O título do seu mais recente livro de ensaios, “A lágrima de Ulisses”, assume-se como a metáfora d' “O regresso da percepção do humano como princípio estruturante da literatura”. A desdita do herói de Homero parece uma tremenda conta de somar. As parcelas, essas, há-de Ulisses contá-las, tim-tim por tim-tim, no país dos Feaces. Faltava ainda a desgraça do seu fiel amigo, Argos, o cão que o reconhece após vinte arrastados anos de ausência, que o faz soltar uma lágrima que logo procura esconder. É neste lance da Odisseia que o título deste volume de ensaios se inspirou.
Além da boa forma, no caso ensaística, Frias Martins partilha com Ulisses o espírito aberto às curiosidades e às mutações do mundo, a coragem, que o leva a transformar nomes grandes da nossa literatura em sujeitos de culpa daquilo que é hoje reconhecido como o abandono da leitura, mas também a arte de prender pela palavra. O modo múltiplo como o consegue vai ao encontro do que a tradicional cautela universitária tem por costume desaconselhar – a intensidade apaixonada da razão, comunicada com a naturalidade de um estilo fluente, o impacto de boas ideias, executadas sem infestações de notas de rodapé, mas também uma certa desformalização da dicção, que toma por vezes direcções coloquiais sem nunca perder a elegância da formulação. Junte-se ainda uma bolsa de dúvidas, sem as quais não é possível avançar. “A Lágrima de Ulisses – Regimes da Cultura Literária” passa ao largo das velhas certezas académicas.
Os seus começos literários remontam aos Quatro Elementos Editores. Como é que surgiu este grupo?
Os meus começos, como crítico literário, os começos do Mário de Carvalho, que tinha regressado há pouco da Suécia, os do António Guerreiro, do Paulo Varela Gomes. Mas o pai de toda esta gente – estava também o Manuel Gusmão – foi o Fernando Guerreiro, a quem eu chamei o protector dos sem abrigo da cultura, e que gastou boa parte do dinheiro da sua herança na edição das plaquetes e revistas que publicámos. Era uma editora completamente contrafeita.
Mas como é que tudo começou?
Estávamos em 1978/79 e tudo se passa em Lisboa. Havia um conjunto de assistentes da Faculdade de Letras, mas também gente que vinha do Porto, como o José Emílio Nelson, o Paulo Tunhas. Íamo-nos conhecendo uns aos outros graças a essa espécie de abrigo cultural gerado pelo Fernando Guerreiro, em casa de quem começámos a reunir. Queríamos transformar o mundo e a literatura. Trazíamos para as reuniões textos que avaliávamos e comentávamos. Em 1980, começámos a publicar a revistar “Mar”, onde o Mário de Carvalho publica o primeiro conto, “Expedição ao interior do navio”. Lembro-me de ter dito: “este tipo já é escritor”, porque aquilo que identificamos como sendo o traço literário, estava lá. No ano seguinte, publicámos, no mesmo quadro, uma outra revista temática, a “Peste”. O único texto criativo que escrevi em toda a minha vida está na “Peste”. Entretanto, o Mário de Carvalho publica os “Contos da Sétima Esfera”. Eu já tinha começado a escrever crítica literária no Diário, que tinha um suplemento cultural muito interessante. Em 1983, publicamos outra revista, o Eldourado. Pelo meio, o Fernando Guerreiro ia publicando plaquetes – com Francis Bacon, com coisas francesas que ele traduzia. Em 1985, quando saiu o último número da revista “Ruínas”, cujo lançamento, ou espécie de lançamento, foi feito nas Ruínas do Carmo, o Mário de Carvalho escreveu o “Tanto Pessoa já enjoa”, uma espécie de manifesto, quando se assinalava o cinquentenário da morte do Pessoa.
Em todos os seus livros, na nota biográfica, vem dito que “não escreve poesia nem romances”. É uma afirmação ou uma demarcação?
Sempre fiquei um tanto de pé atrás em relação aos autores que se desmultiplicam em géneros. Mas não é só por isso. Todos nós, numa altura qualquer da nossa vida, sobretudo na juventude, tentamos fazer poesia ou escrever uma narrativa, e por vezes isso não resulta, porque o nosso pendor crítico, a nossa inclinação vai mais para a compreensão do literário, aquilo que vai ser ou a teoria ou o exercício da crítica. Quando temos esta fundamentação em nós próprios, de que a compreensão é mais importante que a produção de um poema ou de um romance, então isto torna-se sufocante quando tentamos escrevê-los, ficamos hiper-críticos. Desconfio muito dos autores que se desdobram em poesia, romance, ensaio. Parece-me que dificilmente podem compatibilizar tudo isto. Tomando-me como exemplo, acho que a nossa disposição analítica pode tornar-se tão sufocante que o poema só surge de uma maneira quase artificial, a narrativa só acontece de uma maneira forçada. Há quem idealmente possa compatibilizar tudo isto. Eu, como não consegui, entreguei-me ao ensaio e é nele que faço a minha poesia e os meus romances.
