, fazendo-nos reflectir também sobre outros que estão já entre nós, fala-nos de um lazer-mercadoria, usando um conceito do linguista e filósofo francês, Jean-Claude Milner, e destacando como cada vez mais o tempo de que gozamos para nos recompormos do trabalho vem sendo apropriado pela lógica mercantil dos tempos livres, notando como a cultura se deslocou do tempo de liberdade para essa forma de lazer que busca, sobretudo, consolos escapistas, e que se satisfaz “com um item do top Fnac ou com os roteiros da ‘cultura para fim-de-semana’”, deixando de lado, para um futuro cada vez mais improvável, a leitura de algum clássico colossal como "Guerra e Paz" ou "Moby Dick".
Neste regime das listas dos livros do ano, o esforço participa muitas vezes desse desígnio de tentar escandir o tempo, passando ao lado do que aconteceu e sobretudo do que não aconteceu, com vista a forjar uma relação entre alguns eventos numa articulação que nos permitiria reaver o tempo por meio de uma crónica sensível dos factos relevantes, produzindo em nós a ilusão de um efeito historicista, e que estaria em cima e não por baixo ou simplesmente alheado dos tais acontecimentos, capaz de traduzir o seu significado, e organizá-los nessa trama que nos faz sentir que vivemos dentro de um regime de perpétua actualização dos nossos conhecimentos. O que vai ficando claro a estas horas da noite é que os grandes vigias estão hoje mortos. E a perda dessas figuras não está desligada, no que à cultura diz respeito, do próprio fim do Livro, algo que não se confunde com a sua brutal desaparição da circulação social, mas antes, e até pelo contrário, com a sua proliferação absoluta. Hoje, falar sobre livros, fazer qualquer balanço e passar ao lado da forma como a abundância quantitativa destes mina o exercício de leitura e discussão que é essencial à sua circulação é ignorar a forma como este é mais outro aspecto da sua actual vocação para a redundância, o logro e o vazio.
O que seria desejável, no fundo, era que num balanço destes se desenhasse a figura de um homem caminhando de modo vivaz entre formas do pensamento, contemplando o seu lustre e como este molda a luz, numa espécie de harmonioso prodígio, criando assim a sua passagem através do tempo, para algo que se sustente a si mesmo, adquirindo uma força perene. Mas antes de passarmos às nossas escolhas, convém justificar pela nossa parte a entrega a este esforço, a um desejo de escapar à redundância que assinala uma existência saturada e esmorecida, mas também de criar com alguns títulos uma barragem para esse frenesi editorial que faz deste um sector espavorido, numa fuga para a frente, quando, neste momento, um grande acontecimento seria uma paragem súbita, um ano inteiro em que nada fosse publicado, e os leitores deixassem de se sentir espicaçados pelas novidades, afundando-se nas suas bibliotecas, nessas pilhas que se amontoam muitas vezes pelo chão, nos cantos, debaixo da cama e à volta desta, erguendo-se como colunas transformando o quarto e a casa numa “floresta saprófita cujos troncos cheios de ramificações ameaçam desalojar-nos”.
Não vale a pena fingir que se leu tudo o que foi publicado. Além de impossível, seria um constrangimento terrível ver-se confinado aos humores do mercado editorial, mas também não é avisado deixar de vez a vigilância nas muralhas sobre o deserto, pois, de tempos a tempos, ainda nos chegam alguns bárbaros desencaminhados, aparições inesperadas, gritos que nos atingem vindos do passado, e é importante salvar alguns espécimes da acção corrosiva dos vírus editoriais. É importante filtrar por meio de menções mais explícitas e menos grosseiras do que as banais aclamações, abusando-se, como é costume, da expressão “acontecimento literário”. Mas as listas podem funcionar, não tanto como uma imposição de títulos obrigatórios e que devem necessariamente ser adquiridos, e sim como um esforço para sinalizar uma espécie de retirada ou um resgate de certos valores conducentes à criação de uma comunidade. De resto, como vincou Irene Vallejo, “as enumerações têm que ver com a ordem como ansiolítico, ou seja, com o nosso sistema defensivo para neutralizar a expansão do caos”. A autora de “O Infinito num Junco” acrescenta ainda que estas também se prendem “com o doloroso convencimento de que temos os dias contados”, servindo como uma orientação entre toda a porcaria que nos enclausura e torna difícil chegar a esse sentido do Livro que se encontra fora dele, a partir do momento em que aquilo que deles extraímos nos permite ir mais longe na relação que mantemos uns com os outros. Resumindo a tese de Umberto Eco em “A Vertigem das Listas”, Vallejo diz-nos que no entender dele “as listas são, na verdade, a origem da cultura, parte da história da arte e da literatura”. Eco acrescenta que nas enciclopédias e nos dicionários encontramos formas elaboradas das listas. E todas elas – repertórios, bibliografias, índices, tabelas, catálogos, dicionários – tornam o infinito mais compreensível.
