Às vezes, diante de uma época em que a luz tanto vacila, em que os ritmos nos parecem desfeitos, e a maioria dança de memória até já não ser possível esconder o desequilíbrio, temos a impressão de que se a luz faltasse por uns instantes e fôssemos mergulhados num escuro total, quando retomássemos os sentidos a realidade poderia ter-se deslocado drasticamente dos seus eixos. Poderia até não passar de uma memória sem forças para recobrar um novo fôlego, condenada a repetir-se perdendo bocados, até não fazer já o menor sentido. Hoje, tantas das sensações que se formam em nós são como sinónimos para a ideia de que é muito tarde, e daí que um poeta clame desde há décadas: “Estou impaciente por ouvir a canção que mata!…”
É este o verso final de Ulisses, um longo e sumptuoso poema, cheio de som e fúria, apressado e rouco, digressivo e fervilhante, de tal modo espantoso que consegue causar aquele ponto de ebulição no sangue que provoca o impulso de zarpar, desenraizar-se. Mesmo que seja tarde demais, de tal modo que nos provoque um certo embaraço esse atrevimento de começar seja o que for, logo no prefácio do poema, Fondane faz-nos ver que não temos grande escolha. “Há muito tempo/ que o espectáculo da História tinha começado/ já se tinha esquecido os inícios/ as origens fabulosas,/ quando eu nasci no mundo”. E, no entanto, apesar de irmos já a meio da Intriga, de nos parecer que todos os acontecimentos estão de algum modo previstos e foi usurpada a capacidade de arrancar do mundo uma expressão de surpresa, é a isso que se propõe todo o poeta, que é, afinal, “uma personagem inquietante”, alguém capaz “de improvisar um mundo à margem do Autor”, alterar o sentido da acção, a trama dos móbeis, talvez por um instinto que dentro dele grita e se excede, afiando-se como a ponta da lança de quem assume um “ascendente prodigioso, estranho da vida”. Assim, se num escrito de juventude Fondane registou que “os poetas são feitos para ser esquecidos”, talvez isto se justifique por a sua revolta ser realizada à margem do Plano, nessa zona mais íntima da existência, que os outros nem roçam. (“As palavras morrem ao trocarem de boca,/ a sorte gasta-se ao fornecer os dados.”) Os poetas acabam esquecidos, porque à História cabe registar os feitos que organizam a cronologia dessas (in)dignidades que tornam a sua máquina tão barulhenta, tão difícil de contrariar. Aquilo com que a História não aguenta são essas explosões indomáveis cujos efeitos, se arrebatassem as almas, fariam ir pelos ares todas essas estruturas que impendem sobre nós e nos amesquinham face ao passado e ao futuro. A História opera, assim, num tortuoso efeito de relojoaria, ao qual escapa o sabor dessas manhãs imensas como aquele que se retira “no caroço dos frutos onde as crianças têm medo”.
Cioran diz-nos que, “comparado com o refinamento de uma cultura anquilosada que, prisioneira dos limites e das formas, tudo disfarça, o lirismo é uma expressão bárbara: o seu verdadeiro valor consiste, precisamente, em não ser senão sangue, sinceridade e chamas”. Para este cáustico filósofo que travou amizade com Fondane, que fez os possíveis para evitar que este tivesse o fim que teve, nos campos de concentração como, de resto, o havia previsto uma década antes de entrar na câmara de gás, para Cioran era tarde demais para que o sentido da vida pudesse ser alterado pelas ideias que há num homem: “Eu não tenho ideias – mas obsessões. Ideias, qualquer um pode tê-las. Nunca as ideias causaram a ruína de quem quer que seja.” Assim, aos seres “esmagados por essa luz desumana” que cobre os nossos dias, resta a pedregosa luz dos poemas, a paixão do absurdo, dessa música que nos atrai para longe desses grandes enredos e intrigas, que nos dirige para a inutilidade absoluto, para esses refúgios que são sustentados como asilos nocturnos, “onde escorrem as águas esverdeadas do ser humano”, as casas de jogo clandestinas, onde “as Parcas do tédio (…) tricotam meias de lã para os mortos”.
Desde o rosto, nesse retrato mais vezes reproduzido, Benjamin Fondane mostrava-se já um ser aparte, doce e descomedido, com a sua “sede maior do que o mundo”, com o seu radiante enigma, um sorriso que absorve por si só o porvir, e, sendo assim, “porque não vir saudar o público?/ Uma alvorada do além treme no teu rosto…” Este seu Ulisses não planeia qualquer regresso, deixa que Ítaca se desfaça com a vertigem da própria viagem, corroendo a ilusão de um regresso e até a ideia de que a distância possa fazer alguma diferença: “Os meridianos traçados a giz no globo/ como sempre atravessam a região lombar do marujo/ que canta para enganar a fome da sua angústia./ … Sonha-se com uma estúpida e chata indiferença/ grávida de uma felicidade rugosa, e que se ignora,/ longa maternidade de um infinito ferido/ que cai por terra./ Mas chega a ser um ruído de consciência/ e mal chega a ser uma linguagem./ Avanço e oiço tilintar o peso leve do mundo/ nas minhas mãos.”