Está a afirmar, portanto, que o bom ensaio não pode prescindir do elemento literário?
Eu defendo que o ensaio é um género literário, vive muito das imagens, das metáforas, da linguagem. Está associado à poesia mas é também a construção de uma narrativa. O ensaio, em certa medida, conta uma história, nem que seja a história de uma ideia. O ensaio não anda muito longe da congeminação interpretativa, que é uma possibilidade de criar um mundo à volta de um determinado texto. Outro crítico cria outro mundo. Neste sentido, o próprio ensaísta vive um pouco no universo da ficção. Há interpretações diferentes dos textos, não só pela dependência que essa interpretação tem do sujeito que observa, mas também pelo universo criado, que pode não ser assim, mas poderia ser. Este poder ser é o elemento que estimula a ficção.
Parece-lhe que muito do que hoje se publica como ensaio é interessante ou, pelo contrário, poderia ser facilmente atirado para as margens da irrelevância?
Tal como há maus poetas – porque lêem pouco os outros poetas –, assim há maus ensaístas. Um ensaísta tem de ler outros ensaístas para compreender a estrutura mental de aproximação do seu objecto. Mas não chega: é necessário haver um sedimento de linguagem e de relação da linguagem com as ideias, tem que dominar a linguagem e isso só acontece lendo poetas, romancistas e ensaístas. Um ensaísta, mais ainda que um poeta ou um romancista, tem de ser um leitor contínuo, um leitor compulsivo que apreende, absorve registos linguísticos, modos de relacionamento com a linguagem que associamos ao poeta ou ao romancista, mas que o ensaísta também tem dentro de si, em termos de enciclopédia privada. Os melhores ensaístas não são necessariamente aqueles que têm as melhores ideias (as ideias circulam, vão surgindo…), mas se não houver depois um impulso de organizar essas ideias através da linguagem, torná-las apetecíveis como possibilidades de entendimento do mundo, nada feito. Se não houver esta estratégia, que é acima de tudo uma estratégia de construção de linguagem, na representação das ideias, então o ensaísta pode ser o mais inteligente dos ensaístas mas vale pouco, por não conseguir estabelecer pontes de ligação com os seus leitores. O melhor ensaísta é portanto um leitor compulsivo que aprendeu na poesia, no romance, a dominar a expressão das ideias através do domínio da linguagem.
Ruy Belo dizia que, ao contrário de um advogado ou de um médico, que podem falhar sem que isso implique a perda do 'título', “não se pode impunemente ser mau poeta sem por isso se perder a qualidade de poeta”. Acha que poderíamos transpor para o campo do ensaio?
Eu admiro muito o Ruy Belo mas não gosto muito dessas designações gerais O impulso para o poema tem na sua origem o impulso linguístico e o impulso ficcional, que é a possibilidade de construir um mundo possível. O mau poeta, neste sentido, é aquele que não consegue conciliar estes dois universos. Veja-se, por exemplo, os concursos literários camarários ou outros, habitualmente sob pseudónimo. 99% dos que concorrem são maus poetas. A linguagem é pobre, as metáforas e as imagens ou não existem ou estão gastas. Aquele universo ficcional de reconstruir uma qualquer experiência é pobre, a relação das palavras com as ideias falha. Faltam leituras mas também o estímulo individual. Quer queiramos que não, já o Horácio dizia “poeta nascitur no fit” [nasce-se poeta, não se faz poeta]. É que fazer poesia não é juntar palavras.
A verdade é que são cada vez mais – e basta observar as redes sociais – os que, até com alguma pompa, se intitulam “poetas” ou “escritores”. Existir nunca parecer ter sido tão fácil. Haverá, hoje, uma grande confusão à volta das coisas da poesia?
É mais um exemplo de uma falha pessoal. Uma falha naquilo que culturalmente é visto como poeta. Quem é médico, na sua actividade gravita por uma série de circunstâncias que o definem como médico. Quando alguém tem de dizer: “olhem para mim que eu sou poeta”, algo vai mal.
Voltando ao campo do ensaio. Considera que, entre nós, é excessiva a publicação de teses académicas? Haverá algum modo de controlar a febre editorial?
