As eleições servem para quê?


Os portugueses vão a votos a 30 de janeiro porque a solução governativa foi implodida à esquerda e não resgatada à direita, mas o frenesim geral na marcação de linhas vermelhas pós-eleitorais é uma profunda desconsideração pela expressão democrática da vontade popular.


Não, não tenho nenhuma dúvida sobre a importância das eleições como momento vital das Democracias, que dá expressão à vontade popular ativa. Aquela que não se fica pelo resmungo, a boca nas redes sociais ou qualquer outra expressão inconsequente dos estados de alma e do compromisso cívico com a comunidade de destinos de um determinado território.

O mesmo não se aplica aos protagonistas políticos e às ânsias mediáticas do desesperado exercício jornalístico em querer fazer sangue, em radicalizar o ambiente para gerar notícia, em conseguir alimentar artificialmente querelas que se somam às divergências reais sobre as ideias, os caminhos e as metas.

Houve um tempo em que o compromisso partidário com os valores e os princípios, com a ideologia, determinava a existência de fundadas linhas vermelhas de ação e de omissão, que determinavam o sentido da prática política, sendo que o fim era o do bem comum.

Esse tempo há muito foi sendo substituído pela força pragmática das circunstâncias, dos interesses particulares, de um certo vale tudo e da sobrevivência política. É neste tempo radicalizado de Ortega y Gasset que vivemos. “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”.

Os portugueses vão a votos a 30 de janeiro porque a solução governativa foi implodida à esquerda e não resgatada à direita, mas o frenesim geral na marcação de linhas vermelhas pós-eleitorais é uma profunda desconsideração pela expressão democrática da vontade popular.

As maiorias, as soluções de governo e todas as opções de gestão do país serão as que a vontade popular determinar. É claro que em 2015 ainda os portugueses não tinham votado e quem se tinha anunciado facilitador para a conquista de uma grande vitória já tinha abordado os partidos à esquerda para a eventualidade de uma solução de governo num quadro de derrota eleitoral, mas o normal é que os eleitores votem e a partir dos resultados se construam as soluções de acordo com o sentido da votação.

Mas não, sem resultado, há uma profusão pré-eleitoral de intenções e soluções, instigadas pelos media, como se o voto do Povo fosse um pormenor. Esta vertigem do bitaite volátil despreza o sentido do voto democrático.

Depois do alinhamento à direita para o chumbo do Orçamento de Estado, se o PCP e o Bloco de Esquerda tiverem resultados abaixo dos obtidos nas últimas eleições persistem na atitude e nas propostas que levaram à crise política?

Depois da implosão da solução de governo vinda de 2015 e das linhas vermelhas colocadas a convergências sustentadas com o PSD, se não tiver maioria absoluta qual será a opção de governo?

Depois do acordo com o Chega nos Açores, com diversas superfícies frontais de agitação política, ganhando o PSD, posiciona-se no registo vale tudo ensaiado nas Regiões Autónomas?

A verdade é que as dúvidas da governação só poderão ser aclaradas após o voto dos portugueses. É ele que determina o futuro e o sentido das opções de governo, assim seja respeitada a expressão popular. Os protagonistas podem agora dar bitaites, que os media amplificam, mas é o voto que vai determinar as soluções possíveis. No essencial, ou ganha o PS ou vence o PSD. Algo impensável há poucos meses, mas a inconsistência política e o quadro pandémico ditaram as leis. Há desgaste, irritação e cansaço no eleitorado do centro que, de algum modo, esteve longe das cogitações governativas, mais orientadas para dar atenção aos alegados nichos eleitorais do PCP e do BE ou às vertigens proibicionistas do PAN. A gangrena dos casos e das opções não explicadas gerou uma irritação eleitoral subcutânea que já teve expressões nas autárquicas e deu azo à emergência de populismos que a democracia dispensa, por minarem os seus pilares fundamentais.

Os portugueses vão falar e depois é tempo de ler os resultados para agir em conformidade. Não na base das linhas vermelhas pré-eleitorais, mas da realidade concreta da expressão do voto popular. O governo e a governação serão o que os portugueses quiserem, não o que os diretórios partidários agora definiram e verbalizaram.

Até agora, Rui Rio e António Costa puderam fazer as listas como bem quiseram, quais siameses, no essencial com expurgo de quem pensa diferente, salvaguardando uns críticos de estimação e umas integrações simbólicas da diversidade. No PS, até se agitou nos media o regresso de Francisco Assis para dar um ar de recentragem do partido, depois da deriva à esquerda. Assis foi útil à estratégia política de recentragem e descartado no momento seguinte, por veto a norte e anuência central de quem já perdeu o pé no partido real minado pela força do proto-sucessor.

Até aqui, o jogo foi sobretudo partidário, mais centralizado no PSD do que no PS, sem qualquer tipo de intervenção real da envolvente popular e da comunidade, com escolhas de protagonistas em círculo fechado. Agora, o jogo será disputado em terreno mais aberto, num bailado entre poder e alternativa, entre o atual ou um novo quadro político. Os arranjinhos, como diz Jerónimo de Sousa com desdém da expressão do sentido do voto popular, são os portugueses que vão definir, como sempre acontece em Democracia. É para isso que as eleições servem: ouvir o Povo, agir em conformidade. Até lá venham as propostas e deixem-se de bitaites sobre as soluções de governo.

Entretanto, sem sabermos se somos assolados pelos fantasmas dos Natais passados ou teremos novos futuros, votos de um Feliz Natal para todos, sobretudo, com saúde e sentido cívico de liberdade e compromisso.

 

NOTAS FINAIS

CONTRADIÇÃO DEMOGRÁFICA // A tolerância com a diferença não se compra nas farmácias. Não é aprendida nas escolas nem é valorizada na sociedade, como poderia existir por geração espontânea. Não partilho do esforço de rotulagem geral de Portugal com espaço de racismo e xenofobia, mas existe. Nenhum atestado resolverá o que quer que seja e todos os esforços de generalização são miseráveis e inconsequentes. O que se passou com militares da GNR em Milfontes é inaceitável. O que se passa todos dias com as faltas de atenção a questões essenciais dos quotidianos também. E o que já fizemos de forma consequente para mudar essas realidades? Acresce que os dados dos Censos sublinham a importância dos não nacionais de origem para algumas dinâmicas demográficas e económicas positivas.

CONTRADIÇÃO JUDICIAL // Não deixa de ser caricata a centralidade do perigo de fuga num momento em que existem maiores limitações à mobilidade global dos cidadãos, ainda que alguns dos artistas em causa, utilizem meios sofisticados para se fazerem transportar.

CONTRADIÇÃO COMEMORATIVA // Desconheço as razões da saída do ex-Presidente Ramalho Eanes da Presidência das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, mas é um mau sinal. Mantém-se em funções o principesco Comissário, sem escrutínio, com profuso comentário público e sem obra visível. Como seria importante antes dos 50 debater o que ainda não foi feito.

Escreve à segunda-feira