O nosso esforço aqui é bem mais modesto, mas prende-se com esse vínculo a que a admiração sempre nos força, e resulta de um entusiasmo que é também ele crucial no exercício da crítica, o de partilhar algumas coordenadas para lugares que se situam fora dos mapas mais comuns, zonas espantosas e, por vezes, terríveis também, e, deste modo, entregamo-nos a esse esforço de fazer alguma justiça a uns poucos livros que, na sua maioria, não mereceram grande atenção entre a voragem do que foi chegando aos escaparates, e que também não integram essas listas-pódio que outros jornais publicam numa cumplicidade com o regime geral das contabilidades. Se a escrita, segundo dizem os especialistas, nasceu para esse fim, ou seja, para fazer listas de cabras, de espadas e de ânforas de vinho, ou outras propriedades dos homens, tantos dos que se pronunciam sobre livros parecem estar apostados em fazer de tudo para que a literatura regrida de volta a algo dessa ordem e finalidade. E isso é uma marca bem específica desta época, e deste ano de 2021 em particular, de um mundo que, como notou o crítico do El País Javier Rodríguez Marcos, parece desfazer-se a cada noite e reconstruir-se a cada manhã, e no qual têm prevalecido os relatos na primeira pessoa. Isso aponta para uma tentativa de se salvar a si mesmo e à sua consciência, construir com palavras uma arca de Noé para benefício de um só. É um bom retrato do individualismo que, tudo aponta, persistirá até ao último soluço, e que se tem intensificado com a sensação de catástrofe iminente (política e ecológica). Aqui, por outro lado, tentamos que as escolhas que propomos se liguem a um desejo mais amplo de resgate.
ESCOLHAS DE DIOGO VAZ PINTO
Diários, volume I
Witold Gombrowicz
Antígona
O livro do ano seria um murro nas trombas. Este é. Uma obra que nos atirasse para fora do habitual cerco, das ninharias fétidas com que nos fazem chafurdar neste inferno caseiro, nessa espécie de missa em que nos vemos a acompanhar o coro e a benzer-nos por desfastio, ou também nalguma fila para essas sopas de fácil digestão em que se especializaram os nossos exaustos escritores tão acarinhados por uma imprensa que faz lembrar um hospital. “Se ao menos, neste reino de ficção passageira, se pudesse ouvir a voz da realidade!” Abrangendo um período de seis anos (1953-1958), a partir do exílio a que se viu forçado na Argentina, neste primeiro volume dos seus diários, Gombrowicz vai muito para lá do registo das suas rotinas diárias, encontros ou viagens, lançando-se em fulminantes diatribes contra o meio literário no seu país natal, a Polónia, visando ainda a comunidade emigrante, e expondo as suas ideias de forma enfática, com uma sagacidade, um desembaraço e até uma malícia admiráveis, revendo as suas opções enquanto autor, o seu processo de escrita, mas também uma miríade de temas que, com a profundidade que a sua lente os aborda, mantêm toda a relevância, seja o comunismo, o existencialismo e a própria democracia.
Uma Última Pergunta: Entrevistas com Mário Cesariny
Documenta
Vai sendo raro, hoje, dar com autores que estão ainda embrenhados nos bosques onde tudo soa, onde o próprio sangue é uma armação vigilante e uma emboscada, onde as alucinações de espaço afiam os sentidos, e nos quais há um regime dirigido à perseguição de mitos, com a escrita a funcionar como uma razão fenomenal, um diálogo consigo mesmo através desses outros que fazem de nós uma antologia da própria humanidade. “Na poesia, na escrita estão todas as nossas vísceras”, disse Cesariny. Este volume antológico das entrevistas que o poeta deu entre 1962 e 2006, o ano da sua morte, serve para uma série de ajustes de contas de forma a ajudar-nos a escapar da Cisterna das Sombras em que vivemos atolados. Um volume espantoso pela lucidez e o fulgor e que exige ser integrado no melhor da obra deste poeta que sempre nos foi alertando para as mutilações que nos provoca uma sociedade desolada e cínica.