Uma boa parte dos ensaios publicados em Portugal nos últimos 15 anos, tiveram de facto origem em teses académicas ou em comunicações apresentadas em congressos e depois reunidas. Mas há uma diferença entre o interesse que um ensaio pode ter, quando publicado e divulgado por uma editora comercial, e as teses académicas. A diferença está no facto de a academia ainda hoje gostar muito das bibliografias, das citações, da confirmação do já dito – essas teses confirmam um saber. Isto acaba por ficar condenado ao arquivo; cumpriu o seu papel (até pode ser uma investigação de altíssimo nível), mas não tem interesse, no sentido em que se entende o circuito comercial ou de divulgação ensaística das ideias. Acontece, no entanto, que alguns desses trabalhos acabam por ser publicados porque os centros de investigação têm verbas para também financiar a publicação dessas teses. Ora o mercado onde são colocadas não é o das ideias tal como elas são equacionadas no mundo académico. Resultado: o autor fica feliz, o editor fica com papel que nunca mais acaba mas não perde dinheiro porque os custos de produção foram assegurados, a universidade pouco ganha com isso, antes pelo contrário. O mundo comercial e intelectual ficou saturado com essas publicações.
E a que se deve o apego, por parte das universidades, ao já dito e redito?
É um mecanismo de auto-defesa. A universidade exige e insiste na originalidade, só que a originalidade académica é um conceito perigoso. Os orientadores de tese querem defender o seu próprio estatuto e fazem um tipo de exigência que vai no sentido de confirmarem constantemente o que estão a dizer com alguém que já disse antes. Trata-se de arriscar alguma ideia, mas ao mesmo tempo tentar suportá-la no já dito da respectiva área. É uma originalidade controlada. As teses que saem deste panorama têm de ser sólidas do ponto de vista da bibliografia. Não se diz que amanhã vai chover sem citar o senhor do boletim meteorológico [risos]. E mesmo quando se cita alguém, esse alguém tem de estar com os créditos bem firmados no próprio universo académico.
Podemos pois concluir que muito do que se publica, saído da academia, é uma encenação de ensaio, mesmo porque o verdadeiro ensaio talvez seja a antítese do trabalho académico?
É, e é uma encenação académica, que é a pior de todas as encenações… Aceita-se que seja uma situação difícil de resolver, sobretudo se virmos o que se passa em algumas editoras universitárias estrangeiras. Toda a universidade deveria ter a sua imprensa própria. Coimbra e Lisboa têm, mas é como os comboios espanhóis: umas vezes sai, outras não sai, e quando sai não circula. Se virmos certas edições francesas, inglesas e sobretudo norte-americanas, são publicadas por imprensas universitárias e vão circular pelo mercado dos interessados numa determinada área. Mas aqui houve um comité rigoroso de selecção, com grandes especialistas, a quem são entregues alguns textos para avaliação. Aquele peso da erudição académica, da investigação bibliográfica não bastam, tem de haver algo mais. É preciso um critério relativamente sólido para separar as águas. Ora em Portugal isto nunca existiu e duvido que venha a existir.
E porquê?
Porque Portugal tem características muito próprias… É como se fosse uma junta de freguesia onde toda a gente conhece o regedor. O Alexandre O'Neill dizia, a propósito do tamanho do país, que corremos o risco de dizer mal de alguém nos jornais e no dia seguinte encontrarmos esse alguém no elevador.
Por vezes, fica a ideia de que a moeda da comunicabilidade parece ter deixado de ter valor de circulação quando nos movemos em campo académico…
Isso é típico da velha universidade, do velho espírito universitário caduco, que existe mas começa a ser ultrapassado. A mentalidade era essa: rebuscar, ofuscar, tornar o discurso tão denso e nebuloso que ninguém lhe conseguisse pôr o dente. E isto normalmente mascarava defeitos próprios, carências, falhas, e portanto ignorância. Houve uma altura em que tive de me confrontar com a questão da legibilidade do discurso ensaístico e encontrei uma frase muito curiosa de um autor inglês, John Ruskin. Ele dizia que “o direito de ser obscuro só pode ser alcançado depois de um longo esforço para se ser inteligível”. Esta afirmação funcionou sempre para mim como um farol: ser tanto quanto possível legível, excepto quando surgia a necessidade de me tornar deliberadamente obscuro, sobretudo quando o pensamento quer jogar com duas ideias contrárias ao mesmo tempo, em que achamos que o paradoxo é o elemento mais disponível para transmitir a complexidade. Mas ao mesmo tempo aquilo que pode obscurecer o discurso. Quando comecei a fazer crítica literária tinha a tendência para ser obscuro: era medo que não me levassem a sério. E então dificultava a leitura através de um rebuscamento da linguagem. Se o leitor não perceber é porque eu sou muito bom [risos]. É a maneira que temos de nos sentirmos elevados para sermos levados a sério
A clareza é para si uma preocupação? Procurou-a quando escreveu os ensaios que compõem “A Lágrima de Ulisses”?
