São poucos os actores portugueses a quem o cinzel da luz, rasgando os contornos no escuro, para os fazer eclodir no grande ecrã, esculpiu feições lendárias. Mesmo à nossa escala, e ainda que alguns candidatos se perfilem, temos de convir que não há um só que tenha queimado a película do nosso imaginário com essa nota de robustez carismática que vemos em Cary Grant, Humphrey Bogart ou Marcello Mastroianni. Talvez porque a própria ideia de heroísmo, mesmo enquanto mito devastado, não assumiu particular relevo no nosso cinema. “Não é por acaso”, como nos diz Witold Gombrowicz, “que, quando é urgentemente necessária a presença de um herói, nasce um palhaço”. A nossa cultura teve sempre mais esse arremedo, essa nota que vem desinchar as expectativas, e, por isso, o que fomos tendo foram mais figuras conscientes dessa forma de desmanchar os nossos ritos, o nosso jogo com o destino, e que foram, assim, sobretudo palhaços sérios. E se havia em Rogério Samora algo desse riso prenhe de sarcasmo por se saber fatalmente vinculado a um país que deixa encravados os seus melhores artistas, a sua morte adiantou algo mais a uma carreira de quatro décadas no teatro, cinema e televisão, uma estranheza no modo de se despedir e que foi bem para lá da sensação de que se afastava do nosso convívio mais outra presença que nos havia marcado de forma indelével. Ao longo dos meses, depois da paragem cardiorrespiratória que sofreu a 20 de julho, nas gravações de uma telenovela, enquanto a morte o puxava para si sem deixar grande margem à esperança de um recobro, a indignidade desse fim deixou que se soltasse uma impressão quase fílmica: “Primeiro os olhos, coisa/ quase imperceptível, depois/ aqueles gestos mínimos/ da mão esquerda,/ cujo sentido/ não nos era dado perceber.// Um aceno de despedida,/ uma saudação irónica:/ ‘Agora é consigo,/ fica assim.’” São versos do poeta alemão Hans Magnus Enzensberger, e são-nos úteis ao ajudar a rastrear a transição de um corpo que estende as memórias que deixou e prossegue como fantasma. “Só ao encontrar/ a almofada sem rugas,/ a chávena vazia,/ a camisa nas costas da cadeira,/ a chave no chaveiro,/ ficámos indispostos (…) Nem sequer/ apagaram a luz/ no corredor.”
As reacções à sua morte ficaram-se por essa exultação piedosa de uma suposta “loucura saudável” que havia em Rogério Samora, pois nestas horas ninguém se atreve a dizer exactamente como este actor podia ser exasperante para quem com ele trabalhava, e como viveu o conflito absurdo de tantos artistas que se vêem amarrados à pobreza do material que lhes é dado para interpretar, nesta que é a profissão mais exposta à mediocridade que há muito tomou conta da indústria dos conteúdos televisivos, que apenas servem para rebaixar ainda mais aqueles que noite após noite se sentam à frente da televisão para consumir produtos banais e inofensivos. O realizador Miguel Gomes vincou assim como o que Samora “fazia em cinema era bem melhor do que o que fazia em televisão, mas isso não é culpa dele, tem a ver com o material de trabalho”. E acrescentava: “É muito difícil para um actor dizer diálogos tolos e sair-se bem.” Na mendicidade divinal que é própria dos artistas que encarnam sem reservas as ambições da sua arte, Samora batalhou com a mesma desgraçada convicção com que as vagas se lançam como se enfurecidas contra as escarpas, iludindo-nos por um segundo de que serão capazes de desfazer, num único assalto colérico, as barreiras que encontram, isto para depois se desfazerem como sempre. Só ao longo dos séculos o seu trabalho, por fim, vai vingando, e foi esse o drama deste herói devastado, num país que, na melhor das hipóteses, converte os seus artistas mais comprometidos em palhaços sérios.
Assim, entre as tantas reacções à morte do actor, coube a Miguel Gomes reconhecer essa obstinação desgraçada, e nas declarações ao “Público” pressente-se aquele reconhecimento de um “apesar de tudo…" Apesar do difícil que podia ser trabalhar com este actor, “gostava no Rogério Samora do lado imprevisível e da loucura dele”. E logo adianta que “essa loucura e essa disponibilidade permitiam-lhe fazer coisas muito fora do comum”. O realizador admite até que às vezes “era necessário controlá-lo um bocado, porque havia nele uma voragem de propor coisas para o personagem e para o filme, mas sempre de uma forma muito generosa”.
A diferença de Rogério Samora para outros tantos actores da sua geração é que, além de saber o grande actor que podia ser, nunca desistiu inteiramente desse reflexo que estava ao seu alcance mas que o espelho deste país quebrava uma e outra vez. Como outros, ele reconhecia que, não fosse pela mentalidade tacanha de um meio artístico que se resignou a um registo menor, de produções bastante pífias, poderíamos ter obras que nos fizessem sentir a força da nossa presença de modo a alterarmos o curso da própria vida. E foi contra essa pestilência do engraçadismo, da palhaçada ineficaz, que ele ergueu o seu protesto, e assim, mesmo se não foi ao ponto de virar costas, desenhou aquele “gesto relutante e desleixado do homem que afasta de si uma acumulação demasiado automática” (Gombrowicz). Não se espere, por isso, ver grande coisa dele, do seu talento, nos papéis que deixou como uma camisa nas costas da cadeira que são essas tantas produções televisivas, cada uma pior que a outra. É preciso revê-lo no cinema para ir ao encontro do grande actor que foi. E não é preciso elencar tudo o que fez, mas basta pensar nesse amante cheio de vigor sensual e que usava o seu nome, “Rogério”, em Party (1996), o filme que Manoel de Oliveira filmou à imagem do texto de Agustina Bessa-Luís, e isto, como notou o cinéfilo Miguel Faria Ferreira, numa decisão que soube firmar a ficção à realidade de modo a que o papel “assentasse que nem uma luva no corpo e nos gestos” de Rogério Samora. Mas é certo que nenhum outro papel deixará uma mais justa impressão de tudo o que este actor era capaz, de tudo o que por infelicidade lhe escapou, do que essa investigação que fez com Fernando Lopes de um dos grandes personagens da nossa ficção, Tomás da Palma Bravo, de “O Delfim”, de José Cardoso Pires. É ali, guiado pela inteligência de um dos indiscutíveis mestres do nosso cinema, com quem dizia ter aprendido muito “entre duas imperiais e um uísque e um café”, que Rogério Samora prova ao que vinha, interpretando “o Engenheiro” de ancestral descendência, "com a esposa pela mão, lenço de seda ao pescoço", esse marialva sem cavalo, delfim sem reino, arquétipo do homem português que, vendo a sua época esboroar-se, ao enfrentar o mundo em decomposição, decifra para nós este tempo de ilusões, este lugar onde há muito se deu o render dos heróis, e onde nem a memória serve de amparo aos que se vão. Só ficando de nós um eco desolador. "…Sei, todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre quem se aventura a recompô-lo. É um eco a sublinhar as palavras, uma ironia que nos contempla de longe, um aviso” (Cardoso Pires). Assim, Rogério Samora ingeriu todo o veneno que podia suportar, e persistirá enquanto fantasma e aviso, numa das mais firmes e desoladoras representações desta nossa eterna derrota.