Este poema é, assim, uma pauta com largas margens, onde se anotam impressões demasiado fulgurantes até para serem cantadas, um testemunho acerado pelos nervos, um enredo discreto de tráficos que fazem circular o ar por entre a pestilência, sinais ferozes, aquele turbilhão selvagem de alguém que sente o real ceder face à sua sede. “Tínhamos com que conquistar mais do que um mundo”, diz ele, mas depois “o espaço era intragável,/ o sangue mordia o vazio”. É como se o corpo se descobrisse em falência não pelos órgãos que traz de origem mas por aqueles que querem transplantar para o seu interior. Como se o coração estivesse a mais, fosse qualquer coisa velha, cujas pulsações se indignam ao embater no vazio ao redor. “Da morte à morte é só uma canção,/ nela lavamos os dentes e a boca/ … Que procuras na memória,/ uma canção, um fruto que se dissolve na memória,/ um fruto, nada mais do que um fruto,/ uma canção que odeia a vida,/ a vida, a vida entre a morte e a morte,/ escondida nas meias de lã ou paga a pronto”. Aí está a cruel clareza de um testemunho que se arrancou balançando entre os extremos da vida, sentindo-a estalar dentro de si, num excesso de intensidade, desequilíbrio, declarando esse “ultimato infernal do espírito a si mesmo” (Cioran).
Mas se este é um poema atravessado de uma ponta à outra pelo absurdo da existência, se vê como os homens estão ausentes de si mesmos, e como parecem ser as suas sombras, consumidas pela cólera, que ainda denotam algum desacerto, como se escavassem saídas, quando o desejo mais profundo em muitos se resumo a “não estar em lado nenhum”, há aqui uma virulência mágica, imagens estarrecedoras, visões que, por mais degradadas, não deixam de nos alimentar a sensação de que o espírito é a sua própria vingança e recompensa. Este Ulisses dá por si entre homens remoídos por febres secretas, “regressados de uma viagem onde também eles/ viram seres, portos e mares insanos,/ coisas eternas, tão insípidas para o palato,/ e sensíveis, ternas e perecíveis coisas/ – tão caras!” Esta é uma obra que arranca as raízes de todo o classicismo para vociferar naquele troar moderno que conhece todas as voltas e os nós da mais “negra luminosidade” (expressão do seu tradutor espanhol, Gonzalo Torné), mas domina também o fôlego dos grandes deslumbramentos. Se nuns momentos “esmaga o olhar e calunia as distâncias/ é imunda e cospe o destino”, entre o tempo inchado e desinchado, é capaz de vislumbrar “portos desafinados como velhos pianos”, onde um vigor carnal é capaz de descrever manhãs em que “os sóis transbordam o sutiã das sebes”, e falar do “branco voo das gaivotas/ suaves como um soluço irreal da carne”. Há um rosário sem fim de resplandecentes versos nestas páginas, que vão ateando esse “grito da carne, espírito, velho instrumento de sonho!”
Mas, como vincou Cioran, “a vida resiste mal a altas temperaturas”, Assim sendo, “os homens mais atormentados, cuja dinâmica interior atinge o paroxismo e que não se conseguem acomodar à tepidez habitual, estão condenados à ruína”. E há inúmeras similitudes entre a convicção em que se fundam as obras de um e do outro. Mas se este preferiu esse aforismo que se nos lança à jugular e dá cabo desses ornatos optimistas das mentalidades pouco profundas, Fondane, que também manteve uma intensa actividade filosófica, nos versos dá largas àquele registo onírico e, não negando a ruína, trafica por meio da memória uma potência de evasão: “Houve um tempo, camaradas,/ em que o soluço dos homens nos subia até aos rins/ então o fruto estava bichoso?/ o mal era incurável?/ Ah, era preciso lançar pontes sobre os rios/ arrancar o segredo às ervas, às entranhas/ das coisas –/ inventar, esquecer uma quantidade de coisas!/ Se este mundo é mau, que dizer dos mundos/ por nascer? Seremos nós a abastecê-los.”