Tornou-se uma preocupação e começou com o meu livro sobre o Saramago [“A Espiritualidade Clandestina de José Saramago], que inicia com uma comunicação que apresentei na Croácia. Sentindo que avançava em terreno inexplorado e sabendo que ia ser uma coisa polémica, senti-me na necessidade de ser claro, legível na posição que estava a querer colocar. E isso deu-me simultaneamente o lastro para uma nova atitude em relação ao ensaio que também está neste novo livro. A ideia de que se eu não conseguir ser claro é porque as minhas ideias não são suficientemente amadurecidas para poderem ser divulgadas. Este novo livro decorre já nesse regime de legibilidade em que procuro situar-me num plano de comunicação que seja simultaneamente profundo e que resulte de um conhecimento também profundo das matérias que abordo.
A comunicabilidade é justamente abordada num dos textos deste livro.
No último texto, intitulado “A pertinência pública da literatura”, corro o risco de culpar dois monstros famosos da literatura portuguesa daquilo que é hoje reconhecido como o abandono da leitura: António Ramos Rosa e Maria Velho da Costa. A partir do início do séc. XX, a pouco e pouco, a literatura ficou fechada em si mesma e na ideologia da linguagem de que se compõe. E isto vai culminar, nos anos 60, naquilo que conhecemos como sendo a autonomia total do texto. Barthes vai dizer que o texto propõe e o leitor dispõe, sim, mas vai matar o autor para sobreviver o texto. Genette vai fazer a mesma coisa. Diz ele que fora do texto não há cá conversa. Esta ideologia do texto é transferida para Portugal por António Ramos Rosa, quer pela teoria, quer pela prática, a dar-nos uma poesia sem alma, que vive de um exercício racional da selecção das palavras.Os textos teóricos dele são “traduções”daquilo que se ia publicando em França, sobretudo do Genette e do Blanchot, que eram o arco em que se entendia a literatura como mero trabalho da linguagem. E com a Maria Velho da Costa, a palavra soltava-se e podia aparecer sem contexto, era o puro prazer da palavra. Resultado: isto afastou os leitores.
Este seu livro é também uma espécie de manifesto?
Não, manifesto já tive um – do Paulo da Costa Domingos. Este livro é uma afirmação pessoal de um estilo, e evidentemente de algumas ideias.
Não é preciso ter de si a imagem do retrato falado do académico, para ficar surpreendido com o acolhimento que este livro dá a questões como os meios digitais, a tecnologia, ou a realidade virtual. Sempre se interessou por estas questões?
Nós não queremos que o futuro nos abandone. Gostaríamos que os nossos valores actuais continuassem no futuro, mas não é assim que as coisas funcionam. Então, tenho de perceber no presente quais são os sinais que me mostram o futuro possível: o avanço tecnológico espantoso e a realidade virtual, a possibilidade de um texto ser vivido. Podemos escolher viver uma personagem, com outras personagens à volta, uma determinada história. Quem é que se encarrega disto? Os tecnólogos, que muitos do que são agora escritores, no futuro, hão-de reencarnar em tecnólogos para escrever esses quadros virtuais em que nós iremos existir. Nós, enquanto leitores, seremos actores.
Como este livro refere, é verdade que as redes sociais acabaram por colocar a literatura “num novo patamar de atenção”. Mas se é verdade que nunca terá sido tão fácil existir, também é verdade que nunca o provisório e o inane tiveram tanta força.
Nós vivemos na sobremodernidade (Marc Augé), que é o tempo em que a aceleração das coisas é de tal forma grande que aquilo que agora é neste momento estabelecido tem uma vida muito curta. E é de tal maneira, que a nossa mente já está formatada para acreditar que a tecnologia soluciona imediatamente situações que podem acontecer. De tal modo é grande a aceleração mas também a potência criativa da tecnologia.
E a insatisfação. E a frustração.
