Leonor Xavier (1943-2021). “Uma devoradora da vida”

Leonor Xavier (1943-2021). “Uma devoradora da vida”


Aqueles que conviveram com ela no período que passou no Rio de Janeiro homenageavam Leonor Xavier como uma “garimpeira de gente”, e a sua generosidade foi a primeira virtude que os tantos amigos não esqueceram de vincar. A jornalista e escritora morreu no domingo, aos 78 anos, de um cancro que há muito a acossava,…


Tinha 78 anos, conta que não impressiona senão se espreitar mais perto. Pois Leonor Xavier desdobrou esses anos que teve por tantas vidas, sendo a fonte de uma generosidade pouco mais que lendária. Os amigos eram mais que muitos, e poucas vezes tantos terão tremido até à raiz com uma morte há muito anunciada.

Leonor Xavier morreu no domingo, no Instituto Português de Oncologia, em Lisboa, onde estava internada desde Novembro. Os últimos anos, como referiu o amigo Francisco Seixas da Costa, foram anos de luta corajosa contra o “passageiro clandestino” que lhe rondava as horas.  Em 2014 foi-lhe diagnosticado um cancro no colón, a mesma doença que vitimara o seu pai. Apesar de ter vivido numa espécie de acosso, batendo-se com uma doença que, além de partidas e sustos, parecia às vezes estar a jogar às escondidas com ela, como vincou Seixas da Costa, tantos amigos sobre quem não pesava tamanha sombra, encontraram nela um apoio, e Rui Zink, numa publicação em que a homenageou nas redes sociais, lembra que foi “uma pessoa tocada pela graça”, acrescentando: “E fez-nos o favor de ser feliz.”

A sua graça foi algo da ordem da invenção, dessas forças improváveis que não se deixam abater mesmo quando tudo e todos à volta desmentem a luz enquanto vão brincando em jogos de sombra. "Tenho uma visão jubilosa, gratificada e plena da vida”, dizia Leonor Xavier numa entrevista ao Expresso. “Quando ela acabar, costumo dizer que irei de barriga cheia.”

Descrevia-se não só como “devoradora da vida” mas como “católica progressista”, que era um pouco como dizer baixinho essa coisa ofensiva para tantos conservadores que é não se virar para os céus em busca de graças voltando as costas aos homens. Leonor Xavier, “gostava de pessoas, da vida, dos livros, creio que por esta ordem”, recorda Zink. Por seu lado, Seixas da Costa honrou-a lembrando que foi “uma mulher com algumas vidas, com muitos livros, com imensos amigos, com uma coragem acima do mundo. E o antigo diplomata diz ainda que “Leonor, com aquela voz rouca e doce que, à primeira vista, poderia transportar um discurso naïf, é alguém que descobriu que as dificuldades se agarram de caras, que os problemas se resolvem combatendo em terreno aberto. É uma cabeça arejada, positiva, que olha as pessoas de frente, guiada por uma ética à prova de bala, com valores que caldeou ao longo dos anos.” 

Maria João Avilez, numa belíssima entrevista de vida que lhe fez em abril passado, para o Expresso, deixava em letra de forma e em sinal de grande apreço uma homenagem a tempo, para que Leonor Xavier pudesse escapar desse número dos que só depois de mortos têm entre os vivos notícia da sua passagem por esta terra, das coisas belas que fizeram. Avilez enaltecia a sua “natureza tão atenta quanto arguta”, lembrando que teve o privilégio de conhecer o mundo, e era alguém que tinha causas, “uma conversadora nata, uma mãe de família comblée, alguém que se quer de Deus”, o que significava que não abdicou nunca da consciência do “milagre” que é a vida, e assim “aprofundou o seu discernimento sobre a vida e a morte, para melhor travar o ‘bom combate’.”

Na conversa entre as duas jornalistas, avulta “um gosto antigo pelas palavras”, reconhecendo Avilez o talento da amiga “para as fazer florescer numa escrita — jornalística, ficcional, memorialística — que tem sido o seu grande e grato ofício”. Uns anos antes, numa entrevista à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se licenciou, Leonor Xavier contava que "a Lyndley Cintra, a David Mourão-Ferreira, a Jacinto do Prado Coelho, a Vitorino Nemésio, ao Padre Manuel Antunes e ao Padre Honorato Rosa, devo o sentido da harmonia, do rigor, da importância do pensamento, do significado das palavras. Pelo que deles aprendi, tenho a escrita como disciplina fundamental para a comunicação com os outros e para o entendimento do mundo".

Nascida em Lisboa, em 1943, filha de um médico que foi diretor do Hospital dos Capuchos, era a única rapariga na família. Dos pais recordava ao Expresso como foram “severos, exigentes, próximos”. “A mãe trouxe-me a preparação para a vida privada, a inteligência, a feminilidade, a sedução na relação com os outros, a sabedoria, a qualidade. O pai, a preparação para o mundo, a sensibilidade para o sofrimento, a importância do esforço, a integridade do carácter, a prudência no envolvimento político." 

Quanto a estudos, começou na Escola Francesa em 1949, “ainda no Pátio do Tijolo, a 4ª classe a inaugurar o Charles Lepierre”, seguiu-se o liceu: “o Rainha Dona Leonor, na Junqueira, o Maria Amália, o D. João de Castro e depois um ano no Colégio Interno em Tondela”. Depois foi para a Faculdade de Letras… “Formei-me com o Ruy Belo e a Teresa, o Eduardo Prado Coelho, que estavam no meu ano. Noutros cursos havia o Medeiros Ferreira, o Almeida Faria, o Lauro António, a Alice Vieira, a Emília Brederode… No D. João de Castro, o José Luís Porfírio, o Manuel José do Carmo Ferreira, o César Monteiro e tantos outros que fizeram o seu caminho pela área de Letras.”

