Get Back. O mais íntimo olhar para quatro bons rapazes de Liverpool

Get Back. O mais íntimo olhar para quatro bons rapazes de Liverpool


O massivo documentário Get Back, uma série de três episódios que se estende em oito horas, é um olhar único da química e dinâmicas da maior banda de sempre. 


Fazer parte de uma banda, na maior parte do tempo, está muito longe do glamour que associamos à vida de uma rockstar.

Uma grande quantidade de tempo é gasta em salas de ensaio repletas de pó, a tocar maniacamente as mesmas notas até estas fazerem sentido ou a discutir (muitas vezes de forma endiabrada) ideias com os colegas e não a cortejar groupies ou a viver o limite dos excessos. 

Em Get Back, documentário do realizador Peter Jackson (responsável pelos filmes do Senhor dos Anéis), lançado no passado dia 25 de novembro na plataforma de streaming Disney+, sobre o making-of de Let it Be (1970), o último álbum publicado dos Beatles, o espetador é convidado a observar todos estes momentos da banda como se fosse uma mosca na parede.

Uma implosão Esta não é a primeira vez que Let it Be é alvo de um intenso escrutínio. O disco foi gravado perante uma equipa de documentário, comandada pelo realizador Michael Lindsay-Hogg, que deveria apenas acompanhar a gravação de mais um disco da maior banda do mundo que deveria culminar num espetáculo ao vivo, um regresso, depois de, três anos antes, o grupo ter anunciado que nunca mais iria dar concertos ao vivo. 
Mais do que lembrado por ser o filme sobre a composição de músicas intemporais como Let it Be, Get Back ou I’ve Got a Feeling ou a etérea Across the Universe, o documentário é recordado como a estucada final na relação da banda de Liverpool e que representa o final do grupo. 

Em primeiro plano, observamos George Harrison, saturado de ver as suas músicas serem ignoradas pelos “irmãos velhos”, a romper com a banda e a abandonar o grupo de uma forma quase permanente, Paul McCartney a adotar comportamentos com um travo autoritário na composição das músicas ou um John Lennon apático numa altura em que estava a adotar como hábito o consumo de heroína. 

Let it Be tornou-se de tal forma infame que acabou por ser retirado de lojas de aluguer de vídeo nos anos 1980 e tentativas para reeditar o filme nos últimos tempos, em formato DVD e Blu-ray foram bloqueadas.

O próprio disco, cujas gravações foram abandonadas no dia 22 de janeiro de 1969, quase não foi publicado, com a banda a optar por gravar um dos seus discos seminais, Abbey Road, que, inclusive, acabou por ser publicado primeiro. Let it Be apenas seria finalizado após Lennon oferecer as gravações de estúdio ao controverso Phil Spector, um dos mais aclamados produtores musicais de todos os tempos, que foi preso em 2003 por ter assassinado a atriz Lana Clarkson e que morreu no início deste ano. 

O produtor acabou por juntar as peças deste puzzle e entregou à banda a versão finalizada de Let it Be, que, originalmente, se chamava Get Back. Apesar do disco ser um sucesso comercial gigante, a banda mostrou muito pouco afeto pelo trabalho, McCartney odiou a “sobreprodução” de Spector, especialmente na faixa The Long and Winding Road, ornamentada com grandes arranjos orquestrais, enquanto Lennon e Harrison mostraram-se um pouco indiferentes, ambos estavam com os olhos fixos nos seus discos a solo, respetivamente, Plastic Ono Band e All Things Must Pass. 

Get Back é um animal totalmente diferente. Nascido depois de Jackson ter tido acesso a cerca de 60 horas de gravações vídeo e 150 horas de áudios, o realizador, um fanático pelos Fab Four, apercebeu-se que este material revelava uma pintura bem diferente daquele capturado pelo em Let it Be. Apesar das tensões e quezílias entre os membros do grupo era visível a química entre quatro bons rapazes de Liverpool que, acima de uma banda, eram um grupo de amigos. 