O que Fondane faz aqui é mapear o céu onde brilham as “estrelas do fim do mundo”, aquelas que nos arrastam para esse fascínio das insónias demolidoras. Com o balanço que o estertor em nós provoca, acabamos diante de impressões de um fulgor que não nos deixa desertar em absoluto: “nos confins da vida e da morte vimos/ a camomila terna dos candeeiros dos bordéis”… Diante de um país desconhecido, o poeta não consegue suprimir um ânimo que se lava em qualquer água e se põe de novo a desejar: “dêem-me um país que seja à minha medida/ semelhante ao velho caos/ com ervas amargas e sóis selvagens/ homens lentos e perigosos”. Mas depois, nessas mesmas palavras que lhe antecipam a sua sombra, nessas palavras amadurecidas escuta “o vazio que soluça”: “na coisa que foge toco-me e perco-me/ trabalhador dos esgotos do grande sonho,/ a minha mão desenvolve-se cheia de linhas, de raízes/ – tive realmente falta de fé?”
Este poema sem par na tradição moderna, range, chispa, vibra, electriza e assombra-nos, trabalhando uma matéria inflamável, cheia de contradições, ambiguidades dolorosas, ritmos e imagens submergindo todas as escalas. Dos inebriamentos que nos seguem desde tempos ingénuos até às bebedeiras terríveis daqueles que “trepam na noite até ao fim do mundo”. Em qualquer página que se abra, bastando um relance, logo uma frase nos entra pelo olho e faz estremecer o quarto. “Como uma reza de pé, sobre os destroços fumegantes”, esta é uma escrita que saboreia o terror, aquele balanço maduro de quem viu levantarem-se e cederem demasiadas tempestades, quem sabe que o fim do mundo não é um capricho, nem vem de um só embate, mas é essa água que nos amolece os ossos, salga lentamente o sangue, endurecendo as veias e o coração. Fondane arrebata-nos com o segredo da sua substância perdida, revirando “as paisagens vistas nas caixas dos mares/ a alvorada dos portos suja de sóis futuros” e, ao mesmo tempo, voltando sobre um passado que se deixa abalar, que permite um resgate emocional, próximo ao de quem “cuida desses seixos do mar como de diamantes”: “Tínhamos ar de desconhecidos que dançaram num baile,/ que se apoiaram por um momento um no outro/ e que receiam misturar o seu suor e o seu sonho,/ enquanto neles se davam festins fabulosos/ vinhos sem amanhã tiniam nos seus ouvidos,/ e uma música subia como um jardim suspenso”.
Enunciando a cada passo a sua ascendência e raça, exaltando “a sede do espírito como uma lâmina desembainhada”, não é difícil reconhecer Fondane como um estrondoso elo perdido entre Blaise Cendrars e Henri Michaux. “Pouco importam os rios/ a esses para quem a vida é a da terra firme,/ tranquilamente sentados nos terraços aquecidos,/ eu vi a água levantada subir-lhes aos ombros/ encharcava-lhes o coração, enchia-lhes os pulmões de bolor/ eu vi e gritei ‘socorro’/ eu já tinha gritado nos primeiros dias do mundo (…) Basta, basta, minha insónia!/ O mundo talvez esteja aqui, mas estou eu realmente nele?/ Passo e não fica nada no espelho,/ nem mesmo um buraco/ e por mais que eu exercite as palavras fora de uso/ como se endireitam com o martelos os pregos que já/ serviram, tortos, e que se pregam de novo,/ não há uma canção para toda a gente,/ eu não posso fechar os olhos,/ devo gritar sempre até ao fim do mundo:/ ‘não é preciso dormir até ao fim do mundo’/ – sou apenas uma testemunha.”
Se um poema destes, surgindo-nos de um ângulo morto, nos arranca aos gonzos como um bofetão que nos traz um rubor súbito à palidez com que vamos aguentando os rigores do inverno lírico a que temos sido sujeitos, isso fica a dever-se simultaneamente à tradução de Diogo Paiva, que tem aquele gosto de uma coisa que se arrancou das entranhas da nossa língua, com um esforço para salvar aquela carne onde se dá uma “rixa invisível de galos”, mas também ao esmero gráfico da edição, que em vez de apertar a letra até que esta lembre insectos esmagados na página, deixa-a respirar, para que no seu detalhe se crie uma volúpia caligráfica, o que dá margem ao olho para delirar com estes versos que, de tão vivos, parecem ter sido manuscritos por aquele punho que tão duramente pousou na mesa do mundo.