Ulisses
Benjamin Fondane
VS Editor
Os últimos anos no que toca à edição de poesia inédita entre nós têm sido particularmente sofríveis, mas é difícil encontrar outro calendário sem quaisquer marcas, um ano tão deplorável como foi este, sendo difícil também alinhar sequer os candidatos a um pódio que não envergonhe. Felizmente, uma das edições mais assombrosas do ano apresentou-nos a um formidável poeta desaparecido nos campos de concentração nazis em 1944 e de quem não nos tinha chegado, até hoje, qualquer notícia. De súbito, no ano de todos os descontentamentos, damos por nós diante de uma visão estarrecedora da nossa época, diante do testemunho de um poeta-filósofo que nos revela o segredo perdido da nossa substância: “Tínhamos ar de desconhecidos que dançaram num baile,/ que se apoiaram por um momento um no outro/ e que receiam misturar o seu suor e o seu sonho,/ enquanto neles se davam festins fabulosos/ vinhos sem amanhã tiniam nos seus ouvidos,/ e uma música subia como um jardim suspenso (…)”.
Um Vestido Curto de Festa
Christian Bobin
Barco Bêbedo
Na década de 1990, Bobin vendeu mais de um milhão de livros em França, tornando-se alvo de desprezo por parte dos escalões superiores do meio literário, tendo os seus livros sustido uma sucessão de ataques da crítica, que se empenhou em provar que se tratava de um desses fenómenos de popularidade que fazem fronteira com o regime das espiritualidades, essa peçonha dos bons sentimentos expressos numa linguagem delicodoce, regurgitando frases feitas, gémeas do timbre motivacional de tantos livros de auto-ajuda. Tendo resistido a esses ataques, o autor manteve intacta essa canção furtiva a que se entrega, através de ensaios poéticos, sendo uma espécie de místico desabusado e atento ao “despontar de uma frase na profundidade da carne”. E tendo persistido e continuado a publicar, pode dar-se por contente já que “o seu nome não está ainda quieto, deitado nos dicionários. O seu coração não está ainda gelado pela glória.”
Inventário de Algumas Perdas
Judith Schalansky
Elsinore
Há um fascínio próprio do detalhe, da imaginação por ele desencadeada, essa forma de enredo um tanto acidental, e que, mais do que a respiração monumental da História, se liga a um juízo meticuloso, um zumbido existencial, como o de quem se ocupa com a organização de um arquivo, expondo uma série de nexos sobre o que nos orienta, desde a relação íntima com as coisas, entre a memória e o esquecimento, nessa tentativa de salvaguardar os traços decisivos que poderiam restabelecer para nós a sensação do mundo. Numa série de 12 textos em que a fronteira entre a narrativa e o ensaio se descose, esta autora nascida em 1980 na ex-RDA, habitua-nos ao estranho encanto da perda, a essa mágica defensiva de se lançar numa contemplação sobre o que à nossa volta reflecte a irremediável ruína de tudo e nos serve de balanço para o nosso próprio impulso de preservação e destruição.
ESCOLHAS DE TERESA CARVALHO
Ilhíada
Alberto Pimenta
Edições do Saguão
Escandido em 24 momentos, não é o poema da força e da guerra, como o poema homérico. Mas é a guerra da força do poema, misto de abundância e contenção, ferocidade máscula e delicadeza íntima, seriedade e ironia. O mais metamórfico poeta português toma todas as liberdades em relação à tradição para seguir o seu caminho de fidelidade traidora e investir sobre falsários, os da língua incluídos. Centrada no cerco às históricas ilhas do Porto, a “Ilhíada” traz no bojo a figura do aedo, raptos, sacerdotes, oráculos, lances fúnebres. E não lhe faltam pelejas, nem dores de Menelau. Sequer o equivalente precário de Aquiles. O elenco é extenso e rompe com tradicionais padrões heróicos. Tem a patine do lugar incrustada no corpo. Oprimidos, excluídos, deserdados dão o que neles próprios é falta.
O Desassossego da Noite
Marieke Lucas Rijneveld / Tradução de Patrícia Couto
Dom Quixote
A morte tem neste livro, centrado na tirania da dor no luto, cabide próprio. Situado numa quinta do interior rural dos Países Baixos, é o poderoso romance de estreia da mais jovem autora distinguida com o prestigiado Booker Prize, a fabricar imagens fortes que obedecem à força de um singular dínamo associativo. Não é livro para estômagos fracos, sensíveis a cenários escatológicos. A dias do jantar de Natal, uma rapariga de 12 anos imagina o coelho de estimação estendido em cama de alface, mais que provável leito de morte. Zangada com o irmão, roga-lhe uma praga que jamais imaginou que funcionasse: que Deus levasse Matthies em vez do seu coelho. O sentimento de culpa, como o casaco vermelho, não mais os conseguirá despir. É camada protectora e cobertura de angústia, identidade que se vai desfiando.
