Talvez começar por aqui: dos vários atavismos nacionais, um dos que mais me intriga e penaliza é a falta de memória colectiva de Portugal. Não a memória selectiva, destinada a saudosismos ou enaltecimentos convenientes ao correr dos dias; mas a memória histórica, do gesto grandioso ao mais ínfimo pormenor do quotidiano. A memória e a consciência que dela temos – que é diferente de lembrança ou evocação – é parte essencial desta efémera e tão pífia condição humana. É uma das poucas coisas que nos diferencia. É da memória que nasce o pouco que podemos fazer durante esta passagem: legar. E legar é deixar, passar a outro e, por extensão, continuar a vida.
Este país trata a memória com uma visão meramente museológica, inerte. Os arquivos escasseiam ou estão displicentemente ao abandono, salvo louvabilíssimas excepções. Por isso é sempre um acontecimento quando alguém decide lutar contra este cinzento estado de coisas e fazer o que parece óbvio: transformar o que fomos no que somos, vivos e agora.
É o caso do autor deste livro, Afonso de Melo, de quem podem encontrar algumas páginas ao lado destas. Fazer viver a memória – no caso a desportiva – através do relembrar histórias e acontecimentos tem sido uma constante na escrita deste jornalista proveniente de uma escola em vias de extinção , em que as palavras “rigor” e “paixão” não constituíam paradoxo e eram utilizadas com frequência e gosto para benefício do leitor. Afonso de Melo tem uma larga e prolixa biografia e bibliografia que pode e deve ser consultada por quem o quiser fazer. Para o que aqui nos interessa, a proclamação de currículo não serve nem importa: Cinco Escudos Azuis – 100 Anos de História da Selecção Nacional de Futebol – é um objecto único, pioneiro e necessário. Para apenas os que vibram com o alegado “desporto-rei” ? Não: para todos os que querem memória e legado.
Para arrumar de vez com a má-fé ou suspeita de compadrio fica a declaração de interesses: este texto é escrito na primeira pessoa do singular e por isso obrigado a dizer que o autor do livro que aqui me traz é amigo e cúmplice. Se isso turva ou macula o que é escrito por um e por outro ? Duvido, mas é ao leitor que cabe a decisão final. Se há coisa onde a franqueza mora ao ponto de magoar é na amizade e portanto não será essa condição que me irá impedir ou impor seja o que for.
História Ao livro, então. Ao traçar uma história da selecção nacional de futebol Afonso de Melo não se limita a datas, nomes e números – que no entanto, e porque são necessários, também lá estão, de modo puro e duro, nas quase 450 páginas que fecham o livro e que servem de reconhecimento aos colaboradores da obra, João Sena e João Queiroz. Ao longo de dez capítulos, cada um correspondendo a cerca de uma década (de 1921 a 2021), passeamos não apenas pelos relvados e bancadas mas pela história e mentalidade do país que a partir de 1921 escolheu os primeiros protagonistas nacionais do jogo. É impossível escapar à ironia triste das notícias que relatavam um Portugal turbulento e sem rumo, pouco depois do mais bárbaro episódio do século XX português – a infame “camioneta-fantasma” ou Noite Sangrenta, onde a Primeira República atinge o paroxismo da autofagia, devorando os seus próprios heróis – e, quase timidamente, noticiavam o primeiro jogo oficial da selecção nacional frente à homóloga espanhola:” Os hespanhoes triunfaram mas os portugueses honraram o ‘foot-ball’ nacional”, dizia O Século de 18 de Dezembro de 1921 e assim abrindo caminho para uma maldição que por muito tempo iria perseguir a “equipa de todos nós” : a vitória moral.
A escrita Mas de pouco serviria ao leitor a mera colecção de recortes. A força deste Cinco Escudos Azuis é mesmo a escrita, a paixão rigorosa. É uma prosa cinematográfica, próxima, feita de sangue e gente e nunca, nunca distante do que está a dizer. Estamos lá e agora, dos dias mais longínquos àqueles que nos são próximos e reconhecíveis. Há lugar para tudo: explicações de tácticas (p.153), contextualização histórica e cultural (cf., por exemplo, p.163) ou a estreita relação (alguns dirão promiscuidade) entre a política e o futebol (p.175). Os subtítulos denunciam o tom de alguém que está enamorado pelo objecto da sua escrita: O Grande Baile de Viena, As Alegres Comadres, O Alcácer Quibir do Futebol Português, Felicidade Na Melancolia… Tudo contribui para que o leitor seja levado, de forma suave mas firme, ao Portugal dos Cinco Escudos.
Aqui chegados e para sossego dos mais distraídos sempre direi: sim, haverá falhas na prosa. Por exemplo, o tom elegíaco com que se descreve a final do Europeu de 2016 desafia o meu pudor e gosto: “ Foi preciso que Portugal se enchesse de coragem para ignorar e ultrapassar o terrível rombo que a sua caravela sofrera, propondo-se encarar com a mesma vontade e a mesma dignidade um mar alteroso que trazia em si as maldições do antiquíssimo Monstrengo, imundo e grosso” (p.428).Questão de gosto? Certamente. Mas vá lá dizer-se a um apaixonado que é um exagerado… Na verdade, quem sofre pela selecção, mesmo o mais auto-proclamado cosmopolita, acaba mais cedo ou mais tarde por ser um porta-estandarte involuntário.
Talvez terminar assim: Cinco Escudos Azuis é um livro que irá sobreviver aos seus leitores. Como a própria selecção nacional, nunca será unânime mas será sempre indispensável. Nestes dias de trincheiras fáceis é bom saber que ao longo dos tempos houve e ainda há um punhado de homens que uniram e unem quem gosta do jogo e torce pelo país. É isso, é isso: com as suas 900 páginas, investigação exaustiva, iconografia adequada e prosa viva, Cinco Escudos Azuis repõe a memória onde ela deve estar: aqui, prontinha para passar a quem venha a seguir. Com o rigor dos apaixonados.
(Cinco Escudos Azuis -100 anos da História da Selecção Nacional de Futebol , Afonso de Melo (colaboração de João Queiroz e João Sena – Âncora Editora, 900 pp, textos de Manuel Alegre, Fernando Santos, Carlos Godinho, Luís Alberto Ferreira, Cristiano Ronaldo, Joaquim Rita e Luiz Felipe Scolari).
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