No 25 de Abril, tinha 32 anos, era mãe de 3 filhos (então com 3, 5 e 8 anos) e vivia na Rua dos Remédios à Lapa, sendo casada com Alberto Xavier, um professor assistente da Faculdade de Direito especialista em Direito Fiscal, que durante os últimos 40 dias do governo de Marcello Caetano foi secretário de Estado do Planeamento. Após um convite para o marido ser professor na Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro, mudou-se e aí viveu no Brasil entre 1975 e 1987. Foi correspondente do Diário de Notícias no Rio de Janeiro e redatora da revista Máxima. No ano em que regressou, a 23 de abril de 1987, foi agraciada com o grau de Oficial da Ordem do Mérito.

O seu casamento durou 19 anos, e terminou depois de, em março de 1987, ter conhecido Raul Solnado, começando posteriormente uma relação com ele. Viveram juntos 15 anos em casas separadas (“o que em 1989 era uma originalidade”, lembrava ela). A relação durou até à morte do actor e humorista, em agosto de 2009. Leonor Xavier tinha escrito a sua biografia "Raul Solnado, a vida não se perdeu", em 2003, e fora também a autora da biografia de Maria Barroso, de 1995, a que deu o título "Maria Barroso, um olhar sobre a vida". Publicou mais de 20 livros, entre variadíssimos géneros, além das biografias (quatro ao todo), houve livros de entrevistas, crónicas, viagem. Entre as obras de ficção contam-se os romances "Ponte-Aérea", "O Ano da Travessia", "Botafogo", e há ainda os ensaios "Contributo para a história dos portugueses no Brasil", "Portugal, Tempo de Paixão", "Portugueses do Brasil e brasileiros de Portugal" e as crónicas "Colorido a Preto e Branco".

Parte da experiência dos 12 anos que viveu no Brasil, contou-a no livro Portugueses do Brasil & Brasileiros de Portugal (ed. Oficina do Livro), onde reuniu entrevistas a 18 personalidades, como Agostinho da Silva, Caetano Veloso, Fernanda Montenegro e Carlos Drummond de Andrade. Contou, por exemplo, como durante dois anos ganhou um “dinheirão” a vender tupperwares de porta em porta e, assim, foi descobrindo as ruas, os bairros e as tantas comunidades estrangeiras que compunham o miolo da cidade de São Paulo, onde “cabia Portugal inteiro”, contou também como fez grandes amizades e acabou por conseguir realizar-se por fim naquela que era a sua vocação, escrevendo em jornais. Um deles, o Mundo Português, ficava num “lugar de putas, de ladrões e de botecos, havia águas estagnadas nas beiras dos passeios”, recordava em entrevista ao Sol. Contou também que, mesmo depois de ter deixado o país, falava todos os dias com amigos brasileiros e continua a regressar lá sempre que podia. “Quando vou lá corro para comer galinha com milho e molho branco, passo pelos sabores, passo pelas pessoas… Posso beber quatro imperiais em meia hora e aqui não me passa pela cabeça isso”.

A sua casa era uma espécie de biografia como ela mesmo notou, onde o cortejo entre o passado e o futuro era incessante, produzindo um eco que acolhia e dizia o mais importante quando faltam as palavras. Há altura descrevia a sua como “uma casa vivida, uma casa confortável e com claridade. Há objetos de família que têm histórias, há presentes que me trazem. Mostra pinturas, fotografias e livros – na casa dos meus pais houve sempre livros e nas casas onde vivi também. Aliás escrevi isso num livro que se chama Casas Contadas, aí está toda a minha vida, desde que nasci até 2009.” Naquele livro falava das 13 casas em que viveu, e do terror com que ficou das mudanças, sobretudo quando voltou do Brasil. E na entrevista dada ao Sol, além de falar nos muitos “brasis” de que se compõe a nação canarinha, atribuía ao Rio de Janeiro um papel essencial na sua descoberta da margem da alegria, e como também se foi fazendo nativa desse lugar. “Eu fui muito feliz e continuo a ser assim. Por isso é que sou um bocado uma carta fora do baralho.” Por outro lado, admitia que “não teria sobrevivido no Brasil se não fosse profundamente portuguesa, com os valores mais formais e mais tradicionais”. E também vincava o muito que o Brasil a fez depois sentir a alegria de ter regressado às suas origens. “Toda a gente que viveu no Rio passou por alguma situação assustadora. E isso faz-nos ter consciência da sorte que é poder viver em Lisboa.

Dos dois lados do Atlântico, foi fazendo essa ligação entre samba e fado, misturando na melancolia do lado de cá esse pó de fantasia e delírio que torna o Brasil um sonho capaz de devorar e deixar marcas em quem passe por ali. Nota crucial dessa diferença é a forma como se vive a rivalidade no futebol; se em Portugal a coisa há muito se tornou feia, no Brasil, cada ida ao Maracanã significa arriscar o pescoço. Naquela floresta densíssima onde cabiam 200 mil pessoas, Leonor Xavier ria-se ao lembrar como os membros de uma claque “fazem chichi para cima da claque oposta”.

É a vida. Pode ser grosseira e difícil, mas bem misturado com tudo o que tem de bom, no fim, quem não se tenha feito rogado, e dela tenha enchido a barriga, acaba por se ir daqui rindo e fazendo rir.