Orgulhava-se de ao longo da sua carreira ter efetuado cerca de trinta mil autópsias. Saberia que a sua lhe estava já endereçada, e terá aprendido a libertar-se de qualquer receio, usando para isso de um registo inquisitivo, deixando-se envolver pelos seus mistérios. Lidando diariamente com a morte, soube a diferença que esta faz e muitas vezes a indiferença com que parece atingir os homens, e terá repudiado um tempo em que se morre como calha. Em que os receios da doença levam a que a morte seja inteiramente um facto que pertence a essa doença que se tem. Além de médico-legista, José Eduardo Pinto da Costa era um professor muitíssimo respeitado, um homem que tudo fez para "desdramatizar as narratvas macabras sobre as autópsias, abrindo as portas no domínio das Ciências Forenses" e ajudando tantos a mergulharem bem fundo na complexidade da Medicina Legal, como lembrou Francisco Moita Flores. Era também o irmão mais velho do presidente do F.C. Porto, Pinto da Costa. Morreu esta quarta-feira, aos 87 anos.
O obituarista e o médico-legista encaram-se friamente a partir de uma falsa proximidade, sendo figuras um tanto funestas, acólitos de um processo algo tenebroso, afinando as suas tão diferentes ferramentas com vista a que o seu ofício possa particularizar algo que, de outro modo, perderia todo o sentido. A morte chega a todos, mas é um acontecimento terrivelmente íntimo. Estudante um do efeito social desta, desse rapto e vazio que deixa, mas também da vida e do percurso nessa hora que se obriga ao respeito, ao passo que o outro trata com a morte nesse seu discreto modo de se abrir como uma flor dentro da carne, sabendo que a morte não é algo que nos invade, mas antes uma coisa que está adormecida em nós. Por mais que haja a tentação de lhe encontrar vícios, falar nos truques imbecis da morte, o que realmente nos exaspera é o quanto ela se nos mostra indiferente. De algum modo, a morte é a derradeira indiferença, pois, como escreveu Julian Barnes, com ela «não podemos regatear, nem negociar nada; ela recusa-se simplesmente a chegar à mesa de negociações». Num ensaio de fôlego em que tenta confrontar o seu pavor em relação à morte que traz dentro, o romancista inglês reconhece esse fascínio diante dessa coisa que semeada em nós tem como missão devolver-nos ao pó, e que, ao longo da vida, se dela formos conscientes, acrescenta aquele grão de sal aberto na boca de quem gosta de saborear profundamente a sua vida. «Não precisa de fingir que é Vingativa nem Misericordiosa, nem mesmo Infinitamente Cruel. É insensível ao insulto, à queixa ou à condescendência. ‘A morte não é artista’: não, e nunca pretenderia sê-lo. Os artistas são inconstantes, ao passo que a morte nunca nos abandona, fica a postos sete dias por semana e adora fazer três turnos seguidos de oito horas. Compraríamos ações da morte, se as houvesse; apostaríamos nela, por baixa que fosse a cotação.»
A morte não faz artistas, mas faz uns escrupulosos investigadores que entendem essas subtilíssimas diferenças e leem os motivos mais finos que trabalha dessa linha que cose a morte à vida. José Eduardo era certamente um desses seres. Granjeou uma reputação em Portugal e no estrangeiro por uma vida inteira dedicada à Medicina Legal, mas era amado por ser mais do que um mero especialista na matéria, aproveitando esse convívio com o outro lado para tomar balanço, reconhecendo o privilégio do tempo que nos é dado, tornando-se um entendedor da arte de viver bem. Era também muito admirado pela sua inteligência e o seu fino humor, e foi um pedagogo popular e um portuense empenhado, notabilizando-se ainda na defesa dos direitos humanos, tendo dado a cara na luta pela descriminalização do aborto.
Natural de Cedofeita, nasceu a 3 de abril de 1934, e foi o primeiro de seis filhos de José Alexandrino Costa e Maria Elisa Pinto. Em novembro, haviam já perdido uma irmã, Maria Alice, de 86 anos. Ao líder dos dragões restam agora os irmãos António Manuel, de 85 anos, e Maria Eduarda, de 82.
Licenciado em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, José Eduardo doutorou-se em Ciências Médicas com prova complementar em Psiquiatria. Era ainda pós-graduado em Medicina Legal pelo Instituto de Medicina Legal do Porto, do qual foi diretor de 1976 até 2001. Foi ainda docente e consultor no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), onde foi responsável pela instituição do Mestrado de Medicina Legal, curso criado em 1999. Em 1997, abandonou a clínica geral para se dedicar em exclusividade à medicina legal, sendo professor jubilado do ICBAS.
Era um homem de uma grande erudição, muito para lá daquilo que era o seu labor ou as disciplinas que dominava por virtude do seu ofício. Ler e escrever estavam entre as suas atividades de eleição. No ano passado, quando Portugal entrava em estado de emergência devido à covid-19, em março, José Eduardo foi entrevistado pelo Expresso e, quando lhe perguntaram que conselho daria às pessoas em confinamento, aconselhou-as a ler.
Mas também disse uma vez que, «se não fizesse nada, ia todos os dias ao teatro», uma paixão que nasceu na infância e que recordou aos microfones da TSF, também em 2020. José Eduardo tinha 9 anos quando começou a frequentar regularmente o S. João Cine, atual Teatro Nacional de S. João. Era propriedade de um bisavô e toda a família tinha à disposição o camarote n.º 8, para ver teatro e cinema, e uma frisa, para assistir a concertos.