As redes sociais vieram introduzir um elemento completamente novo: a consciência e a vivência do efémero, do provisório. A consciência é importante para dominarmos melhor as angústias que resultam dessa mesma efemeridade. As redes sociais criaram uma espécie de bola de neve do efémero e do transitório que nos transforma em moscas que andam a esvoaçar a ver se encontram um poiso, e normalmente o poiso não é recomendável. É o mundo da artificialidade.
Como presidente da Associação Portuguesa dos Críticos Literários, qual lhe parece ser o estado actual da nossa crítica?
O que nós temos é uma destruição da crítica por parte dos académicos, que aconteceu a partir dos anos 70 e 80, em que os académicos ocuparam o lugar da crítica culta, daquilo que era o protagonismo do homem culto que fazia crítica literária, que não tinha de ser necessariamente um académico, normalmente não o era. Mas também estávamos numa época em que a literatura fazia sentido para a generalidade das pessoas e as polémicas, quando aconteciam, tinham uma ressonância, uma audiência justificada. Quando os académicos transferem para os jornais o jargão teórico universitário e tentam, por aí, legitimar um pensamento crítico, estão necessariamente a afastar leitores cuja preparação teórica e crítica não pode ser equivalente à dessas pessoas. Ao fazerem isto, os académicos afastaram os leitores da crítica literária, contribuíram para a desmobilização dos leitores em relação à crítica literária. Quando hoje nós protestamos contra as estrelinhas, esquecemos que de facto também por parte do público já não há uma apetência para acompanhar e compreender o discurso crítico acerca de uma obra. A estrelinha é suficiente. Há um traço médio que une críticos e leitores.
E quanto à literatura, propriamente dita, em que momento estamos?
Ao contrário do que muitos pensam, eu acho que estamos numa fase de grande mediania na literatura portuguesa. Não há grandes autores que possamos reconhecer como grandes autores. Evidentemente, temos dois ou três Ronaldos, que talvez também sufoquem um quadro literário que poderia ser melhor. Mas neste momento, está num plano de mediania. Houve gente, como um Augusto Abelaira, um Alexandre Pinheiro Torres, com obras de altíssimo nível, que sabia o que deveria fazer para elevar a literatura portuguesa, que escrevia sabendo o que estava a fazer em termos de exigência de qualidade. Hoje, perdeu-se essa exigência. Os editores publicam aquilo que a máquina financeira em que estão inseridos lhes pede que publiquem.
A sua tradução d'“O Cânone Ocidental”, publicada em 1997, tem mais de duas décadas. Em que pé estão as suas relações com Harold Bloom?
Eu continuo a admirá-lo imenso. Gosto muito do Steiner que, como teórico, talvez tenha mais fôlego, mas o Bloom é o grande crítico literário do século XX, no sentido da tradição da língua inglesa da crítica literária, que começa com Samuel Johnson. É um homem cujo mundo interior existe através de personagens de romances, de poemas, de fragmentos de poesia… A profundidade analítica e a capacidade de juntar, em termos de erudição, autores e obras, faz dele, não tenhamos dúvidas, o grande crítico do século XX. Mas como ele próprio disse uma vez a propósito do politicamente correcto, se fosse hoje não seria contratado para uma universidade norte-americana. Ele tem uma percepção excelente do que estava a acontecer, e continua a acontecer, no domínio da literatura, dos estudos humanísticos. Por causa da ideia do cânone ocidental e de posições que geraram imensa hostilidade, os alunos boicotam-lhe uma vez uma conferência e ele, a quem interessa apenas o estético, sai da sala com uma afirmação exemplar: se tivessem um problema que precisasse de uma intervenção cirúrgica de um neuro-cirurgião, queriam um excelente neuro-cirurgião ou um que fosse gay, mulher, nativo americano, negro ou índio? Esta é a posicão central dele, a predominância do estético. Já eu penso que o estético, como valor absoluto, não existe.
Harold Bloom disse numa entrevista que cedo percebeu que o mundo literário e a academia (não achava que existisse realmente uma distinção entre os dois) “são sempre dominados por tolos, patifes, charlatães e burocratas”. E sendo assim, os que tenham voz própria não são apreciados, a menos que a sua voz se misture com a de toda a gente. Concorda com ele?
Estou completamente de acordo. Infelizmente, quem tem o poder é o tolo. O ser humano, na sua essência, não muda. E o fascínio do humano está em perceber que é assim. Eu prezo muito o chamado princípio de Peter: à medida que vamos subindo na hierarquia das coisas começamos a perder qualidades e quando chegamos ao topo da pirâmide transformamo-nos em incompetentes. Não me ponho de fora, mas tenho a percepção que devo afastar-me quando as coisas se tornarem mais perigosas, quando achar que estou a mais.