Idagações natalícias com A. M. Pires Cabral

Idagações natalícias com A. M. Pires Cabral


NoO mais recente livro do poeta transmontano A.M. Pires Cabral, “Caderneta de Lembranças”, este confronta-se com o Sentido Último da Realidade, Deus. Fá-lo, sob diferentes ângulos que poderiam ir da descrição do recurso a um deus-bombeiro – de que lança mão em “momentos de aperto”.


Conquanto a vida se vai “consumindo, consumando”, há balanços a fazer e futuros por congeminar. A inultrapassável finitude – e a morte não é “esquisita de boca” – pode implicar, é certo, beber a cicuta até ao fim, que significará, no limite, a consciência de uma rápida evanescência mesmo entre os mais próximos: até os vizinhos, prestimosos e inexcedíveis, todos carícias e atenções, “com o tempo,/vão-se habituando à nossa ausência/- tal como nós nos esquecemos deles/porque fomos esbulhados da memória”. 

E, no entanto, o cúmulo dos dias traz, também, boa nova, uma maturação definitiva, largam-se armas, arrelias e cansaços: neles, agora, “deixaram de caber rituais de guerra,/mas apenas silêncio, paz, serenidade/e algumas ervas cheirosas”. 

Conhece-se, então, de experiência feita, o sabor e saber do transcorrido, e uma (ancestral) imagem tem o condão de captar/dizer o próprio devir: [Carro de bois] “Tal como o arado – seu companheiro de armas,/feito, como ele, de madeira e pregaria -/há muito que perdeu o préstimo,/foi arrumado a um canto do curral/e já ninguém se lembra de como gemia/nas madrugadas esplêndidas de Julho/ao peso da promessa de pão. (…) E em algum Inverno de mais rigor,/conhecerá o machado,/tornar-se-á lenha e arderá/na lareira. Aquecerá então/os corpos aquele que durante tantos anos/ajudou a aquecer as almas”. 

Mas nem ao poeta foi dada a combinação dos códigos cósmicos que o livre de nos presentear com a sua imaginação em modo pródigo, conhecedor de tratados de filósofos e outros filmes Mátrix, como numa aula bem humorada de epistemologia, e em que assomam, afinal, as perguntas originais de nunca nos livramos (de onde vimos?): “Gosto de pensar que vim duma estrela longínqua/(talvez Alpha Centauri),/ (…) Mas provavelmente não foi de lá que vim/nem de nenhum outro lugar,/e provavelmente estive sempre aqui./ Provavelmente nem sequer estive nunca/em nenhum lugar, nem mesmo aqui,/nem mesmo agora./Provavelmente nem existe a palavra sempre/nem a palavra nunca nem nenhuma outra palavra -/incluindo aquelas com que me entretenho/a brincar aos polícias e ladrões./Provavelmente não passo duma espécie/de sudoku com que se entretém,/quando está enfadado,/algum deus neurasténico”. 

Nem, tão pouco, evita o sujeito poético, nos três capítulos derradeiros do caderno que nos deixa, confrontar-se com o Sentido Último da Realidade, Deus. Fá-lo, sob diferentes ângulos que poderiam ir da descrição do recurso a um deus-bombeiro – de que lança mão em “momentos de aperto” -, de um claro cepticismo – o rogo atendido não terá sido fruto do (simples) “acaso”? -, do Deus “mal explicado” das catequistas (de antanho), da possibilidade da descrença, do Deus que, mau grado o não demasiado apreço do sujeito poético pela ciência teológica, É – assim no-lo diz em diferentes momentos – o “tempo” e o “espaço”, do Deus a quem ama muito, do Deus “paroquial” temível de chamas e labaredas, do Deus que não se deixa alcançar – “ora julgo que avancei/um centímetro ou dois no desvendar-te/ora acho que (…) nada de nada” -, do Deus inexpugnável do silêncio – já que não pode tacteá-Lo com palavras, (o sujeito poético) pede a Deus “alguma ferramenta/com que possa ir desmantelando/algum desse silêncio/  com a mesma pertinência com que um cão/desbasta um osso duro de roer”, sem deixar de convocar, como não em estas circunstâncias?, o paradoxo: “quanto mais liberto me sinto de ti/tanto mais os meus passos/me levam para ti”. Replicado, de imediato: “saber se estes versos foram em verdade/(como era meu intento)/uma proclamação de alforria/ ou se, pelo contrário,/foram um cabal, irreversível,/humilhante auto-de-redenção” – eis a questão. Em qualquer caso, o que toda esta indagação é, “é um imbróglio do caraças” e, se dele não resulta(r), nem tal se pretendia, supomos, uma conclusão a derramar, há o sarcasmo e a (auto) ironia de quem aceitou expor-se, e de partilhar a exposição, às questões últimas: “Coitado (dirão eles) do Pires Cabral,/a tombos com uma questão tão demodée,/que qualquer sacristão é capaz/de resolver com uma perna às costas./ Fica-lhes muito bem a petulância/e garante-lhes uma certa eternidade./Mas, aqui para nós, aquele que nunca/tropeçou no Deus em que eu/a cada passo tropeço/ – que atire o primeiro verso”.

O compositor António Pinho Vargas, na iniciativa “Escutar a cidade”, organizada pela Diocese de Lisboa, há quase 10 anos, dava conta de uma sua amargura pelo facto de, com uma única excepção, ninguém da (hierarquia da) Igreja ter reagido/comentado/trocado ideias ou impressões sobre a sua composição sobre Judas. Hoje, os actores não vão aos concertos, os músicos não vão ao teatro, somos ilhas – acrescentou.

Ora, ao ler a “Caderneta de Lembranças” (agora publicada, pela Tinta da China), de A.M.Pires Cabral, recordei-me destas palavras como quem ouve uma exortação: que nunca faltem interlocutores! Um destes dias, numa catedral, porque não?, e desde já, à lareira do Natal, reler, em comunidade(s) disposta à interrogação funda, estes versos: seja porque a demanda, neles inscrita, é/faz, em si mesma, sentido; quer porque o artista pode auxiliar-nos no cinzelar, purificar, das ideias/definições/imagens – sempre aquém – de Deus.