A chico-espertice da Via Verde e outras derivas do capitalismo nacional


Sob o ponto de vista do interesse público e da defesa dos consumidores, é miserável o que a Via Verde se prepara para fazer, invertendo o ónus da não aceitação do novo tarifário imposto pelos mesmos serviços que agora presta por um valor inferior.


Afastada da deriva inicial dos planos quinquenais e dos dogmas importados da mãe soviética, a Democracia portuguesa caminha a passos largos para as cinco décadas de vigência com modelações acessórias do papel do Estado e das margens permitidas ao funcionamento do mercado, mas com distorções inaceitáveis para o interesse geral.

A última é protagonizada pela Via Verde Portugal que depois de mudanças na composição acionista, será detida em 80% pela Brisa e em 20% pela Ascendi. A Brisa é detida pelo consórcio internacional de investidores holandeses, coreanos e suíços da Rubicone BidCo, S.A. e pela José de Mello Capital, S.A., tendo o ex-ministro da Economia de Passos e Portas, António Pires de Lima, no comando.

O Estado desenvolve funções de modo próprio e quando não o faz atribui a privados a concretização de bens e serviços através das concessões de serviço público ou das famosas parcerias público privadas.

A Via Verde construiu e consolidou a sua posição de referência no mercado nacional, também com incursões no exterior, em cima de diversas concessões do Estado nas mãos da Brisa. O desenvolvimento dos produtos e dos serviços foram concretizados tendo por cobaias as concessões públicas e os consumidores, também contribuintes, gerando oportunidades para ampliar as soluções e criar novos hábitos e habituações de consumo, dentro do quadro legal e dos preços estabelecidos. Ninguém terá solicitado esse desenvolvimento, foi uma estratégia de otimização da gestão. Mas, não. Tudo não passou de uma chico-espertice capitalista já seguida por outras empresas perante a fragilidade do Estado e de quem deveria defender os consumidores.

A Via Verde prestou um leque de serviços além do pagamento de portagens por um determinado valor, com estas a serem sempre atualizadas em função da inflação, com evidente insuficiência nas manutenções dos pisos e na segurança rodoviária, por exemplo com redução da iluminação em diversos troços.

A Via Verde desenvolveu as soluções em cima de concessões de serviço público.

A Via Verde quer pôr os cidadãos a pagar mais pelos mesmos serviços, através da sua segmentação ou desagregação.

Sob o ponto de vista do interesse público e da defesa dos consumidores é miserável o que a Via Verde se prepara para fazer, invertendo o ónus da não aceitação do novo tarifário imposto pelos mesmos serviços que agora presta por um valor inferior.

Sob o ponto de vista comercial e capitalista, é o mercado selvagem a funcional face a um Estado frágil, refém dos interesses particulares, sem impulso de defesa do interesse geral.

Tudo isto é algo com que fomos confrontados várias vezes na utilização do Multibanco, do MB Way ou dos serviços dos CTT, que, pasme-se, sendo privados, permanecem com o serviço de contas de correio eletrónico de contactos do Ministério das Finanças com os cidadãos contribuintes, o “via ctt”. Aliás, os CTT, detentores da concessão de serviço público postas, com degradação que é reconhecida em todo o país, foram mais longe. O que era o serviço postal do passado, no essencial, rápido, fiável e eficaz, foi transformado numa segmentação de serviços de valor acrescentado coloridos de azul, verde e afins. Pagam-se preços superiores por serviços que eram pagos pelo preço básico e ainda assim em muitos pontos do país, sem garantias de distribuição a tempo e horas, com impactos gravosos nos ritmos de vida individuais e comunitários.

O que choca nisto tudo não é o ensejo dos privados em atirar o barro à parede, mas a política de factos consumados e a incapacidade do Estado para defender o interesse geral e os consumidores.

É criada uma habituação, mais ou menos consumista, que depois é taxada, como se não tivesse como pressuposto de desenvolvimento um bem ou serviço que é do domínio público.

Se os cidadãos são obrigados a pagar mais pelos mesmos serviços, deveriam ser criados mecanismos de salvaguarda de reciprocidade que permitissem o pagamento de menos pela ausência, deficiência ou insuficiência dos serviços.

Se uma autoestrada concessionada à Brisa tem um piso irregular, uma estação sem os bens e serviços essenciais ou existe alguma alteração das condições de circulação e segurança, os cidadãos deveriam de forma unilateral, como a Via Verde faz, alterar o valor do pagamento e depois que contestassem se não estivessem de acordo. À selva capitalista corresponderia de forma equitativa uma selva consumista, que também poderia existir se houvesse alternativas no mercado. Mas, não. A Via Verde está montada num abuso de posição dominante, gerada pelas concessões públicas, mas o quadro de vigência das intersecções entre a política e os negócios tudo permite.

Há um estado crescente de irritação com as opções políticas, por ação e por omissão, que ameaça ganhar uma dimensão estrutural e consequente. Julgo que em defesa da democracia de quase cinco décadas seria bom que houvesse alguma consciência dos protagonistas políticos, no tom, na atitude, mas também na ação. A não ser assim, temo que venhamos a continuar a assistir a uma perigosa pandemia contagiosa de selvajaria, sem regras, escrúpulos e senso, algo a que já se assiste em muitas expressões do quotidiano, da elabora de listas de candidatos a deputados ao funcionamento da sociedade portuguesa. Vai correr mal.

Quanto à chico-espertice da Via Verde, com um Estado frouxo e uma cidadania inconsequente por falta de prática, a solução, uma vez mais, é pagar aos capitalistas que se montaram no abuso de posição dominante, de monopólio, criada pelas concessões rodoviária e afins.

A Via Verde não vai ficar mais cara a partir de 1 de janeiro de 2022, é a partir de 1 de abril e não será mentira. Até nisto há certo gozo à Rendeiro connosco e com o Estado.

NOTAS FINAIS

RENDEU. Um quarto de século de vida política ativa reforçou a ideia de que a política pode ser tudo. Os valores ou a falta deles. O oito ou o oitenta. Os processos de elaboração das listas de candidatos a deputados revelam uma preocupante deriva de nivelação por baixo. Sem valores, memória, equilíbrio e sentido do efémero do desempenho das funções, dado a persistência de alguns em prosseguirem com o andor.

RENDEIRO. Depois do falhanço do sistema judicial e do êxito da captura do fugitivo, só falta trazê-lo para o país até 30 de janeiro para a euforia política com a Polícia Judiciária ser ainda maior. Afinal, não é todos os dias que uma ação de investigação criminal não é desenvolvida com partilha de informação com uma das muitas fontes media pelos seus fontanários integrados no sistema judicial.

RENDEU POUCO. O Vice-Almirante Gouveia e Melo é, para alguns, uma espécie de elefante numa loja de porcelana. O admirável trabalho realizado no plano de vacinação não foi continuado, porque a saúde é que sabe. Os humores do Presidente da República impedem o adequado reconhecimento da República e a consequente promoção militar. As tentações políticas e partidárias podem dar rendas suficientes para alterarem os quadros de referência para 30 de janeiro.

Escreve à segunda-feira