Afastar-se (treze contos sobre água)
Luísa Costa Gomes
Dom Quixote
Livro de contos coleccionados ao longo de mais de cinco anos – treze, um número que muito discretamente pretende assinalar 40 anos de vida literária, começados com a publicação de «13 Contos de Sobressalto». Mantêm-se o cuidado construtivo, o registo narrativo ágil; apurou-se a ironia; adensou-se a discreta vontade subversiva. Não há conto que não meta água: da água doce ao mar salgado (e “requentadas noivas”), da água doméstica às transformadoras águas da História, do duche redentor ao lava-pés. Depois, há a sede da experimentação e os goles de ironia, pedrinhas de gelo a acompanhar. «Redondilha» é um conto paródico que mergulha no nosso meio cultural: presidentes de junta e literatos, com suas quezílias e farpas, arrazoados culturais, frases ocas, resultados inanes. Melhor: no simulacro do nosso meio cultural.
Feliciano
A. M. Pires Cabral
Tinta-da-China
Romance picaresco, caberia quase inteiro numa exigente antologia de histórias de azar. Somadas, são mais que muitas, parcelas de um todo uno, bem executado, com curtos capítulos encimados por estupendos sumários narrativos. O desditoso protagonista dá pelo irónico nome de Feliciano Boaventura. É um íman a atrair a desgraça: doenças, acidentes, pequenos e grandes desastres, apostas infelizes, cálculos de pontaria aproximativa, sinais aziagos por decifrar. A desgraça em sucessão avoluma o nosso riso, que do azar da personagem retira um perverso prazer, e a pergunta: «O que é a sorte, o que é o azar? porque é que deus não se envolve directamente na gestão destas duas forças?» É um romance inimigo da ideia da aceitação pacífica e do português empobrecido. Sorte a do leitor.
Palavras são Imagens são Palavras
Sérgio Godinho
Quetzal
É sólida a relação que o autor mantém com as artes, pautada pela volubilidade. Fidelíssimo à música, abre-se à sedução da ilustração, da pintura, do teatro, do cinema, mas também da fotografia com a qual mantém um relacionamento mais ocasional. É um caso de poligamia artística, um sistema de união com mutáveis protagonismos, pouco propensa a hierarquias rígidas. Neste livro, poemas e fotos dispõem-se a dialogar. O formato da vizinhança imagem / poema a cada dupla página não prende o poema ao campo de visão que cada fotografia propõe. Céus (numa variedade assinalável), grades, mais ou menos flexíveis, portas e janelas com saídas nem sempre praticáveis são estruturas que se repetem ritmicamente, como numa pauta musical.
Babilónia
Ana Cássia Rebelo
Book Builders
Eis uma miscelânea de géneros ditos menores: conto, diário intimo, digressões, apontamentos. Seis anos bem contados depois de “Ana de Amsterdam”, Ana Cássia Rebelo volta a responder ao apelo da literatura e regressa ao papel impresso. Trouxe o jogo de facas com que gosta de rodear a alma feminina e as suas misérias – assumidas, confessadas, desabafadas. E afiadinho o suficiente para cortar com a moralidade convencional. Com ele, desossa carnes gordas, golpeia o lar doce lar, desmembra respeitosas instituições como a família ou a igreja, desmancha as fachadas da sociedade em que vivemos. “Babilónia” é um livro cheio de fibra literária que segue as aventuras de Aninhas, uma mulher de várias facetas que se desloca em metamorfose. Ora está na urbe ora na orla ora no campo, ora se perde de si mesma ora se encontra.
ESCOLHAS DE JOÃO OLIVEIRA DUARTE
Todos os Poemas
Friedrich Hölderlin
Assírio & Alvim
Saindo da imensa fábrica de tradução de João Barrento, temos agora ao nosso dispor, em língua portuguesa, a poesia completa de um dos maiores poetas alemães. Incluindo também um conjunto de textos poetológicos, Todos os Poemas mostra todas as etapas da poesia Hölderlin, desde a juventude até ao poemas dos últimos decénios, já depois de ter caído na loucura; mostra, igualmente, as reformulações que diversos poemas foram tendo, as continuidades temáticas e a amplitude “tonal” desta poesia, que, como refere João Barrento no prefácio, não encontra igual em língua portuguesa. Mas dá-nos a ver, também, a manhã de festa da poesia, a exuberância do verso longo, o fôlego de uma poesia que se move nas extremidades, que pode ir do assombro imparável (a abundância da metáfora do rio que tudo arrasta) ao mais fundo e desesperado luto.
