Numa época em que o campeonato espanhol se viu, logo de início, amputado de um dos maiores candidatos ao título, o Barcelona, mergulhado numa crise há muito não vista, surgiu quem tenha ganho o direito ao sonho. O Sevilha, por exemplo, que hoje mesmo recebe o Barcelona no Sánchez Pijuán e, em caso de vitória, ficará a três pontos do líder Real Madrid e já à confortável distância de sete pontos de avanço do terceiro colocado, o seu rival preferido, Bétis.
Altura boa para recordar que nos seus 131 anos de vida, o Sevilla Fúbol Club, fundado no dia 25 de janeiro de 1890, só por uma vez conseguiu ser campeão de Espanha, na época de 1945-46, ainda a Europa estava a acordar do pesadelo da II Grande Guerra. Não eram, apesar de tudo, tempos fáceis para o clube. O histórico presidente, Ramón Sánchez Pijuán tinha acabado de abandonar o cargo para ser presidente da Real Federação Espanhola e fora substituído por Antonio Sánchez Ramos que se declarou, de imediato, como presidente a prazo, esperando por eleições o mais rapidamente possível. E, rapidamente, seria por sua vez substituído por Jerónimo Domínguez y Pérez de Vargas, Marquês de Contadero, que tomou conta do posto durante seis anos até ao regresso de Pijuán. Foi, por isso, o Marquês, o presidente do título.
Disputava-se nessa época de ouro da vida do Sevilha, a 15ª edição de La Liga. Durante muito tempo, apenas a Copa do Rei foi a única competição oficial interna, embora, como é lógico, nunca ninguém tenha tido a ideia peregrina de transformar os vencedores da Copa em campeões espanhóis, como por cá. A prova disputava-se entre 16 equipas e o grande obstáculo para a carreira gloriosa do Sevilha foi o Barcelona, o mesmo Barcelona que hoje visita os andaluzes. Um ombro a ombro tão renhido que, ao fim de 26 jornadas, os sevilhanos agarraram o título por apenas um ponto de diferença, 36 contra 35. Pelas margens do Guadalquivir a festa foi rija e entrou pela madrugada. Os adeptos em êxtase estavam longe de imaginar que tal nunca mais haveria de acontecer.
A luta No dia 30 de março de 1946, o Sevilha foi à Catalunha, ao velhinho Estádio de Les Corts, defrontar o Barcelona num encontro absolutamente decisivo. Só a vitória ou um empate conduziriam os rapazes comandados por Ramón Encinas, um fulano nascido em 1893 em Pontevedra (viria a morrer em Madrid, no dia 21 de março de 1967), que treinara o Real Madrid entre 1943 e 1945, ao tão ambicionado título por muitos considerado impossível. No caso de derrota, o Barça sagrar-se-ia campeão de Espanha.
Era aquilo que os jornais gostam de apelidar de final. E só um poderia sair dela vencedor. Bem cedo no encontro, Araujo fez o 1-0 para os andaluzes. Depois sofreram a bem sofrer com a vertigem atacante dos blaugrana que caíram sobre os seus adversários como uma alcateia de lobos esfomeados. Com naturalidade, marcaram o golo do empate através de Bravo. Ainda estávamos na primeira parte e havia muito tempo para jogar.
“Sevilla es una torre/llena de arqueros finos/Sevilla para herir/Córdoba para morir/Una ciudad que acecha/largos ritmos/y los enrosca/como laberintos/Como tallos de parra/encendidos”, escreveu Garcia Lorca, o poeta que mais soube sentir a cidade. Sevilha para ferir; Córdoba para morrer.
A ferida que os sevilhanos tinham feito no peito do catalães parecia exsanguiná-los. Lançavam-se em hordas sobre um onze de homens forjados em ferro: Busto; Antúnez e Villalonga; Joaquín, Herrera e Eguiluz; Alconero, Campos, Araujo, Arza e López. Todos heróis de um conjunto que aguentou o 1-1 até final dos 90 minutos. O Bétis, que conquistara o título na época de 1934-35, deixava de ser o único campeão da cidade. Camionetas desfilaram pela estrada de regresso de Barcelona com cartazes dizendo VIVA EL SEVILLA CAMPEÓN DE LA LIGA. Esquecia-se a dolorosa época de 1942-43, quando o Sevilha terminou o campeonato em segundo, pisando os calcanhares do Athletic Bilbao. E Lorca continuava a ser lembrado por aqueles que tinham transformado a sua poesia em canções: “¡Viva Sevilla!/Llevan las sevillanas/en la mantilla/un letrero que dice:/¡Viva Sevilla!/¡Viva Triana!/¡Vivan los trianeros/los de Triana!/¡Vivan los sevillanos/y sevillanas!” Por todo o bairro de Triana, o mais castiço da cidade, berço de cantores e dançarinos de flamengo, o futebol fazia com que as danças ganhassem a fúria de uma alegria inusitada. Repetiam-se os abraços e erguiam-se vozes até ao céu: “Viva Sevilla!”