Isto motivou o realizador a reimaginar e a criar algo novo que fizesse “justiça” ao que realmente se passou nos 21 dias em que os Beatles se dedicaram a gravar Let it Be. 

Este projeto, que inicialmente deveria ter sido um filme, acabou por ser convertido numa série devido à extensão do produto final, cerca de oito horas, dividido em três episódios, onde podemos observar em grande detalhe (e às vezes a fastidiosa insistência) de como uma das mais influentes bandas de todos os tempos se dedicava à criação musical.

Um dos momentos mais fascinantes do documentário surge logo no seu primeiro episódio quando McCartney furiosamente e insistentemente insiste em tocar a mesma progressão de notas no seu baixo enquanto murmura melodias na esperança de criar uma música enquanto Harrison, bocejante, e Ringo Starr observam desencantados o seu colega. 

No espaço de dois minutos, o baixista consegue criar a música a base de Get Back, música que dá nome ao documentário, e, de uma forma que parece quase instintiva, solta a linha que serve de refrão: “Get back / back to where you once belong”.

São estes os momentos prazerosos que podemos encontrar ao longo da duração monumental do documentário, que se preocupa também em desmistificar algumas das maiores verdades absolutas do grupo, nomeadamente como Yoko Ono trazia um ambiente tóxico para o grupo e foi uma das responsáveis pelo fim dos Beatles, quando esta surge carinhosamente e confidente ao lado de Lennon, a confidenciar entre sorrisos com Linda McCartney, mulher do baixista, que, inclusive, no segundo episódio, afirma que apoia o relacionamento do colega e a improvisar com o grupo depois de Harrison ter abandonado os ensaios. 

Evidentemente, era impossível esconder este lado amargo de Let it Be, com um passivo agressivo Harrison a cuspir a meio de uma sessão de ensaio a McCartney uma frase que dificilmente será esquecida. “Posso tocar aquilo que tu quiseres. Ou nem sequer tocar. O que quer que te satisfaça, eu faço-o”, disse o guitarrista amargurado e saturado de ver as suas composições serem ignoradas. 

Mais tarde, sem grande espalhafato, levanta-se do seu lugar e diz que vai deixar a banda. Depois de abandonar o local de ensaio, segundo o livro A Porta Fechada de Graeme Thomson diz aos colegas: “Podem substituir-me. Ponham um anúncio no New Music Express e arranjem umas quantas pessoas. Vemo-nos nos bares”, despediu-se.

O “Beatle calado” acabaria por regressar, depois de o grupo concordar com a ideia de abandonar a ideia de fazer um último concerto, mas estaria aberta uma ferida que não seria verdadeiramente encerrada e que, eventualmente culminaria no fim da banda, descrevendo que gravar Let it Be foi uma experiência “traumatizante” o, que levou as gravações de Abbey Road a ser feitas na sua maioria com cada membro a gravar e a criar as suas músicas de forma isolada.

Mas antes deste disco e do final de Get Back, observamos aquela que é a despedida simbólica do grupo e a última vez que os Beatles atuaram juntos, o concerto no telhado do edifício da Apple, com uns inesperados transeuntes a serem brindados com interpretações icónicas de Get Back, Don’t let me down, I’ve got a feeling, One after 909 e Dig a pony.

A tocarem juntos, a química e dinâmica entre os quatro amigos de Liverpool, e do teclista Billy Preston, quase faz esquecer as discussões que assistimos e apenas transparece a sensação que estes poderiam ficar naquele telhado para sempre a tocar como os putos que se mudaram para Hamburgo em 1960 para ganharem dinheiro como músicos a tocarem em bares duvidosos.

Claro que isso não era possível, tanto que acabaram por ser expulsos dos terraço por polícias de rua. Uma decisão que, pelo menos, terá agradado todos os octogenários filmados por Michael Lindsay-Hogg que se queixavam da terrível barulheira que estes miúdos estavam a fazer.