Teatro Completo
Samuel Beckett
Edições 70
Foi o esforço de um conjunto bastante heterogéneo de tradutores (o projeto era antigo, tendo sido apresentado à extinta Cotovia), conferindo às diversas peças para teatro e radiofónicas uma grande diferença de soluções formais. Em todo o caso, um dos acontecimentos editoriais do ano terá sido esta edição do Teatro Completo de Samuel Beckett, que nos permite ver o progressivo depuramento que ele foi impondo ao que ia escrevendo. Abrindo com À Espera de Godot, vamo-nos deparando com esse universo negro, astro gélido onde não sopra nenhum vento de esperança, onde as figuras perderam a postura erecta, rastejando como animais, cada vez mais soterrados na terra ou dormindo em espaços minúsculos. Em momento algum, em todas estas peças, encontramos o mais leve indício de esperança ou de salvação. Só um riso febril que atravessa este deserto.
Poemas
António Franco Alexandre
Assírio & Alvim
A última vez que publicou foi em 2004, com Aracne, e depois disso foi um silêncio que durou até agora – com livros, como Duende, já há muito esgotados. Este último, aliás, é provavelmente dos melhores livros de poesia dos últimos cinquenta anos, começando logo em tom maior e inactual: “fosses tu deus, seria eu santo/ alimentado a areia e gafanhotos,/ sem cessar meditando o único nome/ que o horizonte deserto não contém.” A edição é cuidada, fugindo aos tomos de capa dura, com uma revisão infatigável de Luís Manuel Gaspar, mostrando toda amplitude que esta poesia consegue atingir. Encerra com um ciclo inédito de poemas, Carrocel, onde se nota uma preponderância cada vez maior do judaísmo (a presença do Shabbat, por exemplo) e um humor, ou ironia, que ia espreitando aqui e ali em lugares diversos da obra – veja-se, por exemplo: “sempre convém/ acautelar/ a tradição arcaica do massacre”.
Três Conferências, Primeira: lança o teu pão sobre as águas (sobre Qohélet/Ecclesiastes)
Maria Filomena Molder
Edições do Saguão
O ano encerra com a chegada do primeiro tomo de um conjunto de três que tiveram por base as conferências que Maria Filomena Molder deu, na Culturgest, em 2015, 2016 e 2017. O cenário destas conferências foi muito pouco comum num país sem tradição filosófica: o auditório cheio, ao ponto de obrigar a abertura de salas adjacentes, também elas cheias, lembra outras latitudes e outros tempos, quando a filosofia, mesmo árida e difícil, conseguia chamar a si o actual (que não convém confundir com aquilo que está na ordem do dia).
E o que encontramos, ao longo destas quase trezentas páginas, é o embate, o corpo a corpo com um dos textos maiores da tradição por parte de uma leitora bastante incomum e inactual: “Qohélet não promove boas acções, não é exortativo, é um texto de lucidez feroz e mostra não só a possibilidade, como o carácter vão e grotesco de qualquer tentativa de sistema.”
ESCOLHAS DE GUILHERME P. HENRIQUES
A Lição do Sonâmbulo
Frederico Pedreira
Companhia das Ilhas
Vencedor, este ano, de dois prémios literários (Prémio de Literatura da União Europeia e Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz/Fundação Millenium bcp), é um livro que apresenta a memória e a capacidade de observação do narrador como os principais instrumentos expositivos de uma escrita torrencial, de parágrafos longos e de cadência proustiana. Dispensando o enredo, dá-se luz às mais diversas associações (literárias, desportivas, musicais) espoletadas pelos sentidos (atentos aos cheiros, sons, imagens) e enformadas por descrições literariamente robustas, entre a intimidade de uma família e a universalidade de uma geração brotada dos anos oitenta. Aqui se prova, entre o mais, a possibilidade de uma narrativa de pendor autobiográfico sem a frivolidade dos enfeites gratuitamente sentimentalistas.
Tomás Nevinson
Javier Marías
Alfaguara
Considerado, pelo El País, como “talvez o melhor romance que Javier Marías já publicou”, aqui se encontram, condensadas, as principais características do autor espanhol: divagações tão cultas quanto permanentes, corporizadas por personagens complexas e dilemáticas, expostas a um enredo interessante e bem construído. O narrador é Tomás Nevinson, um espião introspectivo e profundo, que parece não conseguir dar um passo sem a precedência dubitativa do pensamento, sem uma associação filosófica, sem um poema nos pés. Sustentado e embalado pelas mais diversas referências literárias cinematográficas, filosóficas e históricas, vai oferecendo avanços ao enredo – avanços sempre lentos, claro, sempre feitos de paragens, de silêncios e divagações, ou não fosse Marías o sopro que projecta a sua voz.