De uma concisão notável, a nota de apresentação assinada pelo tradutor, dá-nos as coordenadas essenciais para que esta aparição não se torne demasiado enigmática, e é-nos dito que o poeta nasce Benjamin Wechsler em 1898, em Iaşi, na Roménia, tendo começado a publicar poemas em revistas com apenas 14 anos. Filho de um pai comerciante e de uma mãe originária de uma família intelectual judaica, abraçou as suas origens e dedicou-se à tradução de poemas em iídiche, mantendo uma colaboração bastante activa na imprensa, até aos 25 anos, altura em que se viu obrigado a deixar o país para escapar às perseguições anti-semitas. Em dezembro de 1923, chega a Paris e mergulha de cabeça nos círculos poéticos e filosóficos da cidade. Não demora a dominar o francês, adoptando para os textos que lhe saíam nessa língua o apelido Fondane, sem deixar de escrever em romeno, e assinando esses outros textos como Fundoianu. A influência fundamental nos seus textos de cariz filosófico é Lev Chestov, mas a marca decisiva do seu labor literário é a inquietude, e expande-se como uma mancha de sangue sem se confinar a algum género ou aos meneios e trejeitos próprios de um ou outro movimento. Conviveu com várias figuras que viriam a assumir grande relevo nas décadas seguintes, desde Stéphane Lupasco, Jean Paulhan, Brancusi, Yves Bonnefoy, Claude Sernet, Adamov, entre outros. O retrato reproduzido na capa da edição portuguesa e que, em certa medida, o imortalizou, é de Man Ray.
Em 1930, em casa de Chestov, foi apresentado a Victoria Ocampo, e a amizade entre os dois levou a que esta o convidasse a viajar à Argentina, o que fez em duas ocasiões – a primeira, em 1931, para apresentar um ciclo de filmes vanguardistas, e, cinco anos mais tarde, uma segunda visita com o propósito de dar caça ao absurdo por meio de um filme, que depois não encontrou distribuidor e só foi exibido umas poucas vezes, tendo-se perdido todas as cópias. Ao longo dos anos, os dois mantiveram uma longa correspondência e Ocampo, que o recordaria anos mais tarde como uma presença contagiante, um formidável conversador sempre armado de um sorriso largo, levando à volta do pescoço cachecóis em tons berrantes e as mãos protegidas numas luvas de lã verdes, teve dele muitas vezes uma certa indiferença e até um tom levemente trocista nas cartas. No último encontro entre os dois, em 1939, era de noite quando ela foi acompanhá-lo a casa de táxi, e antes que se despedisse, ele insistiu em entregar-lhe um pacote com alguns dos seus manuscritos, “para o caso de não voltarem a ver-se”. Sempre teve um faro apurado para reconhecer quando se aproximava o fim, e, no ano seguinte, já naturalizado francês, foi mobilizado, feito prisioneiro pelos alemães, e ainda conseguiu escapar, e, por motivos de saúde, ser deixado em paz para viver mais uns tempos em Paris, tendo escrito então a obra em que depositava mais fé como criador, uma leitura de Baudelaire, com o título “A experiência do abismo”. Durante a ocupação ainda escreveu nalgumas revistas clandestinas e participou numa antologia de poetas da resistência com o pseudónimo Isaac Laquedem. Pode assim ver em letra de forma o epitáfio que compôs para si mesmo: “Aqui jaz, coberto de poemas, Isaac Laquedem, um pouco excessivamente extremista, filho do vento que atravessou a terra e os vivos,/ todos tendo-lhe parecida cativantes e efémeros,/ bom tipo apesar de tudo,/ mas instável (um mal herdado no sangue),/ escrevendo sempre na areia,/ o idioma dos céus.”
Foi por essa altura que resolveu reescrever Ulisses, que fora publicado originalmente em 1933, dedicado ao seu cunhado Armand Pascal, que morrera em 1929 e com quem, juntamente com a sua irmã Line, actriz, fundara em 1922, em Bucareste, o grupo de teatro de vanguarda Insula. Foi também por esses dias que conheceu Cioran, tendo exercido uma influência decisiva para que este rejeitasse de vez as suas simpatias juvenis para com o fascismo. Podia ter escapado, fugido ao destino que lhe estava reservado, mas era como se reconhecesse que para lá do seu destino um homem apenas sobrevive como um fantasma, e, assim, deixou-se ficar em Paris. Ele e a irmã foram alvo de uma denúncia a 7 de março de 1944, e foram levados para o campo de Drancy. Como era casado com uma francesa de origem ariana, Geneviève Tissier, os esforços de Stéphane Lupasco e Cioran para libertá-lo foram aprovados. Mas não havia nada a fazer em relação a Line, e Fondane recusou-se a abandoná-la. Chegam a Auschwitz a 30 de maio. A irmã morre primeiro, e a 2 de outubro é a sua vez de entrar na câmara de gás. Nem nesses últimos passos que deu sobre esta terra se arrastou como um fantasma, e os relatos de sobreviventes que emergiram depois dão conta de como, nos últimos meses, os tempos livres de que dispunha gozava-os, entre outros como ele, que apreciavam discutir poesia e filosofia, saboreando aquele acontecimento digno da História Moderna, sabendo que aos homens o que cumpre é manter os olhos abertos até que o derradeiro raio de luz agonize na sua retina. “Um lugar qualquer na terra. É a mesma loucura/ e a mesma insónia… e é o mesmo mastro./ Oh! acabar decentemente num canto da estampa./ E que o vento te leve, penugem do dente-de-leão…”