Putin invade a Ucrânia, EUA agravam sanções


Durante a primeira metade do século XX a invasão de um Estado europeu por outro acabou em guerra regional, mundializada em dois casos, com a chegada dos EUA à Europa. Desta vez é diferente?


Fruto dos horrores da 2.ª guerra mundial a Carta da ONU previu uma gestão do uso da força de acordo com os interesses dos vencedores, “Aliados” pela força das circunstâncias e pelo efeito propagandístico da denominação. A nova arquitectura da coação passaria a assentar no uso colectivo da força, determinado pelo órgão aristocrático da ONU, o Conselho de Segurança (CS), onde os vencedores têm assento permanente e gozam do direito de veto. Fixada esta regra, pôde ser determinada a proibição do uso da força a título individual (cf. o nº 4 do artigo 2º), uma prerrogativa tradicional dos Estados, quase um atributo de soberania. Desconfiando dos possíveis abusos aristocráticos do novo regime do uso da força, alguns Estados de média dimensão insistiram, durante a conferência de São Francisco, na consagração expressa do direito de legítima defesa, crismado como “direito inerente” na versão inglesa do texto do artigo 51º da Carta e como “direito natural” na versão francesa.

Acabada a concórdia entre os vencedores, rapidamente o CS ficou paralisado pelos vetos cruzados. Com a guerra fria o regresso à tradição soberanista no recurso generoso e frequente ao uso da força foi mitigado pela invocação da legítima defesa feita por todo e qualquer Estado que recorreu à força. Esta invocação tornou-se cada vez mais imaginativa, no tempo (legítima defesa preventiva, afastando a necessidade de efectivação do ataque), na forma (dispensando a natureza armada do ataque), na causa (repristinando com novas vestes impolutas a intervenção humanitária e evoluindo para o marketing do R2P). 

Também a modernidade trouxe novidades à invocação da legítima defesa. Tendo presente a experiência da Estónia, a NATO equiparou as consequências de um ciberataque que paralise ou destrua infra-estruturas a um ataque armado. Tal ataque permite invocar a cláusula de legítima defesa colectiva do artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte.

O 11 de Setembro obrigou à invocação da legítima defesa contra actores não estaduais (que não já os movimentos de libertação nas guerras coloniais, reconhecidos muitas vezes como governos legítimos). Estes actores encontram-se no território de Estados que não querem ou não podem evitar a prática de actos de agressão contra outros Estados. Em resposta as fronteiras do Estado anfitrião dos terroristas são violadas, ocorrem “targeted killings” dos seus nacionais, com dispensa de procedimentos judiciais, direito de defesa ou sentença.

A tecnologia permite a hibridização das agressões, misturando civis e militares, ex-civis e ex-militares, a venda de drones multiplica-se, transformados em armas mortíferas e, como os ciberataques, tornando muito difícil atribuir-lhes uma autoria no uso.

Da mesma forma que no período anterior à Carta da ONU a agressão armada era praticada pelos Estados que tinham meios para o fazer, actualmente a legítima defesa também não está ao alcance de todos. Na Geórgia, em 2008, a Federação Russa invocou a legítima defesa de nacionais, “agredidos” pelas forças de outro Estado. Na Ucrânia não será diferente. Em caso de agressão armada russa Biden ameaçou Putin com sanções de “elevado impacto”. Imagino o cancelamento das transacções de e para a Rússia com base no sistema SWIFT, a proibição de compra ou venda de rublos, a proibição de importações, tudo com efeitos extra-territoriais, obrigando americanos e todos os que se relacionem com os EUA. Será suficiente?

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Putin invade a Ucrânia, EUA agravam sanções


Durante a primeira metade do século XX a invasão de um Estado europeu por outro acabou em guerra regional, mundializada em dois casos, com a chegada dos EUA à Europa. Desta vez é diferente?


Fruto dos horrores da 2.ª guerra mundial a Carta da ONU previu uma gestão do uso da força de acordo com os interesses dos vencedores, “Aliados” pela força das circunstâncias e pelo efeito propagandístico da denominação. A nova arquitectura da coação passaria a assentar no uso colectivo da força, determinado pelo órgão aristocrático da ONU, o Conselho de Segurança (CS), onde os vencedores têm assento permanente e gozam do direito de veto. Fixada esta regra, pôde ser determinada a proibição do uso da força a título individual (cf. o nº 4 do artigo 2º), uma prerrogativa tradicional dos Estados, quase um atributo de soberania. Desconfiando dos possíveis abusos aristocráticos do novo regime do uso da força, alguns Estados de média dimensão insistiram, durante a conferência de São Francisco, na consagração expressa do direito de legítima defesa, crismado como “direito inerente” na versão inglesa do texto do artigo 51º da Carta e como “direito natural” na versão francesa.

Acabada a concórdia entre os vencedores, rapidamente o CS ficou paralisado pelos vetos cruzados. Com a guerra fria o regresso à tradição soberanista no recurso generoso e frequente ao uso da força foi mitigado pela invocação da legítima defesa feita por todo e qualquer Estado que recorreu à força. Esta invocação tornou-se cada vez mais imaginativa, no tempo (legítima defesa preventiva, afastando a necessidade de efectivação do ataque), na forma (dispensando a natureza armada do ataque), na causa (repristinando com novas vestes impolutas a intervenção humanitária e evoluindo para o marketing do R2P). 

Também a modernidade trouxe novidades à invocação da legítima defesa. Tendo presente a experiência da Estónia, a NATO equiparou as consequências de um ciberataque que paralise ou destrua infra-estruturas a um ataque armado. Tal ataque permite invocar a cláusula de legítima defesa colectiva do artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte.

O 11 de Setembro obrigou à invocação da legítima defesa contra actores não estaduais (que não já os movimentos de libertação nas guerras coloniais, reconhecidos muitas vezes como governos legítimos). Estes actores encontram-se no território de Estados que não querem ou não podem evitar a prática de actos de agressão contra outros Estados. Em resposta as fronteiras do Estado anfitrião dos terroristas são violadas, ocorrem “targeted killings” dos seus nacionais, com dispensa de procedimentos judiciais, direito de defesa ou sentença.

A tecnologia permite a hibridização das agressões, misturando civis e militares, ex-civis e ex-militares, a venda de drones multiplica-se, transformados em armas mortíferas e, como os ciberataques, tornando muito difícil atribuir-lhes uma autoria no uso.

Da mesma forma que no período anterior à Carta da ONU a agressão armada era praticada pelos Estados que tinham meios para o fazer, actualmente a legítima defesa também não está ao alcance de todos. Na Geórgia, em 2008, a Federação Russa invocou a legítima defesa de nacionais, “agredidos” pelas forças de outro Estado. Na Ucrânia não será diferente. Em caso de agressão armada russa Biden ameaçou Putin com sanções de “elevado impacto”. Imagino o cancelamento das transacções de e para a Rússia com base no sistema SWIFT, a proibição de compra ou venda de rublos, a proibição de importações, tudo com efeitos extra-territoriais, obrigando americanos e todos os que se relacionem com os EUA. Será suficiente?

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990